domingo, 31 de maio de 2020

que queres tu de mim?

letra de Jair Amorim, musicada por Evaldo Gouveia, gravada pela primeira vez por Altemar Dutra, no disco homônimo, em 1964.
Aqui na leitura da escritora e jornalista Natercia Rocha.
Há melodia quando se lê a alma das canções.

lume permanente

Há um lume permanente
Nas palavras de Nirton Venancio
Cada poema é um portal
entreaberto no tempo e no espaço...
Roteiros
Rotas
Fugas
Retornos
Vertigens
(In)vocações
Para explorar as tardes
Reconstruir as nuvens
E dar asas

A todos os corações sitiados.

sábado, 30 de maio de 2020

o trovador na voz do menestrel

Por volta de 1965, 66, um menino ‘réi’ chamado Eugênio morava em Tabuleiro do Norte, interior do Ceará, e ouvia na radiadora Sentimental demais, composição de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, sucesso na voz de Altemar Dutra.
Ali Eugênio aprendeu a tocar violão e começou a cantar a canção que lhe tocava o coração de pequeno seresteiro.
“Continental, eu sou / eu sou demais...”
Como na época a marca desse cigarro era bastante popular, e o menino ‘réi’ não sabia o que era ser “sentimental demais”, deu-se à licença poética e a canção ganhou um continente na sua imaginação que nem Altemar alcançou.
O pequeno menestrel de Tabuleiro é o querido ‘véi’ Eugênio Leandro, um dos grandes compositores e cantores da geração da música cearense que surgiu nos anos 70, 80, e conquista uma legião de admiradores que assistem seus shows, ouvem seus discos, e leem seus livros, pois escreve crônicas, contos e poemas tão bem quanto compõe e canta.
Eugênio contou-me essa história da letra trocada. Emocionado com a partida do autor conterrâneo, mandou-me o vídeo cantando Bloco da solidão achando que era a outra.
Não importa, a obra de Evaldo Gouveia é continental demais.

suave marchinha

O projeto Os Cearenses, do jornal O Povo, que faz releituras de clássicos de compositores cearenses nas vozes de cantores da nova geração, celebrou ano passado a obra de Evaldo Gouveia.
Com a sua bela voz docemente anasalada, a jovem cantora e compositora Lídia Maria encanta o compasso de Bloco da solidão, parceria de Evaldo com Jair Amorim, 1971.
Na passarela, o auxílio luxuoso do guitarrista Alex Ramon.

um noite de conversa

- Arranja três fotografias 3x4, vai lá na UBC e procura o Jair Amorim.
Evaldo Gouveia ouviu a recomendação de um amigo em 1957, ao ver que ele não estava cuidando de seus direitos autorais. O compositor cearense já estava em São Paulo, para onde foi como um dos integrantes do Trio Nagô, algumas de suas músicas tocavam no rádio, como Deixe que ela se vá, parceria com Gilberto Ferraz, sucesso na voz de Nelson Gonçalves.

E lá foi o jovem Evaldo à sede da União Brasileira de Compositores, com as fotinhas no bolso do paletó.
Encontrou ‘seu’ Jair terminando um artigo para revista Radiolândia, que muito gentilmente pediu que Evaldo aguardasse um pouco para atendê-lo.
- Rapaz, você ainda não é sócio?! – apressou-se Jair, ao saber do que se tratava.
- Não, senhor.
- As fotografias, trouxe?
Evaldo entregou, preencheu a ficha de associado, regularizou sua situação de compositor, e antes de sair, revelou logo o seu desejo diante aquele já consagrado autor de canções nas vozes de Dircinha Batista, Dick Farney, entre outros.
- ‘Seu’ Jair, o maior prazer da minha vida seria fazer uma canção junto com o senhor.
Naquele mesmo dia, já no final da noite, pegaram o violão e nasceu a primeira composição da dupla, o bolero Conversa, gravado por Alaíde Costa, Maysa, Marilena Romero.
O resto é história. Evaldo Gouveia e Jair Amorim sedimentaram no cancioneiro brasileiro com beleza, simplicidade e criatividade, os temas mais característicos das desilusões amorosas e seus desdobramentos, assim como fez a sua maneira Lupícinio Rodrigues.
Os primeiros versos de Conversa prediziam os mais de 50 anos de sucesso da dupla: “Veja você / o que esta noite aconteceu...”

tudo se move com Evaldo Gouveia

Em 2004 a cantora e compositora cearense Mona Gadelha lançou seu terceiro disco, Tudo se move. A faixa de abertura é Bloco da solidão, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, de 1971.
O arranjo beat sob o toque de Fernando Moura, o auxílio luxuoso do pandeiro de Marcos Suzano emolduram a interpretação quase sussurrante de Mona, num encontro aconchegante de sua voz com o coração de quem ouve no bloco da solidão.

Evaldo Gouveia estimula o movimento desse encontro, para que através da música a dor peça passagem – só desse jeito é que ela vai embora, cantando!
Mona Gadelha canta o que Evaldo encanta.
O compositor que partiu ontem à noite, aos 91 anos. Deixou o estandarte do amor na história da música brasileira.
Merecem sempre homenagens quem tem forças pra cantar.

quem tem forças pra cantar

"Eu tenho medo de abrir a porta / que dá pro sertão da minha solidão..."
- Belchior em Pequeno mapa do tempo, 1977.
“Angústia, solidão / um triste adeus em cada mão / lá vai meu bloco vai / só desse jeito é que ele sai...”
- Evaldo Gouveia em Bloco da solidão, parceria com Jair Amorim, 1971, gravado por Jair Rodrigues, Maysa, Ângela Maria, Altemar Dutra, Elba Ramalho, Mona Gadelha...
Ontem à noite Evaldo Gouveia partiu para outras serestas, aos 91 anos.
Hoje, três anos e um mês que Belchior seguiu o rumo de outros sertões.
Dois grandes trovadores cearenses da canção brasileira, sonhando em novas serenatas.

canto buliçoso

Por volta de 1969, Belchior iniciou a composição Aguapé. A inspiração foi o poema A cruz na estrada, de Castro Alves, escrito por sua passagem em Recife, em 1865, e publicado em seu terceiro livro, Os escravos, 1883.
O cantor cearense colocou um trecho da obra do poeta baiano, como epígrafe:
“Companheiro que passas pela estrada / seguindo pelo rumo do sertão / quando vires a ‘casa’ abandonada / deixe-a em paz dormir / na solidão. / Que vale o ramo do alecrim cheiroso / que lhe atiras no ‘seio’ ao passar / vai espantar o bando, o bando buliçoso / das ‘mariposas’ que lá vão pousar”.
Na transposição, Belchior, com compreensível licença poética, trocou do original “a cruz” por “a casa”, “nos braços” por “no seio” e “borboletas” por “mariposas”.
A música foi gravada inicialmente em 1979, no LP Soro, projeto de Raimundo Fagner, que participou da faixa com Belchior, cantando e tocando viola e violão.
No ano seguinte, em seu sexto álbum de estúdio, Objeto direto, Belchior grava novamente Aguapé, repetindo o duo com Fagner, e acrescentando, logo na abertura, trechos do conto A madrasta, do escritor e pesquisador sergipano Silvio Romero, publicado no livro Contos populares do Brasil, de 1885:
“Capineiro de meu pai / não me corte os meus cabelos / minha mãe me penteou / minha madrasta me enterrou / pelo figo da figueira que o passarim beliscou”.
O canto é belíssimo, num lamento sertanejo entoado por Belchior, Fagner e uma discretíssima participação de Fausto Nilo. E em alguns momentos do arranjo do maestro P. C. Wilcox, alinhavando-se com viola, triângulo e acordeom, trecho do Canto Gregoriano Salmo dos Exilados.
Ao contrário do poeta abolicionista Castro Alves, o trecho de Silvio Romero não está creditado no encarte.
Três anos e um mês hoje que Belchior seguiu o rumo de outros sertões.

um tango de Evaldo

O projeto Os Cearenses, do jornal O Povo, que faz releituras de clássicos de compositores cearenses nas vozes de cantores da nova geração, celebrou ano passado a obra de Evaldo Gouveia.
Um tango para Tereza, parceria com Jair Amorim, gravado inicialmente por Ângela Maria em 1975, faixa de abertura do LP Ângela, e entre vários outros cantores, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Maysa, recebeu uma versão com leve sotaque de rock da banda Renegados Além dos Rótulos (Marcelo Pinheiro, Romualdo Bass, Ricardo Pinheiro, Celso Batera, e nessa gravação a participação de Danilo Gurgel no acordeon).
Um encontro em reverência a um de nossos grandes compositores, que faleceu na noite de ontem, sexta-feira, aos 91 anos.
A mocidade vindo para lhe dizer que é hora de chorar sua falta, querido Evaldo Gouveia.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Ipanema, meu amor

“Eu fico assustada com esses momentos obscuros que estamos vivendo e a nossa geração, que já viveu um golpe, fica assustada. Então, resolvi buscar meus amigos, que viveram comigo lá nas dunas do Pier. Quis encontrar as pessoas que mantinham esse mesmo sentimento, do amor, da paz, da solidariedade”
- cineasta e atriz Conceição Senna, na coletiva à imprensa durante o 28º Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema, ao falar sobre seu filme Anjos de Ipanema, que abriu a Mostra Competitiva de Longa-metragem, em agosto de 2018, quando começavam os debates com os candidatos à presidência da República.

Memorialista e reflexivo, o documentário apresenta uma geração de amigos do começo da década de 70, no Pier de Ipanema, Rio de Janeiro, relembrando, quase 50 anos depois, as emoções daquele momento transgressor, libertário e lisérgico. Conversam sobre o que consideram os acontecimentos mais marcantes de suas vidas, o que moldou suas personalidades, drogas, sexo, repressão, espiritualidade, paz e amor.
Com cenas filmadas na época por eles mesmos, revisitam emocionados a intimidade dos "desbundados", como eram conhecidos, e se declaram eternamente hippies.
Conceição faleceu na noite de ontem, quarta-feira, aos 83 anos.
Seu filme foi reencontro e despedida com os amigos, com o cinema, com o Brasil, nestes tempos obscuros que a assustavam tanto.

você me dá bandeiras

32 anos hoje sem os casarios iluminados, as janelas abertas, as bandeiras juninas, as cores ao vento do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, o poeta do abstracionismo geométrico.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

a escuridão

foto Acervo Fundação José Saramago
“...o sentido de responsabilidade é a consequência natural de uma boa visão, mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”
- José Saramago, em um trecho de Ensaio sobre a cegueira, página 243, possivelmente o livro do escritor português que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro.
O escritor dizia que foi uma das experiências mais dolorosas de sua vida o tempo que levou para concluir as 300 páginas, e espera “que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-las.”
Esse desejo do autor é uma consequência inevitável que a narrativa provoca, pelo incômodo e reflexão, a abstinência moral humana, a urgência de resgatar o afeto diante do caos e escuridão.
Lançado em 1995, adaptado para o cinema em 2008 por Fernando Meirelles, Ensaio sobre a cegueira é a atualíssima imagem aterradora destes tempos sombrios, de pandemia, de governantes abjetos, de rebanho adestrado.

"Precisamos dos poetas para dar coerência aos sonhos" *

* Luigi Pirandello na peça inacabada Os Gigantes da Montanha, 1936.
Abaixo, o rinoceronte ilusionista e apaixonado flutuando em um bote salva-vidas, uma das cenas mais emblemáticas de um dos mais emblemáticos filmes da história do cinema, E la Nave Va, de Federico Fellini, 1983.

Como disse o escritor Peter Bondanella, conceituado estudioso da cinematografia italiana, “em nenhum outro lugar o amor de Fellini pelo cinema é tão evidente quanto em 'E la Nave Va'”.
Pirandello e Fellini, rinocerontes ilusionistas dando coerência à esperança no bote salva-vidas da arte.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Sivuca

foto Acervo Arquivo Nacional
Severino Dias de Oliveira, paraibano, o Sivuca, o maestro, o compositor, o cantor, o multi-instrumentista... o sanfoneiro.
No seu fole os acordes do choro e música clássica ao frevo e xote, do forró e baião ao blues e jazz...
Falecido em 2006, aos 76, 90 anos hoje do nascimento do "cabelo de milho", apelido que ele adorava tanto que colocou como título de uma cancão que compôs com Paulinho Tapajós, gravada no disco homônimo em 1980.
Acima, Sivuca no Festival de Vozes da TV Tupi, anos 60.

rasgando o céu, cruzando o espaço

Em 1970, na noite de apresentação das finalistas do V Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, o desconhecido Antonio Viana Gomes esperava sua vez para defender a música composta por Antônio Adolfo e Tibério Gaspar.
Ivan Lins acabara de interpretar O amor é o meu país, parceria com Ronaldo Monteiro de Sousa. Um técnico da organização do festival ao chamar o novato para o palco, e por ter visto o estádio lotado ovacionando a canção de Ivan Lins, disse ao concorrente: "vá lá, cante, mas essa já ganhou". O rapaz, já com 40 anos, nos seus quase dois metros de altura, falou com tranquilidade:

E o resto é história: Tony Tornado, acompanhado do Trio Ternura, colocou seu vozeirão na BR-3, requebrou o moonwalk bem antes de Michael Jackson, seguiu os passos do seu ídolo James Brown, e o soul funk foi o grande vencedor do festival.
Filho de guianense e brasileira, o cantor e ator completa hoje 90 anos.

luz, som, imaginação!

"Existe algo mais importante do que a lógica: é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada."
- Alfred Hitchcock
Crianças de Gulu, cidade da Região Norte de Uganda, fazem cinema com uma ideia na mão e a câmera na cabeça.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

a lenda do blues

Há uma lenda que o bluesman Sonny Boy Williamson II morreu enquanto dormia, em 25 de maio de 1965.
A história de Williamson é cheia de mistérios, contradições e hipóteses nos seus 52 anos de vida.
Na biografia Don't Start Me Talkin, escrita por William E. Donoghue, 1997, encontramos várias histórias curiosas que fizeram do gaitista, compositor e cantor uma lenda do blues, literalmente.
Sonny, que supostamente fora batizado Aleck "Rice" Miller, passou a usar vários nomes... Willie Williamson, Willie Miller, Little Boy Blue, The Goat, Footsie, até assumir como ficou definitivamente conhecido, retirado de Sonny Boy Williamson, outro tocador de harmônica, falecido em 1948. O Sonny II teria adotado o nome para encobrir sua fuga da penitenciária de Angola. E nunca se soube por qual acusação estivera atrás das grades. Especulou-se que fora pelo simples roubo de uma mula.
Entre tantas outras histórias, teria presenciado o notório Robert Johnson, aquele que fizera um pacto com o diabo numa encruzilhada, beber uísque envenenado com estricnina, supostamente preparado pelo dono do bar, enciumado porque o músico flertara com sua mulher. Williamson alertou o amigo. Johnson morreu dias depois.
Sonny Williamson II deixou clássicos na história do blues nativo, e mexeu com a cabeça de músicos como Eric Clapton, Jimmy Page, Mick Jagger...

por que você faz cinema?

foto Agência O Globo, 1972
"Para chatear os imbecis.
Para não ser aplaudido depois de sequências, dó de peito.

Para viver à beira do abismo.
Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público.
Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem.
Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo.
Porque de outro jeito a vida não vale a pena.
Para ver e mostrar o nunca visto,
o bem e o mal, o feio e o bonito.
Porque vi 'Simão no deserto'.
Para insultar os arrogante
e poderosos quando ficam como 'cachorros dentro d'água' no escuro do cinema.
Para ser lesado em meus direitos autorais."
Em 1987 o jornal francês Libération fez a pergunta acima, no título, ao cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade. A resposta foi esse ótimo texto, refletindo as dificuldades e garra de filmar os roteiros do Terceyro Mundo, como dizia Glauber Rocha.
Publicado posteriormente no catálogo da mostra retrospectiva que o CCBB, no Rio de Janeiro, fez em 1994, no mesmo ano a cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhoto musicou o texto e gravou no CD Fábrica do poema.
Joaquim Pedro, que faleceu em 1988 aos 56 anos, não teve tempo de realizar o que considerava seu grande projeto: adaptar Casa-Grande & Senzala, obra-prima do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, de 1933, um dos livros mais importantes sobre a formação da sociedade brasileira, ao lado de Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda, 1936, e O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”, do antropólogo Darcy Ribeiro, publicado em 1995.
O cineasta foi um dos mais interessados na "balbúrdia" de historiografia e sociologia do Brasil. Com exceção do primeiro filme, o documentário Garrincha, alegria do povo, de 1962, sua filmografia é fundamentada em obras pontuais da nossa literatura:
- O padre e a moça, do poema de Carlos Drummond de Andrade;
- Macunaíma, da obra homônima de Mário de Andrade;
- Os Inconfidentes, baseado em O romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles;
- Guerra conjugal, filme de episódios do livro que reúne vários contistas, entre eles Dalton Trevisan;
- Contos eróticos, roteirizado a partir de histórias publicadas na revista Status;
- O homem do Pau Brasil, seu último trabalho, uma cinebiografia sobre um dos ícones do modernismo brasileiro, Oswald de Andrade, que tem roteiro do próprio escritor.
Joaquim Pedro faria hoje 88 anos chateando os imbecis.

domingo, 24 de maio de 2020

Viveiro

Meu  poema pelo coração de um amigo. Gratidão, Nivan Teixeira!

"e traço sereno / os moldes de minha pele"

a reunião dos bons companheiros

Na manhã do dia 14 de novembro de 1957, na estrada que dá acesso a Apalachin, um pequeno vilarejo rural do Estado de Nova York, o sargento Edgar Croswell e dezenas de agentes federais fizeram um cordão de isolamento nas proximidades da mansão do empresário Joseph Barbara, conhecido como Joe, The Barber.
O sargento há tempos o investigava. Desconfiava que sua empresa de engarrafar bebidas era fachada para negócios criminosos. E naquele dia ficaram de tocaia ao suspeitarem de uma quantidade enorme de forasteiros hospedados em um motel nas proximidades.
Dezenas de carros luxuosos chegavam, homens vestidos em ternos caros, seus charutos e chapéus de feltro, entravam na mansão de Barbara. Na batida, os federais descobriram o maior encontro de chefes mafiosos da história. Da cúpula ao segundo escalão e guarda-costas somavam mais 100 ali reunidos. A pauta era discutir a hegemonia das “famílias”. Naquela década, a Máfia passava por mudanças expressivas e as lideranças se incomodavam muito com a nova facção, que tentava tomar o controle dos veteranos no submundo organizado.
Muitos conseguiram escapar. Mais de 60 foram presos. O histórico encontro dos poderosos chefões da Máfia norte-americana ficou conhecido como A Reunião de Apalachin.
Curiosamente, o cinema nunca abordou direta e exclusivamente o fato. Vários filmes apenas mencionaram a data ou colocaram na trama alguns personagens que estiveram naquele encontro.
Em Dentro da Máfia (Inside the Mafia), de Edward Cahn, 1959, a Reunião foi muito vagamente representada no enredo.
Um pouco mais discorrido, contando a história do ex-membro da Máfia Joe Valachi, “Os segredos da Cosa Nostra” (The Valachi Papers), de Terence Young, 1972, baseado no livro homônimo de Peter Maas.
Francis Ford Coppola cita o encontro em uma cena de massacre em O Poderoso Chefão - Parte III (The Godfather Part III), 1990.
No mesmo ano, em Os bons companheiros, (Goodfellas), de Martin Scorsese, o personagem de Ray Liotta menciona num diálogo que "Foi um tempo glorioso, antes de Apalachin, antes do louco Joe Gallo assumiu um chefe da máfia e começou uma guerra ..."
De maneira cômica e enviesada, a séria Reunião foi retratada em Máfia no Divã (Analyse this), de Harold Ramis, 1999, com Robert De Niro.
O famoso ator, que já interpretara Vito Corleone no segundo filme da trilogia de Coppola, voltou ao tema na comédia de humor negro policial A Família (The Family), dirigida por Luc Besson, 2013.
Abaixo, uma colagem com vários atores que representaram mafiosos no cinema, Ben Gazarra, Edgar G. Robinson, De Niro, e até Frank Sinatra, conhecido por suas supostas amizades com notáveis chefões na vida real.
A foto sempre circulou na internet em referência à Reunião Apalachin naquele dia de novembro de 1957. Serve também para ilustrar a reunião do “coiso” com sua quadrilha ministerial naquele dia de abril de 2020..

sexta-feira, 22 de maio de 2020

vídeo da reunião do coiso com a sua quadrilha ministerial

Obscenidades, grosseria, sordidez, ameaças, impropérios, insultos, mediocridade, vileza, asneiras, blasfêmias, torpeza, indecência, imoralidade, arrogância, prepotência, incompetência, porcaria, turpilóquio, tabuísmo, baixeza, impudez, linguarada, sem-vergonhice, infâmia, pachouchada, vulgaridade, chulice, palavrões, palavrões, palavrões...
Tirem as crianças da sala!

o amor em todos os tempos

verso da canção Até de longe, do cantor e compositor fluminense Kadu Magalhães, gravada do disco Retorno, 2017.

Asas

Caro poetamigo Alan Mendonça, editor do meu livro, o poema Asas voa mais alto com sua leitura. Imensa gratidão.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

o primeiro espelho

A poeta, contista, romancista e tradutora Olga Savary, que faleceu no último dia 15, faria hoje 87 anos. Demorou duas décadas para escrever, organizar os poemas e decidir publicar seu primeiro livro, Espelho provisório, em 1970. E só o fez por insistência dos amigos Ferreira Gullar, que prefaciou, Nélida Piñon, Ziraldo, o pintor e gravurista Carlos Scliar, que a desenhou na capa como um croqui Modigliani, Antonio Houaiss, e do cartunista Jaguar, com quem foi casada.

Eles persistiram e venceram a timidez de Olga aos 37 anos em “se expor” em um livro. São poemas muitos deles publicados a varejo, com o pseudônimo de Olenka, em jornais de Belém, sua terra natal, Belo Horizonte, e Rio de Janeiro, onde vivia desde 1942, vindo de Fortaleza, onde morou por seis anos.

Editado pela José Olympio, as páginas são em papel de delicadeza rudimentar, um pergaminho afetivo. A segunda e terceira capas (orelhas) sem nada escrito, ouvindo silêncio de quem lê. A quarta capa toda branca, sem foto, nem, claro, o sistema de identificação dos códigos de barra com ISBN - criado em 1969, oficializado em 1972, e obrigatório em 2003 -, não há nada, só o vazio como a lembrança preenchida por um poema que se encantou.

São 88 belos poemas divididos em duas partes, Pássaros da memória e Nada termina tudo se renova, em 124 páginas que se espraiam no tempo da autora, nas datas em que nasceram, nas cidades onde os sentimentos dos versos foram cartoriados. “Rio, nov, 1951”, “Belém, março, 1952”, “Rio das Ostras, abril, 1969”... assim Olga registra no final de cada poema, o que nos faz imaginar o chão de um lugar do passado em que a poeta pisou com seu coração.

Espelho provisório ganhou o Prêmio Jabuti 1971 na categoria Autor Revelação. Até 1998, quando publicou seu último livro, Repertório selvagem, poesia reunida, mais de 20 títulos espelham a vida de Olga Savory, além de refletir e identificar seu pensamento nas traduções que fez de Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Cortázar, Carlos Fuentes, García Lorca, Mário Vargas Llosa, e tantos outros da literatura hispânica, e também dos mestres do haicai, Bashô, Buson e Issa.

Nesse seu primeiro livro há uma das mais belas dedicatórias que já li: “Para Bruno Savary, meu pai, amigo de infância”.  O espelho definitivo da poeta.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Catarina do Alentejo

Em Alentejo, a linda região no centro-sul de Portugal, as paisagens estendem um paraíso de olivais e vinhas, alongam-se em aldeias pitorescas, prados cheios de flores e florestas que respiram beleza.
Mas um fato histórico marca com sangue esse cenário. No dia 19 de maio de 1954 foi brutalmente assassinada a jovem camponesa Catarina Eufémia, de apenas 26 anos.
Naquela década, Portugal vivia sob a ditadura de Antonio Salazar, que perdurou de 1932 a 1968, governando nos moldes do fascismo, apoiado pela doutrina social do catolicismo, exercendo o nacionalismo autoritário, orientado pelo corporativismo de Estado.
Catarina Eufémia era uma trabalhadora agrícola no Baixo Alentejo, assim denominada a região onde a capital é Beja. Ceifeira, como centenas de compatriotas, com três filhos pequenos, ajudava no sustento de casa na colheita de cereais, amendoais, ervas.
A luta por melhores condições de trabalho e salário digno vinha se intensificando desde a década de 40. Greves decorreram. As mulheres cada vez mais participativas nas reivindicações.
Naquele dia 19, uma manhã de quarta-feira, Catarina uniu-se a treze trabalhadoras para conversar com o feitor da propriedade, obter um aumento de apenas dois escudos em suas exaustivas jornadas. A Guarda Nacional Republicana foi acionada, junto com agentes da PIDE, a polícia política salazarista, para reprimir as grevistas. Um tenente de nome Garrajola interpelou o grupo de mulheres perguntando o que elas queriam.
- Quero apenas pão e trabalho – respondeu Catarina, de imediato e destemida.
O militar considerou a resposta insolente e deu-lhe uma bofetada, jogando-a no chão. Catarina levantou-se, e altiva, disse, desafiando-o:
- Já agora mate-me.
O tenente disparou três tiros que estilhaçaram as vértebras.
Há pelo menos três livros, A Morte no Monte - Catarina Eufemia, de Jose Miguel Tarquini, 1974, Anatomia dos Mártires, de João Tordo, 2013, e O assassino de Catarina Eufémia, de Pedro Prostes da Fonseca, 2015, que abordam de forma biográfica, romanceada e até investigativa, o que aconteceu naquele dia, o que antecedeu na vida de Catarina Eufémia e o que sucedeu na história, tornando-a símbolo da luta contra a exploração e a repressão, uma lenda da resistência antifascista pelo Partido Comunista Português, sem ter sido militante.
Conta-se que além de estar com um dos filhos no colo, de oito meses, que se machucou na queda no confronto com o tenente, Catarina estaria grávida. "Não foi uma, foram duas mortes!", gritaram os trabalhadores diante o corpo no dia do enterro. O relato da autópsia, com os detalhes dos estragos que as balas à queima-roupa fizeram é chocante.
Poetas portugueses como Sophia de Mello Breyner, Eduardo Valente da Fonseca, Francisco Miguel Duarte, José Carlos Ary dos Santos, e tantos outros, dedicaram belos e doloridos poemas em memória de Catarina Eufémia.
Um deles, Cantar Alentejano, de Antonio Vicente Campinas, foi musicado por Zeca Afonso em 1971, uma bela canção réquiem gravada no disco Cantigas de maio.
“Acalma o furor campina / que o teu pranto não findou / quem viu morrer Catarina / não perdoa a quem matou”, lembra um trecho do poema.
Na foto acima de André Paxiuta, o olhar desconhecido de uma transeunte cruza o olhar de Catarina estampado na parede da memória em sua cidade, Baleizão. Os verdejantes ventos de Alentejo 66 anos depois sopram o pão de sua história. Catarina, ceifeira, retirava o trigo do chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.

domingo, 17 de maio de 2020

o filme e a canção da minha vida

Em 2017 o ator e cineasta Selton Mello lançou O filme da minha vida, com roteiro dele e Marcelo Vandicatto, baseado no livro Um pai de cinema, do escritor chileno Antonio Skármeta (o mesmo de O carteiro e o poeta). Ambientado no começo dos anos 60, numa pequena cidade da serra gaúcha, a narrativa se desenvolve em ritmo de metalinguagem ao discorrer a ação do personagem central, um jovem fascinado por poesia e cinema (Johnny Massaro), que convive com a ausência do pai (Vincent Cassel), um projecionista de filmes que foi embora sem avisar a família.
Uma das pontuações marcantes do filme é a trilha sonora, com composições originais de Plínio Profeta, e várias canções escolhidas por Selton Mello, todas registradas na memória afetiva de uma geração, o que dá uma tonalidade nostálgica e poética ao enredo. De clássicos da música francesa a sucessos da Jovem Guarda, de Dalva de Oliveira a Nina Simone e Francoise Hardy, de Sérgio Reis a Orquestra Romântico de Cuba e Charles Aznavour.
E é nesse grande cantor e compositor francês, falecido há dois anos, que o diretor Selton Mello chega à essência maior de seu filme, ao selecionar a belíssima Hier encore, que Aznavour gravou em 1964 no disco Charles Aznavour accompagné par Paul Mauriat et son orchestre. Curiosamente, a canção, apesar de ter sido muito popular, não teve o reconhecimento merecido à época do lançamento, ofuscada pelo enorme sucesso da faixa 1 do lado A, Que c'est triste Venise. Teve versões em diversas línguas por dezenas de cantores. O próprio Aznavour gravou em inglês.
A letra fala das reflexões de um homem quando teve seus vinte anos de idade, o que viveu e aproveitou, o que desperdiçou, o que deixou passar pelo impulso da juventude. É aí que a canção e o filme se encontram. O personagem dialoga com o tema da música não por contrição, não por sentimento de compunção, mas pela viagem que faz em tudo que está ao redor: a presença dos amores, dos livros, dos filmes, e o absentismo paterno, que também está intimamente ligado ao cinema, como o projecionista de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore.
Uma viagem ao meio de uma história, ao coração de uma trajetória, como apresenta o narrador em off na abertura do teaser do filme no vídeo acima.
A canção é um percurso ao coração de si - o compositor passeando nos campos de sua juventude.
O filme é uma viagem de trem ao coração do cinema - o cineasta vendo pela janela o interior do filme.

sábado, 16 de maio de 2020

uma noite no Fiat 147

Num começo de noite de uma sexta-feira de 1979, o jornalista e poeta Rogaciano Leite Filho passou com seu Fiat 147 azul na casa de alguns amigos para dar carona para mais uma rodada de boemia e poesia no bar Estoril, em Fortaleza.
Entrei no pequeno carro, sentei-me no lado direito do banco traseiro completando a lotação. Não lembro exatamente quem mais, se na frente estava Antonio Rodrigues de Sousa, se atrás Geraldo Markan e Carlos Emílio Corrêa Lima... ou eram Natalício Barroso e Eugênio Leandro e na frente Batista De Lima? Não lembro quais dos PSC (poetas sem-carro) estavam lá.
A minha mais remota lembrança é que, logo após poucos minutos que o carro deu partida, ouvi um deles perguntar, surpreso, a Rogaciano, "para onde estamos indo?", ao ver que ele pegava a direção da avenida Bezerra de Menezes, e o velho e bom Estoril fica do outro lado da cidade, na estreita rua Tabajaras, em frente ao marzão da Praia de Iracema.
Éramos ali cinco membros dos 24 poetas, contistas, romancistas e sonhadores integrantes do recém-criado Grupo Siriará de Literatura, todos eufóricos combatentes líricos do movimento de renovação estética e literária na virada de uma década pulsante, com o país ainda em convulsão político-social.
"Pegar o Airton", respondeu Rogaciano, sem obter dos companheiros o questionamento onde ele sentaria naquele minúsculo 147 já entupido de poetas.
E seguimos em direção à Bezerra de Menezes. Todos conversando, antecipando algumas pontuações da revista que estávamos preparando e seria lançada na 31ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência – SBPC, que naquele ano teve a capital cearense como sede para o encontro.
Falávamos da seleção dos textos, da redação de um manifesto com as diretrizes do grupo etc etc etc. Falavam eles. Eu, calado estava, calado ouvia. Minha preocupação naquele momento não era a revista, SBPC ou quais poemas eu colocaria nas duas ou três páginas oferecidas a cada componente do grupo. Minha apreensão legítima, lúcida, óbvia, era saber onde o Airton iria, em colo de qual de nós três ali atrás sentaria!
Eu imaginava a trajetória até o Estoril, o fiatizinho serpenteando as calmas ruas de Fortaleza em direção à praia, com poetas saindo pelas portas, e tendo mais um debatedor cruzando opiniões – logo o Airton, que falava pelos cotovelos!
A imagem que me vinha espremido no banco detrás, daquele automóvel sem portas traseiras, era de um daqueles carros de desenho animado, abarrotado, as laterais estufadas, e os ocupantes com as cabeças de fora. E mais, fazendo analogias involuntárias, mas consequentes daquele meu drama: por uns segundos, olhei um por um dos quatro amigos e desliguei as falas. A cena em silêncio me fez lembrar a sequência do filme “Uma noite na Ópera”, clássica comédia de Sam Wood, de 1935, com os Irmãos Marx, em que várias pessoas vão entrando na pequena cabine do navio, e quando Grouxo abre a porta para a faxineira, diz “Melhor começar a lavar o teto, é o único lugar que não está ocupado”. Eu diria pro Airton, melhor ir no porta-malas, o único lugar desocupado.
E eis que chegamos à casa do último caroneiro. Lá vem Airton Monte, com seus óculos fundo de garrafa, seu bigode circunflexo de Rubem Braga, sua mochila de couro atravessada no peito. Entra e naturalmente me empurra para sentar-se onde eu já me espremia. Eu magro e robusto em timidez, calado estava, calado me comprimi, condensei-me como sardinha. Avanço um pouco pra frente e fico ali na ponta, com o braço apoiado no banco do Rogaciano.
“Gente, vocês precisam ouvir esse novo disco do Chico Buarque!”, começa Airton Monte, como um cumprimento de boa noite a todos. “É uma loucura! Um obra-prima! E tem uma música! Puta que pariu! Como é que um cara faz um letra dessa! O Chico é gênio! ‘Geni’! A letra de ‘Geni’ é poesia pra caralho!”
E pronto! Começou o entusiasmado Airton Monte a falar do disco Ópera do Malandro lançado naquela semana, com as composições do musical homônimo que Chico escreveu baseado e mesclando Ópera dos mendigos, de John Gay, do século 18, com A ópera dos três vinténs, revolucionária peça de Bertolt Brecht com música do compositor Kurt Weill, de 1928. Ambientada no Rio de Janeiro da década de 1940, tendo como pano de fundo a legalidade do jogo, a prostituição e o contrabando, a peça estreou um 1978 com teatros lotados.
De repente acabou discussão sobre a revista, critérios e curadoria dos textos, SBPC... Nada mais da pauta improvisada a caminho da Bezerra de Menezes. E como que concretizando a cena muda que imaginei um pouco antes, todos “foram calados” ouvindo Airton Monte incontrolavelmente extasiado com o disco duplo de Chico Buarque.
Fixava-se em Geni e o Zepelim, última faixa do lado A do disco 2, a única interpretada sozinha pelo autor. Airton vibrava com os heptassílabos metrificados e rimados. “E também vai amiúde / co’os velhinhos sem saúde / e as viúvas sem porvir”, olha isso, gente! “Um enorme zepelim / pairou sobre os edifícios / abriu dois mil orifícios / com dois mil canhões assim”, detalhava, quase didaticamente. E sem pausa, Airton emendava nos fazendo “ver” o dirigível flutuando sobre o Fiat 147, nos seguindo em direção ao Estoril, tamanha sua descrição arrebatada. “E esses versos, esses versos”, bradava ao apresentar a personagem e a relação controversa de poder que ela detinha, “Acontece que a donzela / (e isso era segredo dela) / também tinha seus caprichos / e ao deitar com homem tão nobre / tão cheirando a brilho e a cobre / preferia amar com os bichos”.
A partir daí, Airton esquece Chico Buarque, autor, e começa a falar de Geni, personagem, da grande mulher que ela é e simboliza a objetificação e a condenação do corpo pela sociedade hipócrita.
E aqui, estimulo mais a memória e analiso o que Airton Monte quis nos dizer da personagem da música.
Geni era a personificação da grandiosidade da alma humana, a mulher que mesmo discriminada, agredida moral (“Ela dá pra qualquer um! / maldita Geni!”) e fisicamente (“Joga pedra na Geni / ela é feita pra apanhar! / ela é boa de cuspir!”), cheia de bondade salvou a cidade pronta pra virar geleia pela maldade do comandante do Zepelim. O poderoso por ela, formosa dama, se apaixonou, fora cativado, e que se naquela noite lhe servisse, partiria numa nuvem fria quando o dia amanhecer.
Geni, pensando no bem de todos da cidade, atendeu ao pedido do poder, representado pelo “prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com um milhão”. Eles que incitavam a população a apedrejá-la, agora seguiam em romaria, suplicando, “Você pode nos salvar / você vai nos redimir / você dá pra qualquer um / bendita Geni!”. E foi deitar com homem tão nobre, mas cheio taras. Geni dominou seu asco e se entregou a tal amante “como quem dá-se ao carrasco”. Ou faria isso ou o forasteiro do Zepelim explodiria a cidade, que lá de cima ele vira “tanto horror e iniquidade.”
O comandante do Zepelim estava certo quanto ao caráter daquela população. Era pior do que ele. Bastou o dirigível zarpar que “a cidade em cantoria / não deixou ela dormir”. Geni agora não tinha mais nenhuma utilidade. “Joga bosta na Geni! / ela é feita pra apanhar! /ela é boa de cuspir! / ela dá pra qualquer um! / maldita Geni!”.
O 147 chegou ao Estoril. Descemos calados, inclusive Airton. Estávamos subindo as curtas escadas da querida Vila Morena quando um de nós – não, não lembro quem – virou-se pro Airton Monte e disse: “Sabia que a Geni na verdade era Genivaldo?”
Airton deu de ombros e sorriu por baixo dos óculos e do bigode, como no poema de Drummond. E entramos para pedir as cervejas quentes aos garçons Baleia e Citonho.
Uma crônica de saudade para o grande cronista Airton Monte, que hoje faria 71 anos. Jogo flores pra ele.

sábado à noite

E porque hoje é sábado pandêmico, um frame de Psicose (Psycho), de Alfred Hitchcock, 1960.
Janet Leigh e John Gavin discutem a relação.
Ela quer casar, ele argumenta que financeiramente não pode. Precisa de um tempo pra pagar umas dívidas, se estruturar.
Ela tem pressa, acha que ele tá enrolando.
Entediada, querendo coisas novas em sua vida, toma "emprestado" uma grana da imobiliária em que trabalha, pega o carro e se manda meio assim "easy rider".
Mal sabe ela que iria de encontro a Anthony Perkins no Bates Motel, moço charmoso e esquisito, que tem a mania de se vestir igual a mãe e atacar com uma uma faca as mocinhas no banheiro.
Melhor a solidão dos sábados.
Melhor ficar em casa.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

o anjo torto de Itapemirim

Quando ele nasceu, um anjo torto, desses que viviam entre as serras do seu pequeno Cachoeiro, disse, “vai, Sérgio, ser gauche na vida”.
Parafraseando os versos do clássico poema de Drummond, remeto-me ao começo de 2011 quando o Centro Cultural Banco do Brasil iniciou o projeto “Anjos Tortos – A MPB gauche na vida”, em que homenageava vários cantores e compositores da música brasileira que têm como característica, e não necessariamente “rótulo”, a originalidade movida pela liberdade em suas criações, sem sucumbir aos ditames da indústria fonográfica para fazer “sucesso”.
Entre esses anjos enviesados merecidamente glorificados pelo projeto, Sergio Sampaio foi surpreendentemente celebrado na voz de Eugênio Avelino, o conhecido Xangai. Qualquer estranheza inicial causada com a relação distinta no estilo, comportamento e proposta musical entre os dois artistas, foi desfeita em uma hora e meia de show. Tinham tudo a ver e ouvir.
Xangai com a afinadíssima viola e sozinho no palco, com sua belíssima e singular voz de canário, conquistou a plateia, na sala do CCBB em Brasília, cantando as canções do amigo. Padrinho do filho de Sergio Sampaio, João, Xangai contou “causos” quando os dois moraram juntos no Rio de Janeiro, no começo da carreira, quando um se preparava para colocar o bloco na rua e o outro nem imaginava um grande encontro com Elomar, Geraldo Azevedo e Vital Farias.
A relação de saudável compadrio através da sensibilidade que os uniu ao longo do tempo, foi exposta e ilustrada em melodias e histórias naquele show. Na voz de Xangai a essência e o significado da música que Sérgio Sampaio imprimiu no cancioneiro brasileiro. O canto agreste do baiano soube muito bem incorporar a fúria modernista do capixaba.
Sérgio Sampaio, de certa forma, foi ofuscado pelo próprio sucesso de Eu quero é botar o meu bloco na rua, involuntariamente lançada como uma moderna marcha-rancho de carnaval, em 1973, e por outro lado, sem muito interesse da mídia que o via como um magrelo esquisito, largado na vala comum dos malditos em plena ditadura militar, mais condescendente ao romantismo nem bossa nova nem rock-and-roll do epônico rei da juventude.
As letras de Sérgio Sampaio são geniais, como um caleidoscópio de inquietações projetadas na calçada, lugar da poesia. Sua música vai do chorinho, passa pelo samba e vai ao rock sem perder o tom. Compôs o belíssimo Meu pobre blues, especialmente para seu ídolo e conterrâneo, o citado Roberto Carlos, que com aquelas esquisitices azuladas dele, não deu a mínima. Como diz o crítico de música Silvio Essinger, "é uma canção amarga, feita não para o astro gravar, mas para ele ouvir e botar a mão na consciência.” O blues rejeitado, na contramão da ceia natalina do Robertão, foi gravado pelo próprio Sérgio Sampaio em 1974, em compacto simples, produzido por Roberto Menescal. Ficou mais conhecido na voz de Zizi Possi, em seu primeiro LP, Flor do mal, de 1978.
Em 1993 tive a bênção, a dádiva, ou sei lá o quê do universo e que se deve sempre agradecer, de assistir a um dos últimos shows de Sérgio Sampaio, em Brasília, cidade onde morou, ou se autoexilou por um período em sua história crepuscular de vida. A apresentação foi no bar Feitiço Mineiro. Muito mais magro e extremamente tímido, Sérgio Sampaio chegou e olhou a plateia imantada com sua presença. Atendeu a todos, meio acanhado, sorriso retraído entre os largos dentes separados.
Aproximei-me, falei de minha admiração, e entreguei-lhe um poema de devoção escrito ali mesmo, num guardanapo, respingado de caipirinha e algumas furtivas lágrimas de contentamento. Deu-me um abraço robusto com o corpo esquálido. E autografou o seu primeiro LP, admirado por eu ter o exemplar devidamente conservado. Naquela noite de 2 de agosto não imaginaria que partiria de vez no dia 15 de maio do ano seguinte. Ninguém imagina esses incômodos da indesejada das gentes, principalmente com quem se ama.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

ela está nele

A atriz australiana Cate Blanchett interpreta Bob Dylan em Eu não estou lá (I'm not there), híbrido drama dirigido por Todd Haynes, 2007, com sete personagens que representam diferentes aspectos da vida e obra de cantor.
Entre tantas e tantas excelentes atuações, como a personagem-título de Blues Jasmine, de Wood Allen, onde vive um socialite empobrecida em Manhattan, e vencedora do Oscar em 2017, sua interpretação não cai na armadilha de caricaturar o compositor de Minnesota.
De forma surpreendente, e quase irreconhecível, Cate Blanchett revive Dylan durante a controvérsia criada, entre 1965 e 1966, quando o cantor passou a usar guitarras elétricas no Festival Folk de Newport e foi vaiado durante um show na Inglaterra.
Hoje 51 anos da estrela ao redor do sol.

nunca houve Gilda como Rita

“Os homens apaixonavam-se por Gilda, mas acordavam comigo”.
Entre a ironia e o incômodo Rita Hayworth repetia essa frase em algumas entrevistas. Mesmo com outras boas interpretações, a atriz viveu sua carreira imortalizada pela personagem do filme de Charles Vidor, um drama noir com enredo um tanto ousado para os padrões sociais de 1946.

Ambientado na Argentina, a história envolve um garbo vigarista, papel de Glenn Ford, que tem amizade sem escrúpulos com o dono de um clube noturno onde trabalha, na verdade um cassino às escondidas. Tudo se torna mais complicado quando seu amigo-patrão aparece de caso com seu antigo e mal resolvido amor: Gilda.
O furor sexual que Rita Hayworth deu a sua personagem passa muito longe da vulgaridade. Gestos, olhares, esbelteza e sensualidade como pouco se viu no cinema. É clássica a cena em que Gilda faz um voluptuoso strip-tease despindo apenas o longo par de luvas...
Hayworth estava com sintomas de Alzheimer quando deixou o cinema no começo da década de 70, depois de interpretar a boliviana Senhora De La Plata no western A divina ira, de Ralph Nelson. Morava com filha em Nova Iorque quando faleceu em 14 de maio de 1987, aos 68 anos.