terça-feira, 25 de agosto de 2020

a primeira foto

No começo de 1978 um jovem argentino realizava em um só espaço e tempo dois de seus sonhos: estar dentro de um set de filmagem e ao lado de um de seus ídolos na literatura. Aos 18 anos Daniel Mordzinski era assistente de direção do documentário longa-metragem sobre Jorge Luis Borges, Borges para milhões, de Ricardo Wullincher.
O filme, que participou da 2ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mostra à maneira da literatura do célebre escritor, uma narrativa alucinante, um clima fantástico na composição dos enquadramentos, o que emoldura com perfeição os depoimentos firmes, as análises lúcidas e seguras de Borges sobre tudo.
O escritor entendia de cinema na mesma proporção que dominava o universo esplêndido de sua escrita em poemas, contos e ensaios. Teórico, com textos publicados em revistas e periódicos, tinha fascínio pela grandiosidade humana de Carlitos (“Quem ousaria ignorar que Charles Chaplin é um dos deuses mais seguros da mitologia de nosso tempo?”), passando pela beleza resplandecente das atrizes (“o universo finito mesmo que ilimitado das costas zenitais de Greta Garbo”) aos conceitos inovadores de montagem e enquadramentos (“Atrevo-me a suspeitar, porém, que ‘Cidadão Kane’ perdurará como perduram certos filmes de Griffith ou de Pudovkin”). O cineasta e crítico argentino Edgardo Cozarinski publicou em 1983 o livro Do Cinema, onde reúne e comenta dezenas de textos de Borges.
E o jovem Daniel ali no set, fascinado naquele recorte mágico, a câmera filmando e ouvindo Borges. Um dia o rapaz pegou emprestada a máquina fotográfica do pai e daria um jeito de fazer um retrato do seu ídolo durante as filmagens. O que captou, de forma despretensiosa, ficou como uma das fotos mais expressivas e divulgadas do escritor. E mais: aquela primeira fotografia despertou nele a habilidade, um savoir-faire afetivo, em registrar imagens de ilustres e novos nomes da literatura. Tornou-se o “fotógrafo dos escritores”. Gabriel Garcia Márquez, Adolfo Bioy Casares, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato, José Saramago, Julio Cortázar, Salman Rushdie, Umberto Eco, os nossos Jorge Amado, Zélia Gattai, Luiz Fernando Veríssimo, Adriana Lisboa, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian, Adriana Lisboa, são alguns imortalizados pelas lentes de Daniel Mordzinski.
- No início, devo reconhecer, eles me impressionavam muito. É difícil ter menos de vinte anos e estar diante de Borges, o grande mito da literatura contemporânea. Mas posso confessar também que a vida me deu a oportunidade de ser amigo de alguns dos grandes. E sem perder o respeito, creio ter aprendido a tratá-los com naturalidade e isso me permite uma aproximação mais autêntica, menos litúrgica – disse Mordzinski em uma entrevista ao jornal O Globo, em setembro de 2014, quando esteve no Festival Literário de Araxá, Minas Gerais, para a exposição Quartos da escrita - Retratos de escritores em hotéis. No ano seguinte voltou ao Brasil para outra série no 1º Festival Literário Internacional de Belo Horizonte.
As fotos de Mordzinski fazem dos autores os personagens de uma literatura humana, de maneira mais próxima de quem leu e agora vê na plasticidade de um enquadramento. Essa definição e impressão estão nas páginas de quase vinte livros que publicou, individuais e coletivos, como Retratos de escritores mexicanos, 2009, A literatura na lente de Daniel Mordzinski, 2016, Un viaje al corazón de la literatura iberoamericana, 2018.
Hoje, para celebrar os 121 anos de nascimento de Jorge Luis Borges, Mordzinski coloca a foto seminal na parede da memória.


fotos Miguel Manso

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