domingo, 23 de agosto de 2020

coração Celestino

Na tarde de 23 de agosto de 1968, uma sexta-feira, o cantor e compositor Vicente Celestino chegou ao Hotel Normandie, em São Paulo, onde estava hospedado com sua esposa, a atriz, cantora, compositora e cineasta Gilda de Abreu. Vinha do ensaio de Canção de paz, composição de Gilda e Marina Ghiaroni, de 1966, e à noite cantaria na estreia do programa Tropicália ou Panis et Circenses, na TV Record.
A concepção vanguardista, antropofágica, e direi até dadaísta, do movimento Tropicália incluía esse dispositivo ousado, misturando na mesma inquietação de inovações estéticas radicais, manifestações tradicionais da cultura brasileira. Junto a Celestino estariam vindo desse mesmo sistema solar do nosso cancioneiro, Dalva de Oliveira e Emilinha Borba.
Vicente Celestino entrou no quarto do hotel ainda indignado com o que vira no ensaio. O disco-manifesto da Tropicália fora lançado há pouco menos de um mês, e a turma com seus acordes dissonantes preparava para aquela noite histórica uma espécie de apresentação-happening. Na hora de cantarem Miserere Nóbis, os intérpretes Gilberto Gil e Mutantes estariam dentro de uma encenação que reproduzia a Santa Ceia, tudo com a direção vulcânica de José Celso Martinez Corrêa. À cabeceira, Gil caracterizado como um Jesus Cristo alegórico, cantando aos apóstolos de parangolés que em vez da mesa “molhada de vinho e manchada de sangue”, “tomara que um dia de um dia não / na mesa da gente tem banana e feijão”.
Celestino esbravejou de imediato: “O Cristo negro ainda posso admitir, mas as bananas representando o pão sagrado, de jeito nenhum! É um desrespeito!”. Colocou o paletó e saiu enfurecido para o Normandie. E ficaram os tropicalistas pasmos na incerteza se ele voltaria para se conciliar com sua Canção de paz. Todos esperavam que sim, afinal, além de cantar, Vicente Celestino ouviria pela primeira vez sua célebre canção matricida Coração materno, de 1937, ser interpretada por um jovem de 26 anos, Caetano Veloso, que trazia debaixo dos caracóis de seus cabelos, a memória de ouvi-la nas radiadoras de Santo Amaro.
Faixa 2 do lado A do álbum seminal, a gravação de Caetano, ao contrário do que se poderia imaginar, com baterias, guitarras distorcidas e barulhos chocalhando em desconstrução conceitual, o que ouvimos é uma suave voz quase feminina do cantor narrando o drama do campônio que “encontra a mãezinha ajoelhada a rezar / rasga-lhe o peito o demônio / tombando a velhinha aos pés do altar”. Mesmo assim, o grandiloquente arranjo de cordas de Rogério Duprat, com a melodia complexa, ondulante e emotiva, se contrapõem à gravação original da voz de tenor de Vicente Celestino e sua exaltação de erudição máscula na letra.
Em sua biografia Minha vida com Vicente Celestino, lançada em 2003, Gilda de Abreu conta nas páginas 193 e 194, que logo após o jantar no hotel, subiram e o marido deitou-se para descansar um pouco. Minutos depois levantou-se para vestir o smoking e saírem. “Gilda... não fique nervosa, mas não estou me sentindo bem...”, ouviu de Celestino, ofegante.
O cantor abriu a janela procurando respirar. Virou-se e caminhou até a mulher e a abraçou, suplicando ar. Jogou-se na cama desfalecendo. Gilda ligou desesperada para a portaria, que telefonou para assistência médica. A ambulância cortou o trânsito naquele horário movimentado. Chegou vinte minutos depois. Não deu tempo. Vicente Celestino inerte na cama por um ataque cardíaco.
O coração paterno da canção não ouviu o coração filial e reverencial de Caetano.
Acima, Celestino e Gilda em meados dos anos 60. Foto de autor desconhecido

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