domingo, 29 de outubro de 2023

a peste das guerras


Jambalia, norte da Faixa de Gaza - Foto: Anas al-Shareef/Reuters

“Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota’. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”
- Trecho da primeira parte de A peste, de Albert Camus (José Olympio Editores, edição de 1973).
Escrito durante seis anos sob os escombros da Segunda Guerra, o livro foi lançado em 1947, com tradução de Graciliano Ramos no Brasil, a mesma da edição citada. O escritor franco-argelino foi militante na Resistência Francesa e tomou posições decisivas na Guerra da Independência de seu país de origem.
Camus inspirou-se na pestilência de cólera em 1849 em Oran, no litoral mediterrâneo da Argélia, dizimando os habitantes a cada dia. Mas o enredo, com sua força dramática, análises e reflexões, faz uma analogia direta à ocupação nazista na Europa.
As duas leituras - o mal invisível da contaminação biológica e a maldade na concretude humana das guerras - convergem para considerações sobre a impotência, a exclusão da liberdade e, sobretudo, a ruminação sobre a solidariedade necessária entre os homens, a urgência do ser coletivo tomar forma, corpo e atitude em detrimento do particular, do individual, da peste do ego dos que detém o poder.
No livro vemos a morte se aproximar, invadir e alterar a rotina dos habitantes, encurralados pelo horror. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos se veem separados, isolados, sem comunicação exterior. O bacilo em Oran do século 19 que serviu de influxo para escritor denunciar o mal da Segunda Guerra, tem a mesma conotação aplicável à insanidade do que está acontecendo na Palestina, que há 76 anos tem seu território ocupado pela Estado de Israel e o plano de partilha transfigurado, devastando a população progressivamente, diante da mesma paisagem mediterrânea do livro de Camus.
O flagelo é real.
Jambalia, norte da Faixa de Gaza - Foto: Anas al-Shareef/Reuters

 

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