sábado, 21 de outubro de 2023

pé na estrada


Foto: Prosopee/Wikimedia Commons

"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente”
- Jack Kerouac em On the road, 1957, seu segundo livro, relato autobiográfico das peregrinações no interior dos Estados Unidos. O trecho está no início da Terceira Parte, quando Kerouac chega a Denver, por volta de 1949, com alguns dólares economizados de uma bolsa de estudos do governo. Ele pretendia se estabelecer na cidade, mas se sentiu muito sozinho, não encontrou nenhum de seus amigos que foram para lá dois anos antes trabalhar em mercados atacadistas de frutas.
Fica uns dias e ganha uns trocados carregando, sob sol escaldante, pesados caixotes com melancia para vagões-frigoríficos, e em seguida destravá-los com uma alavanca e empurrá-los por trinta metros de trilhos para saírem. “Em nome de Deus e sob as estrelas, para quê?”, pergunta-se, caminhando ao pôr do sol, com os músculos doloridos, olhando os negros que queria ser.
O autor escreveu On the road em ritmo ininterrupto em três semanas, em 1951, numa pequena máquina com folhas de papel manteiga emendadas para não perder tempo em trocá-las, movido a benzedrina, xícaras de café e ouvindo jazz. A entrega de emoção é tanta num contrafluxo de transgressão e lirismo, que em cada página podemos ouvir as sonoridades das ruas e ver as planícies das estradas por onde Kerouac passou. O livro atravessa os Estados Unidos por inteiro, a partir da lendária Rota 66, e nos atravessa por completo a partir de uma prosa de reflexão pelo lado sombrio do sonho americano. Obra-prima que influenciou todos os movimentos de vanguarda e o comportamento da juventude da metade do século XX.
Destaquei o belo trecho acima em contraponto a citações na Internet atribuídas a Kerouac, falsamente retiradas do livro. Uma que diz que "Os únicos que me interessam são os loucos, aqueles que são loucos por viver”; outra que apregoa que “As pessoas que são loucas o suficiente para pensarem que podem mudar o mundo, são as que de fato o fazem”, esta, na verdade, dos publicitários criadores da campanha de lançamento da Apple, em 1997. Pasmem! Não existe nenhuma dessas passagens. Algum irresponsável costumizou o conceito de loucura de Kerouac e outros tantos replicam no impulso da superficialidade e pressa das redes sociais. Não leram Kerouac nem meteram o pé na estrada.
Acima, a mochila que o escritor usou nas viagens e guardava as anotações que serviram de base para o livro, vista na exposição Sur la route de Jack Kerouac : L'épopée, de l'écrit à l'écran, no Museu de Letras e Manuscritos de Paris, 2011.
Hoje, 54 anos sem o mochileiro que partiu aos 47. 

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