A foto acima parece capa de disco de The Smiths... ou de Belle and Sebastian... pelo suavemente insólito que marca as estampas dos álbuns da banda de Manchester e seu jangle pop e os do pop barroco nórdico dos rapazes e da moça de Glasgow. Além de outros grupos na mesma pulsação indie folk.
Mas a viagem é outra. Descendo a linha do Equador, onde supostamente não existe pecado e a melancolia é herança lusitana e do quimbundo banzo, a foto é da série que Carlos Moskovics, húngaro naturalizado brasileiro, fez dos ensaios, no Teatro Oficina, da peça Perto do coração selvagem, dirigida por Fauzi Arap em 1965.
No registro, Dirce Migliaccio, José Wilker e Glauce Rocha, atores que não estão mais neste lado de cá do palco da vida, assim como o diretor, falecido há sete anos. Em outras fotografias dos bastidores da peça, sob guarda do Centro de Documentação da Funarte, aparece Clarice Lispector, autora do livro homônimo em que o texto teatral é baseado.
A adaptação feita por Arap reúne além do original citado, trechos do romance A paixão segundo GH e o de contos A Legião Estrangeira, ambos de 1964. Perto do Coração Selvagem é de 1943, primeiro livro de Clarice, com apenas 23 anos de idade. Veio com tudo mesmo!
Após a estreia da peça no Teatro Maison de France, São Paulo, com exceção do jornalista Fausto Wolff, que elogiou a montagem, “a celebração da dimensão humana dos textos da autora em formato teatral”, como escreveu à época numa edição da Tribuna da Imprensa, a crítica mais exigente questionou a validade do original de Clarice Lispector para teatro, argumentando que haveria na obra dela textos “menos densos e mais representáveis”.
Yan Michalski, por exemplo, destacado teatrólogo e ensaísta polaco-brasileiro, escreveu no Jornal do Brasil que “aquele pensamento autoanalítico e conceitual não funciona no palco”. O dramaturgo e cineasta Van Jafa, em artigo no Correio da Manhã, apontou que o diretor cometeu uma imprudência ao "ler em cena aberta trechos de livros decididamente feitos para serem lidos na intimidade”.
Clarice não se abalou. Segura, reservada, discreta em sua beleza de esfinge, desde quando autorizou a adaptação, acompanhou continuamente os ensaios, trocava ideias com o diretor e elenco, dizia-se satisfeita e representada com a transposição de sua literatura para a narrativa teatral.
A montagem de Fauzi Arap, pelo que pesquisei (quem dera ter assistido!), é um monólogo a três, marcada necessariamente pelo estilo introspectivo da personagem Joana de Perto do coração selvagem. Não podia ser diferente.
Sabe-se que a origem da obra de estreia de Clarice era um amontoado de rascunhos, anotações, folhas com reflexões da personagem. Foi o escritor Lúcio Cardoso quem sugeriu unir os escritos soltos em um romance, dar uma linearidade àqueles croquis literários. Foi dele também a ideia do título do livro, retirado de uma passagem de Retrato do artista quando jovem, de James Joyce. Cardoso considerava as técnicas e estrutura de Clarice na mesma linha do romancista irlandês, como se não bastasse ela já influenciada pela literatura do autor mineiro, seu amigo, a quem carinhosamente considerava mentor.
A autonomia de Fauzi Arap na adaptação manteve um fio condutor solo narrativo correndo paralelamente entre os personagens, o que é instigante. O diretor declarou, em entrevista quando a peça iniciou a temporada, que seu trabalho foi como o “de um montador de cinema, utilizando vasto material que dispunha” depois de ler os três livros.
Na última década foram feitas outras montagens de Perto do coração selvagem. Lembro de uma da companhia Núcleo Carioca de Teatro, com direção de Luis Artur Nunes, em 2012, e outra no Teatro Café Pequeno, no Leblon, há uns três anos, com adaptação de Delson Antunes, licenciado em Artes Cênicas pela UnB, com nove atrizes que se revezam no papel de Joana.
Em dezembro deste ano comemora-se o centenário de nascimento de Clarice Lispector. Ainda não se tem notícias das homenagens que estavam programadas, tanto por conta do período de pandemia em que vivemos, quanto pelos rumos que os projetos culturais terão com a epidemia do vírus desse desgoverno do presigárgula alma sebosa.
E sabe-se lá se a sucata secretária especial da Cultura, a ridícula porcina-ex-namoradinha do Brasil-colonial, sabe alguma coisa dos mistérios de Clarice.
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