terça-feira, 31 de outubro de 2023

o Saci contra-ataca

Ilustração: autor desconhecido

Saci Pererê, nosso personagem mitológico, nossa identidade cultural. Foi criado pelos índios da região sul do Brasil no fim do século 18, por ocasião das Missões, aldeamentos indígenas criados pela Ordem dos Jesuítas.

Morando na mata, Saci é guardião das plantas sagradas que utiliza para fazer remédios curativos. Com seu gorro vermelho (fonte de seus poderes mágicos), cachimbo de barro (costume de seus ancestrais africanos) e uma perna só (perdeu a outra numa disputa de capoeira), o menino negro com suas peraltices, assoviando, se tornando invisível, girando como um pião e provocando redemoinho, atrapalha os intrusos que querem invadir o território indígena.

Um Saci passa sete anos em gestação dentro de um gomo de bambu, vive 77 anos sempre menino, e quando morre se transforma em cogumelo para continuar na mata junto com os outros curumins.

Monteiro Lobato foi o primeiro escritor a colocar o personagem na literatura, em Sítio do Picapau Amarelo, série de 23 volumes publicada de 1920 a 1947. O menino travesso ganhou um livro como protagonista, O Saci, de 1921.

No final da década de 50, o cartunista Ziraldo, influenciado pelo Sítio, criou A Turma do Pererê, onde Saci é destaque. O mesmo fez Maurício de Sousa nos quadrinhos da Turma da Mônica nos anos 70 Saci sempre ao lado de Chico Bento, afinado com suas histórias de matuto da roça.

Em 2003, no primeiro mandato do Governo Lula, foi criado o Dia do Saci Pererê, um projeto do então deputado Aldo Rabelo (PCdoB). A data escolhida foi 31 de outubro, como contraponto à importação da comemoração do Dia das Bruxas.

As bruxas do Tio Sam, criadas pelos colonizadores anglo-saxônicos, só sabem assustar, roubar doces, guloseimas e apagar o imaginário popular brasileiro.

O Saci esconde nossos objetos, mas devolve. É tudo brincadeira.

encontro e desencontro em agosto


O primeiro poema que li, ainda criança se alfabetizando, foi Mãos dadas, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Sentimento do mundo. Desde então nunca mais larguei a mão do poeta.
Quando publiquei meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros (Editora Lourenço Filho, 1981), coloquei versos de vários de seus poemas como epígrafes nos capítulos. Um ano depois, consegui o endereço de Drummond com o poeta amigo Marcio Catunda e enviei-lhe um exemplar.
Meses depois, em agosto de 1982, recebo um cartão-cartinha-cartografia afetiva, agradecendo-me o livro, elogiando meus poemas aprendizes, transcrevendo um verso que gostou, deixando-me em estado de pleno êxtase sereno. Outras trocas de correspondências, sempre sobre literatura, continuaram por um tempo. Da rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana, no Rio, para rua Barão de Aracati, na Praia de Iracema, em Fortaleza. E vice-versos em meu coração - a distância cabia numa janela sobre o mar. Aquele que me inspirou e me guiou na poesia tornou-se meu missivista, e eu devotava-lhe todo o sentimento do mundo.
No começo de agosto de 1987 eu estava no Rio de Janeiro quando soube da morte de Maria Julieta, filha do poeta. Apegadíssimo a ela, a quem chamava de “meu melhor poema”, ao receber a notícia Drummond disse ao médico que o atendia: “Doutor, receite-me um infarto fulminante.”
Meu propósito de conhecê-lo pessoalmente, como estava se encaminhando naquela viagem, foi deixado de lado. O poeta em luto se recolhera, eu mais distante me guardei.
Na noite de 17 de agosto, colocando na mala uns exemplares de seus livros que levei para dedicatórias, ouço Cid Moreira no Jornal Nacional anunciando a morte do poeta, vítima do que pediu ao médico na receita. Drummond foi ao encontro do "melhor poema" doze dias depois, aos 84 anos.
Restou-me, muito tempo passado, à falta de rima e solução, um encontro no banco do calçadão de Copacabana, numa tarde também de agosto. Ficamos de mãos dadas. “O tempo é a minha matéria, o tempo presente", pareceu-me dizer, de costas para o mar, de frente para o mundo, vasto mundo.
Hoje, 121 anos de seu nascimento. Você não morre, você é duro, Carlos.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

o nosso estrangelro


O antropólogo e etnólogo belga-francês Claude Lévi-Strauss, aquele que "detestou a Baía de Guanabara: pareceu-lhe uma boca banguela", segundo lembrava Caetano Veloso na música O estrangeiro, no disco homônimo de 1989, foi um grande pesquisador e entusiasta da história brasileira.

A citação do compositor baiano teve inspiração no livro Tristes trópicos, clássico lançado em 1955, um ensaio etnográfico romanceado, onde estão as bases do estruturalismo e da antropologia moderna. Em uma entrevista ao jornal O Globo em 2009, Caetano diz que “Lévi-Strauss pede desculpas por discordar de todos que acham o Rio bonito e declara que, para ele, a cidade não tem nenhum encanto e as proporções entre a baía e as rochas que a circundam (Pão de Açúcar, Corcovado, Urca e pedras menores) dão a impressão de uma boca desdentada: os promontórios seriam muito pequenos para o tamanho da baía”. O cantor e o antropólogo não se conheceram pessoalmente, mas este soube que um compositor brasileiro tinha citado a frase dele. “Ele apenas minimizou o aspecto negativo da observação, dizendo que tinha escrito aquilo fazia muito tempo”, recorda Caetano.
A obra de 500 páginas é um tratado sobre o processo civilizatório, um extraordinário relato com sinceras reflexões sobre a viagem que fizera ao Brasil nos anos 1930. Lévi-Strauss conviveu com os índios bororo, nambiquaras e cadiuéus nas matas amazônicas, observando os mitos e rituais, o que lhe deu a certeza de que não se tratavam de selvagens, e sim donos de uma lógica complexa e sofisticadas estruturas sociais, fazendo uma análise comparativa das religiões do velho e do novo mundo.
Com mais de 30 livros publicados, o antropólogo voltou ao Brasil no começo dos anos 80. Gostava do nosso carnaval, tinha especial predileção pela marchinha Mamãe eu quero, de Jararaca e Vicente Paiva, gravada por Carmen Miranda em 1937.
No período em que viveu aqui, Lévi-Strauss fotografou muito o dia a dia da nossa realidade, os costumes, as cidades e seu povo. Revelou-se nossa enorme gratidão, mesmo com a observação depreciativa em relação às elogiosas de Cole Porte e Paul Gauguin citadas na letra de Caetano.
Claude Lévi-Strauss faleceu a poucas semanas de completar 101 anos, na madrugada de 30 de outubro de 2009, em Paris. Sua morte foi anunciada quatro dias antes, como uma notícia antropológica para o futuro, fechando um século de passado.
Acima, Lévi-Strauss em seu escritório em São Paulo, 1935. Foto: Acervo Biblioteca Nelson Foot, Jundiaí, SP.

domingo, 29 de outubro de 2023

a peste das guerras


Jambalia, norte da Faixa de Gaza - Foto: Anas al-Shareef/Reuters

“Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota’. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”
- Trecho da primeira parte de A peste, de Albert Camus (José Olympio Editores, edição de 1973).
Escrito durante seis anos sob os escombros da Segunda Guerra, o livro foi lançado em 1947, com tradução de Graciliano Ramos no Brasil, a mesma da edição citada. O escritor franco-argelino foi militante na Resistência Francesa e tomou posições decisivas na Guerra da Independência de seu país de origem.
Camus inspirou-se na pestilência de cólera em 1849 em Oran, no litoral mediterrâneo da Argélia, dizimando os habitantes a cada dia. Mas o enredo, com sua força dramática, análises e reflexões, faz uma analogia direta à ocupação nazista na Europa.
As duas leituras - o mal invisível da contaminação biológica e a maldade na concretude humana das guerras - convergem para considerações sobre a impotência, a exclusão da liberdade e, sobretudo, a ruminação sobre a solidariedade necessária entre os homens, a urgência do ser coletivo tomar forma, corpo e atitude em detrimento do particular, do individual, da peste do ego dos que detém o poder.
No livro vemos a morte se aproximar, invadir e alterar a rotina dos habitantes, encurralados pelo horror. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos se veem separados, isolados, sem comunicação exterior. O bacilo em Oran do século 19 que serviu de influxo para escritor denunciar o mal da Segunda Guerra, tem a mesma conotação aplicável à insanidade do que está acontecendo na Palestina, que há 76 anos tem seu território ocupado pela Estado de Israel e o plano de partilha transfigurado, devastando a população progressivamente, diante da mesma paisagem mediterrânea do livro de Camus.
O flagelo é real.
Jambalia, norte da Faixa de Gaza - Foto: Anas al-Shareef/Reuters

 

sábado, 28 de outubro de 2023

simetria do tempo

Em 1980 a cantora, compositora e jornalista Mona Gadelha lançou o livro Contagem Depressiva, feito artesanalmente, na raça, ilustrações de Mino, com impressão gráfica rústica, rascante feito um rock, e uma tiragem limitada como uma estrela que risca o céu e temos que fazer um pedido. Na capa, uma foto sua, a menininha Simone Mary Alexandre Gadelha.
Inspirado num verso do poeta niteroiense Ricardo dos Anjos, o trocadilho do título provoca reflexões, ou inflexões, existenciais. Bem característico de uma certa época de inquietações em nossas vidas. Os desassossegos aos poucos entram no prumo ou sucumbimos de vez. Os oito contos confessionais na contagem dessa moça bonita, narrados em primeira pessoa como um blues pulsante, dissecam amores, desamores, esperanças... “Afinal que situação existe entre a solidão e o desespero?”, pergunta a uma certa altura e queda.
Eu que já via Mona (en)cantar nos shows, eu que ouvia Mona cantar no disco Massafeira, eu que reouvia Mona como uma Patti Smith no calor de Fortaleza, depois do livro estampei e admirei Monamusa na cena musical cearense.
A história do rock, do blues e das canções cearenses não passa por ela: está nela. Nos anos 70 e 80, as emoções perigosas de quem fazia música na contramão dos bons costumes do lugar, tinham em Mona a postura e o comportamento femininos de quem pinta com talento e ousadia a cor do sonho que a música traz. Do compacto simples de 1985 que falava de um tédio ancestral e perguntava naqueles tempos difíceis se o céu era mesmo azul, aos seis discos CDs que mapeiam com canções os sentimentos mais ternos, é muito mais que uma discografia ao longo desse tempo, é uma geografia afetuosa na música brasileira. Com nosso amigo em comum Gilmar de Carvalho, sempre cumpliciávamos elogios e reconhecimento devotados à Mona.
E na contagem crescente do tempo nos tornamos amigos, um ali colado no coração do outro, um ali confidenciando suas dores nos momentos mais precisos, um ali somando esperanças no futuro mais urgente. E o meu encanto com o livro de 1980 tem simetricamente o enlevo três décadas depois, quando gravou meu poema “Ventania”, musicado por Ricardo Augusto, no disco Cidade blues rock nas ruas, em 2013. A interpretação deu uma outra dimensão aos versos. A gravação tatuou sonoramente a afeição, a estima, o apreço que nos une. O vento forte da vida nos mantém nessa praia lírica da amizade.
Hoje é seu aniversário. Parabéns pelo seu dia todos os dias!
Na ponta da latitude simétrica, a foto arqueológica do álbum de família. No vértice deste 2023, a foto digital do olhar afetivamente analógico de Chico Gadelha. Salve a beleza!

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

felicidade não se compra


O escritor Graciliano Ramos era louco por cinema. Não perdia os filmes de Charles Chaplin, sua atriz predileta era Katherine Hepburn, e se divertia como uma criança de sua alagoana Quebrangulo com os desenhos da Disney. Mas sua preferência forte, que o faziam ficar sem piscar os olhos na tela, eram as comédias sarcásticas de Frank Capra, que diametralmente denunciava com humor, simplismo e idealismo o que escritor dissecava com angústia a vida seca dos seus personagens. Imagino a preciosidade do sentimento desse encontro do cinema apólogo do cineasta hollywoodiano com arcabouço literário do “Dostoievski dos Trópicos”, como diz o biógrafo Dênis de Moraes em O velho Graça (José Olympio Editora, 1992).
Em Memórias do cárcere, obra póstuma de Graciliano, publicada seis meses após sua morte, em 1953, o escritor relata o período em que ficou preso por causa de seu envolvimento político durante a ditadura Vargas. Detido em Maceió, sem acusação formal, sem provas e sem processo, passou por vários presídios, inclusive a Colônia Correcional em Ilha Grande, RJ.
Entre as agruras que relata, há uma passagem (página 234 do segundo volume) em que conta como ele e a colega encarcerada Nise da Silveira, a médica psiquiatra, ficavam horas em planos quiméricos com vontade de assistir a um filme:
“Ociosos e ausentes do mundo, precisávamos fazer esforços para não nos deixarmos vencer por doidos pensamentos. Causavam-me espanto os devaneios dos outros, às vezes me sentia resvalar numa credulidade quase infantil, e era doloroso notar os escorregos do espírito. Nise ficava uma hora a matutar nos programas de cinema, exigia a minha opinião, grave. Entrávamos a escolher fitas, enfim nos decidíamos:
– Vamos ao Metro.
Esse exercício estava sempre a repetir-se, e nem sei se era apenas brincadeira, se não chegávamos a admitir a possibilidade maluca de atravessar paredes e grades, sair à rua, tomar o ônibus, entrar nas lojas, nos cafés, nas livrarias e nos cinemas.”
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O título da postagem é a versão dos distribuidores brasileiros para o filme It's a wonderful life, uma mistura de drama e fantasia na noite de Natal, que Capra dirigiu em 1946.
Na foto de autor desconhecido, o Cine Metro Passeio, RJ, aguardando Graciliano.
Hoje, 131 anos de seu nascimento.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

canto buliçoso


Por volta de 1969, Belchior iniciou a composição Aguapé. A inspiração foi o poema A cruz na estrada, de Castro Alves, escrito por sua passagem em Recife, em 1865, e publicado em seu terceiro livro, Os escravos, 1883. O poeta baiano tinha 18 anos, Belchior, 23.
O cantor cearense colocou um trecho da obra de Castro Alves como epígrafe:
“Companheiro que passas pela estrada / seguindo pelo rumo do sertão / quando vires a ‘casa’ abandonada / deixe-a em paz dormir / na solidão. / Que vale o ramo do alecrim cheiroso / que lhe atiras no ‘seio’ ao passar / vai espantar o bando, o bando buliçoso / das ‘mariposas’ que lá vão pousar”.
Na transposição do rio aberto e barco solto, Belchior, com compreensível licença poética, trocou do original “a cruz” por “a casa”, “nos braços” por “no seio” e “borboletas” por “mariposas”.
A música foi gravada inicialmente em 1979, no LP Soro, projeto de Raimundo Fagner, que participou da faixa com Belchior, cantando e tocando viola e violão.
No ano seguinte, em seu sexto álbum de estúdio, Objeto direto, Belchior grava novamente Aguapé, repetindo o duo com Fagner, e acrescentando, logo na abertura, trechos do conto A madrasta, do escritor e pesquisador sergipano Silvio Romero, publicado no livro Contos populares do Brasil, de 1885:
“Capineiro de meu pai / não me corte os meus cabelos / minha mãe me penteou / minha madrasta me enterrou / pelo figo da figueira que o passarim beliscou”.
O canto é belíssimo, num lamento sertanejo entoado por Belchior, Fagner e uma discretíssima participação de Fausto Nilo. E em alguns momentos do arranjo do maestro P. C. Wilcox, alinhavando-se com viola, triângulo e acordeom, trecho do Canto Gregoriano Salmo dos Exilados.
Ao contrário do poeta abolicionista Castro Alves, o trecho de Silvio Romero não está creditado no encarte.
Pelo figo da figueira que o passarim beliscou, Belchior faria hoje 77 anos de sonho, de sangue e de América do Sul.
Fotos do encarte: Maurício Albano. Escolhia-se uma para colar na capa do LP. Belchior interagia direta e objetivamente com quem ouvia seu canto buliçoso.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

para enfeitar a noite do meu bem


"Vou para a cama e não quero ser incomodada. Se alguém telefonar, não me chame. Quero dormir até morrer!", disse brincando Adiléia Silva da Rocha à empregada Rita, na manhã de 24 de outubro de 1959, depois de passar a noite com o namorado Nonato Pinheiro e amigos, bebendo, dançando e ouvindo canções na boate Little Club, em Copacabana; esticar para uma festa de grã-finos em homenagem ao Dia do Aviador no Clube da Aeronáutica, perto da Praça Quinze; e fechar a maratona no Kit Club, um bar-restaurante no final da rua Barata Ribeiro. Pararam com o sol raiando no Posto 6 e Adiléia ainda convidou a turma para subirem, ela prepararia uma bela macarronada. Mas, cansados, cada um foi para suas casas.
Adiléia era nome de batismo da nossa eterna Dolores Duran, cantora e compositora de dezenas de clássicos do samba-canção, como A noite do meu bem, Fim de caso, Por causa de você, Castigo, gênero que se destacou a partir da década de 30, e revelou Maysa, Dalva de Oliveira, Nora Ney, Ângela Maria.
O nome artístico, em homenagem à atriz estadunidense Dolores Moran, foi sugestão de Lauro Paes de Andrade, um rico e influente da sociedade carioca que, com a esposa Heloísa, promoviam grandes saraus. Eles conheceram Adiléia aos 16 anos, cantando em um concurso de calouros. Encantados com a voz da moça, a convidaram para as noites de música na mansão.
Naquela manhã de um sábado ensolarado, antes de deitar, Dolores tomou banho e brincou na banheira com a filhinha adotiva, Maria Fernanda, de um ano e meio. Por complicações de um aborto espontâneo no final de 1955, quando casada com o compositor Marcelo Neto, não podia mais engravidar. Separou-se dele por conta do machismo e atitudes violentas.
Por volta das dez da noite a empregada foi acordá-la, pois teria shows, e já estava atrasada. Bateu na porta e nada. Preocupada, entrou e encontrou a patroa morta, a mão do peito, o violão ao lado e uns rascunhos de novas canções. Nesses papeis, a letra de O negócio é amar, que sua amiga, a cantora Marisa Gata Mansa, passou para Carlos Lyra musicar. O nome dele com o telefone estava em um caderninho na cama, como um indicativo, um afeto legatário. O curioso é que Dolores sempre tentou uma parceria com o compositor e nunca dava certo.
Dolores Duran sofreu um infarto fulminante, provocado por dose excessiva de barbitúricos, cigarros e álcool. Tinha precedente de outro infarto, três anos antes, e não seguiu as orientações médicas. Dizia que queria viver intensamente tudo que tinha que viver. Continuou fumando e bebendo, tentando aliviar-se de fortes crises de depressão, e entre tantos relacionamentos frustrados, a falta de um amor verdadeiro para chamar de seu.
Cativante e espirituosa, Dolores era uma “falsa alegre”. Suas letras expressam uma angústia existencial no cenário daquela época de ouro do rádio. Tinha apenas 29 anos quando foi para cama e pediu para não ser incomodada.
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Foto: Ramon Rodrigues para capa do LP duplo em homenagem à cantora, da Copacabana Discos, 1979, uma preciosidade de reconstrução técnica com orquestra e coro em 16 canais. 

domingo, 22 de outubro de 2023

o rei da vela


Em 1940 o escritor, ensaísta e dramaturgo Oswald de Andrade apresenta sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Quinze anos antes tentou e não conseguiu. E dessa vez a intenção vinha caracterizada por polêmicas, pois o modernista acusava frontalmente a instituição de antidemocrática. Definia sua postulação como um desafio à ordem e necessidade de renovação. Um “paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga, cujo destino único é ‘ser estraçalhado’”, escreveu em um dos seus artigos para a seção Telefonema do jornal carioca Correio da Manhã.

Provocador, intempestivo, anárquico, Oswald enviou junto com a inscrição uma carta ao presidente da Academia, Celso Vieira, onde, entre outras afrontas, pergunta se “será V.S. um dos membros da quinta-coluna, que camuflados no fardão, sabotam aí dentro, as magras conquistas do espírito brasileiro?”. E para fazer alarde, manda o texto para os jornais, anexando uma fotografia ao lado de uma mulher segurando uma máscara contra gazes asfixiantes, que usou na França um ano antes, durante o ataque nazista. O que se entende como ilustração de uma outra parte da carta: “Passará pela cabeça de V.S. alertada pelos bombardeios contemporâneos, que o fim dos quarentas imortais que nas últimas décadas adormecem o espírito francês ‘sous la coupole’, pode ser um campo de concentração? Ou será V. S. daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura?”.
Ao final, no dia 24 de agosto, no resultado da eleição, Oswald de Andrade perdeu para Manuel Bandeira, concorrente da “formação inimiga”, composta também, entre outros, por Menotti del Picchia, que desistiu da candidatura em favor ao poeta pernambucano. Oswald teve apenas um voto, de Cassiano Ricardo, autor do consagrado Martim Cererê.
A Semana de Arte Moderna de 1922, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o Manifesto Antropófago, o Modernismo no Brasil, a transgressão, ousadia e inovação, tudo é sinônimo de Oswald de Andrade.
Hoje, 69 anos que ele partiu para outras semanas.
Foto: Oswald de Andrade em 1920, Acervo Marília de Andrade. Intervenção cromática de Andrea Vilela de Almeida, para a capa do livro Oswald de Andrade – Uma biografia, de Maria Augusta Fonseca, Editora Globo, 2007. 

sábado, 21 de outubro de 2023

pé na estrada


Foto: Prosopee/Wikimedia Commons

"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente”
- Jack Kerouac em On the road, 1957, seu segundo livro, relato autobiográfico das peregrinações no interior dos Estados Unidos. O trecho está no início da Terceira Parte, quando Kerouac chega a Denver, por volta de 1949, com alguns dólares economizados de uma bolsa de estudos do governo. Ele pretendia se estabelecer na cidade, mas se sentiu muito sozinho, não encontrou nenhum de seus amigos que foram para lá dois anos antes trabalhar em mercados atacadistas de frutas.
Fica uns dias e ganha uns trocados carregando, sob sol escaldante, pesados caixotes com melancia para vagões-frigoríficos, e em seguida destravá-los com uma alavanca e empurrá-los por trinta metros de trilhos para saírem. “Em nome de Deus e sob as estrelas, para quê?”, pergunta-se, caminhando ao pôr do sol, com os músculos doloridos, olhando os negros que queria ser.
O autor escreveu On the road em ritmo ininterrupto em três semanas, em 1951, numa pequena máquina com folhas de papel manteiga emendadas para não perder tempo em trocá-las, movido a benzedrina, xícaras de café e ouvindo jazz. A entrega de emoção é tanta num contrafluxo de transgressão e lirismo, que em cada página podemos ouvir as sonoridades das ruas e ver as planícies das estradas por onde Kerouac passou. O livro atravessa os Estados Unidos por inteiro, a partir da lendária Rota 66, e nos atravessa por completo a partir de uma prosa de reflexão pelo lado sombrio do sonho americano. Obra-prima que influenciou todos os movimentos de vanguarda e o comportamento da juventude da metade do século XX.
Destaquei o belo trecho acima em contraponto a citações na Internet atribuídas a Kerouac, falsamente retiradas do livro. Uma que diz que "Os únicos que me interessam são os loucos, aqueles que são loucos por viver”; outra que apregoa que “As pessoas que são loucas o suficiente para pensarem que podem mudar o mundo, são as que de fato o fazem”, esta, na verdade, dos publicitários criadores da campanha de lançamento da Apple, em 1997. Pasmem! Não existe nenhuma dessas passagens. Algum irresponsável costumizou o conceito de loucura de Kerouac e outros tantos replicam no impulso da superficialidade e pressa das redes sociais. Não leram Kerouac nem meteram o pé na estrada.
Acima, a mochila que o escritor usou nas viagens e guardava as anotações que serviram de base para o livro, vista na exposição Sur la route de Jack Kerouac : L'épopée, de l'écrit à l'écran, no Museu de Letras e Manuscritos de Paris, 2011.
Hoje, 54 anos sem o mochileiro que partiu aos 47. 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

a mais completa definição


Foto: Arquivo Prefeitura de Monteiro, PB

"Poeta é aquele que tira de onde não tem e bota onde não cabe."
- Severino Lourenço da Silva Pinto, mais conhecido como Pinto do Monteiro, repentista paraibano (1895-1990).


 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

versos em alto mar


Logomarca: criação Agência 6D

Em 1938, o jovem de 24 anos Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes, o futuro 'poetinha', ganhou uma bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford.

Em setembro daquele ano, a bordo do navio Highland Patriot, escreveu o belamente dolorido Soneto da separação, motivado pela saudade da namorada Tati, que se tornaria sua primeira esposa.
Os versos partem de uma ausência, e não exatamente de uma ausência que nos parte quando tudo, “de repente, não mais que de repente”, se faz “triste o que se fez amante”. Mas por licença poética, e desespero de causa mesmo, se conjuga nas duas ausências... quando se faz “da vida uma aventura errante”.
Vinicius saltava sem rede de proteção em todos seus relacionamentos. E tornava-se afetivamente dependente e incurável. Toda sua poesia cauciona essa dedicação e arrebatamento. Afinal, aquela a quem se ama “é como o pensamento do filósofo sofrendo”, delineia no poema A brusca poesia da mulher amada, também de 1938.
Quando morava em Itapuã, nos anos 70, o poeta chegava às vezes ao atelier do amigo Carlos Bastos, amuado e deprimido. O artista plástico, preocupado, via naquele sessentão um adolescente apaixonado. Dizia para não se entregar tanto, “se distancie um pouco para amar melhor”. Mas Vinicius queria apenas ser ouvido, com carinho, não escutar conselhos. A obstinação sentimental do poeta era parte essencial do amor, como insumos para amar “muito e amiúde” e “morrer de amar mais do que pude”.
E no amor, como no samba, é preciso um bocado de tristeza, senão, não se faz um samba não.
Hoje, 110 anos de seu nascimento. Imortal, posto que é chama.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

o medo do mundo


Foto: Abed Khaled / AP Photo


Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Congresso Internacional do Medo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Sentimento do mundo, 1940.
À época em que foi escrito, as bombas da Segunda Guerra Mundial faiscavam nos céus da Europa e respingavam no céu itabirano do coração do poeta. Tão longe, tão perto. Como agora, quando não se canta o amor nos céus do Oriente Médio. Apenas o medo, apenas a dor. O medo que nos chega pela Internet na velocidade mortal dos misseis.
Belchior citou o poema em sua canção Populus, no disco Coração selvagem, 1977: “No congresso do medo internacional / ouvi o segredo do enredo final (...) Documento oficial em testamento especial / sobre a morte, sem razão”. O medo sempre ameaçou o mundo, porque tudo está sempre em suspense com a estupidez humana. O uso transversal das repetições. O alerta permanente.
Na dramática imagem abaixo, mulheres e crianças palestinas feridas aguardam ser atentidas nos escombros do que sobrou do hospital al-Shifa, na cidade de Gaza, atacado ontem por um míssil. De Israel ou da Jirad Islâmica, a insanidade como documento oficial eliminou centenas de abraços submersos em medo.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

metomínia de um povo


"sua gula e jejum
sua biblioteca..."

- Versos da terceira estrofe de José, de Carlos Drummond de Andrade, no livro de título homônimo, originalmente publicado em Poesias (Editora José Olympio, 1942), coletânea que reúne também suas três primeiras obras, Alguma poesia, Brejo das almas e Sentimento do mundo.
José, o livro, com apenas 12 poemas, expressa e mescla a solidão do homem na metrópole e as questões pessoais do autor.
José, o poema, especificamente, é a mais pura elocução de abandono e desesperança do indivíduo na cidade, personificado no nome mais comum da nossa língua e que tem sentido coletivo.
Estruturado na verticalidade de versos livres, linguagem popular e ambiente cotidiano, Drummond repete o refrão “E agora, José” como um mantra de identificação, abraço e compartilhamento de sentimentos. Foi escrito no contexto e cenário dos escombros da Segunda Guerra e o Brasil do Estado Novo ditatorial de Vargas. O passado era refúgio, “quer ir para Minas, / Minas não há mais”, o futuro para onde se marcha não existe porta, “José, para onde?”.
No próximo dia 31, 121 anos de nascimento do poeta. Você não morre, você é duro, Drummond.
Foto: Luís Carlos/Agência JB, anos 70, publicada no livro Drummond Frente e Verso - Fotobiografia de Carlos Drummond de Andrade, Edições Alumbramento, 1989. 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

a última regência


No dia 4 de agosto de 1895, o compositor, pianista, organista e regente cearense Alberto Nepomuceno realizou um concerto histórico no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, com um repertório de canções de sua autoria. Houve uma reação imediata na imprensa. Consideravam que a língua portuguesa era inadequada ao bel canto, termo relacionado ao canto italiano. O pianista e crítico Oscar Guanabarino foi quem mais implicou. Alberto Nepomuceno manteve sua posição e sustentou o embate. Nesse período que cunhou a frase: “Não tem pátria um povo que não canta em sua língua”.

O músico soube com grandiosidade empregar a síntese de influência e ecletismo. Maxixe, lundu, ritmos africanos, estão presentes em suas criações, assim como habanera, tango e polcas. Compôs em 1887 o batuque Dança de Negros, uma das primeiras com motivos étnicos. Precursor do nacionalismo musical, Nepomuceno é o mais consistente nome na virada de concepção da música brasileira do século 19.
Em 1916 sofreu um grande desgosto: a anulação arbitrária, por parte do governo do presidente Venceslau Brás, de um concurso na Escola Nacional de Música, que presidia há mais de dez anos. Em conflito com a instituição, subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, demitiu-se. E afastou-se dos palcos. Estava separado de Walborg Bang, pianista norueguesa, que conheceu em viagem à Europa, casaram-se em 1893 e tiveram quatro filhos. Com sérias dificuldades financeiras e muito adoentado, foi morar na casa do amigo Frederico Nascimento, violoncelista português, no bairro de Santa Teresa.
Nepomuceno “embranqueceu, tinha o olhar adormecido e os seus amigos viam, aflitos, que caminhava a passos largos para a morte”, conta Luiz Heitor de Azevedo, em seu livro 150 anos de música no Brasil (página 173, edição de 1956). Os passos chegaram rápido na noite de 16 de outubro de 1920. O professor Octavio Bevilacqua, sentado ao seu lado no leito final, emocionou-se ouvindo-o cantar sua última e inconclusa canção composta sobre o poema A jangada, do conterrâneo Juvenal Galeno. Os versos tornaram-se um imperceptível sussurro, substituídos vagarosamente por derradeiros suspiros: “Minha jangada de vela / que ventos queres levar? / Tu queres vento de terra, / ou queres vento do mar?”...
Alberto Nepomuceno tinha apenas 56 anos quando embarcou nessa jangada, simbolicamente em direção de volta ao Ceará. Foi sua última regência “no meio das ondas / nas ondas verdes do mar”.
Foto de autor desconhecido, provavelmente 1911, Acervo Alberto Nepomuceno / Coleção Museu do Ceará.

 

domingo, 15 de outubro de 2023

as cidades de Calvino


Em As cidades invisíveis, obra máxima de Italo Calvino, o personagem Marco Polo, jovem veneziano viajante, relata ao Imperador Kublain Khan suas impressões sobre as mais de cinquenta cidades que visitou.
Publicado em 1972, o romance em metanarrativa constitui-se em um conjunto de metáforas que traduzem bem a relação das pessoas com os lugares, o que esse encontro do desenho urbano com a geografia afetiva reflete nas condições e inquietações humanas, como memória, crenças, esperança, velhice, morte.
O próprio Calvino está organicamente conduzido nessa narrativa, pela sua história, pelo diagrama que as cidades inventadas traduzem sua visão de mundo. O escritor nasceu em 15 de outubro de 1923 em Santiago de las Vegas, que hoje pertence ao município de Boyeros, na província Cidade de Havana, Cuba, à época governado por um poeta, Alfredo Zayas y Alfonso, do Partido Popular Cubano. Os pais de Calvino, cientistas italianos, passavam uma temporada na ilha no começo daquela década. O escritor cresceu em San Remo, Itália, e em 1941, em Turim, abandona a Faculdade de Agronomia para engajar-se na Resistência Italiana e lutar contra o fascismo. Formando-se depois em Letras, Calvino viveu em Siena, na região da Toscana, até sua morte, em 1985, aos 61 anos.
As cidades de Calvino, de livro e vida, são personagens em sua arquitetura, memória e desejo. Nelas parece que morou um pouco de cada um de nós. Ou que gostaríamos de ter morado. Ou que sonhamos um dia morar. Mesmo que “o último porto só pode ser a cidade infernal”, como diz Kublain Khan a Marco Polo no final do livro (edição de 1994, da Companhia das Letras), ao que ele rebate: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui.”
Voltando às primeiras páginas, no capítulo de abertura, As cidades e a memória, um dos mais belos trechos de toda a bela e vasta literatura de Italo Calvino:
“Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes.”
Hoje, um século de nascimento do escritor que canta todas as manhãs na literatura.
Acima, Calvino em sua casa, fotografado por Angelo Raffaele Turetta, primavera de 1982.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

o habitante de Pasárgada



Em 1959 o cineasta Joaquim Pedro de Andrade realiza o seu primeiro filme, O poeta do Castelo, sobre Manuel Bandeira. O curta-metragem é uma preciosidade do cinema brasileiro, em sua composição e estrutura narrativa. Em 10 minutos, acompanhamos um dia na vida do poeta, que mora sozinho em um modesto apartamento no Edifício São Miguel, na avenida Beira-mar, no histórico bairro Castelo, no centro do Rio de Janeiro.
Imortal da Academia Brasileira de Letras, professor da Faculdade Nacional de Filosofia, Bandeira é apresentado na singeleza do seu cotidiano: comprando o jornal, lendo, escrevendo, fazendo o café, esquentando o leite, preparando a torrada; os cômodos e móveis modestos, a extensão do beco deserto com o lixo num canto, a verticalidade dos prédios na estética rude cinemanovista. Joaquim Pedro preferiu a sinceridade da frugalidade à pompa e salamaleques em torno de um poeta consagrado. A dessacralização em estado bruto e belo. O próprio Bandeira fez ajustes no roteiro com o diretor e escolheu os trechos de poemas que narra em off.
A sequência final é primorosa: o poeta levanta-se da cama e arruma-se para ir a uma sessão na Academia, ali perto. Mas a leitura do seu famoso poema sugere que ele vai embora para Pasárgada, onde “a existência é uma aventura”.
Bandeira faleceu na tarde de 13 outubro de 1968, aos 82 anos.
55 anos que poeta não voltou de Pasárgada.
O filme em cópia restaurada pela Cinemateca Brasileira em 2005:

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

dias das crianças


"Existe algo mais importante do que a lógica: é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada."
- Alfred Hitchcock, em entrevista ao jornal Le Monde, 1959.
A imaginação de crianças nigerianas na cidade Naija. Elas fazem cinema com uma ideia na mão e a câmera na cabeça.
Foto: Olayemi Olatilewa, jornalista, escritor iorubá nigeriano, 2017.