quinta-feira, 30 de maio de 2019

na parede da memória

“Em alguns minutos de conversa, que precederam a pintura, Belchior, ex-seminarista, deixou Bracher encantado com sua vasta cultura: recitava trechos inteiros de ‘A Divina Comédia’, de Dante Alighieri.
Sentaram-se frente a frente, no atelier. Como um touro que mira o toureiro, ou a esfinge que diz ‘ – decifra-me ou te devoro’.
Belchior sentiu o peso de ser desnudado naquele momento. Olhou ao redor e bateu seus olhos em mim: uma menina jovem e acostumada aos embates entre modelos e criador no velho atelier de meu pai.
Tomou-me a mão, com suas mãos enormes e quentes. Deslizou por entre os pelos um grande anel, com pedra avermelhada e grossa armação em prata.
Pediu que eu o mantivesse comigo, durante o retrato. E eu lá permaneci, vendo aquele rosto se transfigurar para a tela, naquela osmose materializada pela talentosa mão de meu pai.
Ao término, como sempre, Belchior não sorriu, apenas arqueou a ponta do bigode, apertando os olhos, num claro gesto de surpresa e aprovação ao que acabara de presenciar.
Eu ainda torci para que ele se esquecesse do anel, e comigo deixasse aquele amuleto de sorte.
Mas, ao se despedir, o rapaz latino americano me pediu de volta seu guia.”
- Crônica da jornalista Blima Bracher em seu blog, no dia em que soube da morte de Belchior, 30 de abril de 2017.
O cantor esteve no atelier do pintor mineiro Carlos Bracher, em Ouro Preto, em 1979. Estava na cidade participando do Festival de Inverno, e aproveitou para visitar o amigo.
O quadro de Bracher integrou a exposição Retratos: Belchior visto por grandes nomes e por ele mesmo, no Centro Cultural Oboé, em Fortaleza, 2001.
Dois anos e um mês que essa lembrança é o quadro que dói mais.

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