Foto Bob Wolfenson, 1995
"O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."
Trecho da fala final do personagem Joaquim, do poema Os três mal-amados, publicado no livro homônimo, 1943, de João Cabral de Melo Neto, o mais milimétrico dos nossos poetas.
João fala de Teresa, sentada ao seu lado, a pouco centímetros, mas apartada, porque não precisaria de quilômetros para medir a distância. Olha para ela “como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século”.
Raimundo diz que “Maria era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e nítido como uma pedra”. Ela é o mar dessa praia sem mistério e profundeza, por isso, elementar, “como as coisas que podem ser mudadas com vapor e poeira.”.
É na fala de Joaquim que o amor se estampa e cruelmente se traduz. Não há em sua prédica a agente causadora dos queixumes, clamores e reinvindicações. A personificação do amor é o próprio amor e seus precipícios. Joaquim intercala seu discurso lancinante como uma prosopopeia dos lamentos de João e Raimundo. Define-se o perfil do amor com a força que ele tem, e o poder, na conceituação do poeta, é destruidor. O amor corrói tudo pela frente, do tempo do amante aos livros, frutas, cortadores de unha e canivete.
João Cabral de Melo Neto inspirou-se no poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em seu livro de estreia, Alguma poesia, 1930, para escrever a saga cruciante desses rapazes. Tanto que eles e suas respectivas amadas têm os nomes dos que sofrem em círculo no poema do itabirano. Cabral abre o livro usando os versos como epígrafe: "João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim / que amava Lili...". Lili, mesmo omitida em João Cabral, é muito mais, é o amor pessoalizado, singularizado. Como Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história, o poeta pernambucano deu a Joaquim a sina da carta constitucional do amor.
Cabral, 18 anos mais novo, admirava Drummond bem antes de conhecê-lo. Trocaram correspondências, ficaram grandes amigos. Para ele escreveu o poema A Carlos Drummond de Andrade, publicado em O engenheiro, seu terceiro livro, de 1945.
2020 foi o centenário de nascimento de João Cabral, 9 de janeiro.
E num mesmo dia 9, na sequência do mês 10, em 1999, o poeta partiu para a pedra do sono. Tinha 79 anos.
Mais do que uma sucessão de datas, uma aliteração numérica, é uma arquitetura de um poema a palo seco, com o mesmo rigor estético de sua poesia. Um poema avesso como um cão sem plumas, uma rima toante de versos feito lâminas, o dia e a noite de sua vida, o inverno e o verão de sua existência nos agrestes de Recife, o começo de tudo e o fim do nada.
Há 24 anos João Cabral livrou-se de uma vez por todas das aspirinas que tomava diariamente, desde a juventude, para uma dor de cabeça do medo morte.
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