foto Julio Agostinelli, Acervo Iconographia Cia da Memória.
"Tem som no microfone?
Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na 'Roda Viva' e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker!"
Assim esbravejou Caetano Veloso, no III Festival Internacional da Canção, em 1968, quando sua música É proibido proibir foi recebida com vaia pelo público no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA).
A explosiva interrupção do cantor durante a apresentação refletia claramente uma crítica ao governo naqueles tumultuados anos a caminho da decretação do AI-5, o golpe dentro do golpe que aconteceu em dezembro daquele o ano que não terminou, como diz o título do livro de Zuenir Ventura.
A primeira-dama dos palcos brasileiros é citada no trecho do discurso por ter, corajosamente, participado e tomado a frente da comissão de artistas que foi à residência do então governador Abreu Sodré, exigir providências sobre o ataque ao Teatro Galpão.
Os desdobramentos repressivos da ditadura militar atingiram todos os setores culturais do país. No teatro, Cacilda Becker colocou o rosto além dos palcos e não aceitava tapas como militante assumida das causas de sua classe. Sob acusação de que seus papeis nas peças que escolhia e a forma como interpretava tinham conotações subversivas, foi sumariamente demitida dos trabalhos na TV Bandeirantes.
No mesmo assustador 1968, Augusto Boal dirige o espetáculo Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos de vários dramaturgos, como Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro César Muniz e o próprio Boal. Com trilhas compostas por Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo e Ary Toledo, a montagem, discutindo o tema urgente como “O que pensa o Brasil de hoje?”, uniu o meio teatral de São Paulo com a classe carioca na luta contra as ações autoritárias da Censura. Logo no dia da estreia, em julho, a peça sofreu 71 cortes.
Integrante do elenco, Cacilda Becker, resoluta e belamente impávida, caminha até o proscênio e se responsabiliza pela apresentação do texto na íntegra. Aquela atitude corajosa de desobediência civil, de rebeldia cívica, petrificaram os agentes federais censores ali sentados na primeira fila. A força na voz inabalável daquela mulher atriz fizeram aqueles “machos brancos sempre no comando” acatarem a decisão e assistirem ao espetáculo sem darem um pio e recolherem as lâminas cretinas em suas pastas.
No primeiro semestre de 1969 Cacilda Becker atuava em Esperando Godot, no TBC, com direção de Flávio Rangel. O clássico do irlandês Samuel Beckett, um exemplar do teatro do absurdo, retrata sintomaticamente nas entrelinhas o absurdo do recrudescimento em que o país mergulhava. A atriz interpretava o personagem principal, Estragon. Ela substantivo feminino retira o pronome masculino e veste com alma o corpo do personagem, aquela que personifica a esperança, aquela que espera God(ot), aquela que aguarda Deus, aquela que é o caminho em seu nome, como na rubrica que divide a peça em três atos-mulheres: Estrada, Árvore, À Noite.
Numa apresentação em maio, justo no intervalo entre o primeiro e o segundo ato, Cacilda Becker sente-se mal, sofre um derrame cerebral. Às pressas, é levada ao hospital e é internada ainda com as roupas do personagem. Leva Estragon, mas o deixa na história do teatro brasileiro. Foi a primeira montagem profissional da peça no Brasil, depois de duas amadoras, uma da Escola de Arte Dramática de SP, com direção de Alfredo Mesquita, e outra de Luiz Carlos Maciel, em Porto Alegre, ambas na década de 50.
Depois de 38 dias, na manhã de 14 de junho, falece. Aliás, faleceram, pois como disse Drummond num trecho do poema “Atriz”, a ela dedicado, “A morte emendou a gramática. / Morreram Cacilda Becker. / Não era uma só. Era tantas.”
Cacilda não retornou ao palco naquela noite. Como num parentesco longínquo nos sobrenomes do dramaturgo e da atriz, o diálogo final da peça, entre os personagens Estragon e Vladimir, parece fazer uma conexão entre sentido e despedida:
- Vladimir: Então, devemos partir?
- Estragon: Sim, vamos.
Eles não se movem. Apagam-se as luzes. Fecham-se as cortinas.
E por falar nisso, hoje é comemorado o Dia do Ator. Então, viva Calcilda Becker e todas as Atrizes! “Eu não tenho pátria, tenho mátria!”
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Abaixo, a atriz em uma cena de Maria Stuart, de Friedrich Schiller, direção de Ziembinski, 1955.
foto Julio Agostinelli, Acervo Iconographia Cia da Memória.
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