sábado, 22 de agosto de 2020

diário de uma saudade

“As pessoas têm uma visão de que ele tinha uma personalidade exuberante, mas ele começava a trabalhar na máquina de escrever às 8h, ia até as 12h, almoçava e depois retomava. O problema é que havia sido uma longa batalha mesmo. E aquilo afetou a saúde dele. Eu costumo dizer que, às vezes, quando o guerreiro repousa, o seu corpo não resiste. Ele não resistiu.”
Trecho de uma entrevista da artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta Paula Gaitán à revista Marie Claire, em 15/12/2009, por ocasião do lançamento do documentário Diário de Sintra, um relato poético sobre o tempo em que viveu com o marido, Glauber Rocha, e os filhos na pequena cidade portuguesa.
No final de 1980 o cineasta lançou o que veio a ser o seu último filme, A idade da Terra. Inspirado em um poema de Castro Alves, a surpreendente e operística obra caleidoscópica, com um tom profético e religioso, faz um retrato da situação política e cultural do Brasil daquela década de 70, envolta no manto sombrio do AI-5, dos acordes dissonantes dos generais plantonistas da repressão Médici, Geisel e Figueiredo.
Indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, o filme não teve a receptividade merecida no Brasil. Glauber se abateu muito, e com o coração exilado partiu com a família para Portugal. Soube-se em 2014 através de documentos revelados pela Comissão da Verdade, que o ditadura militar pretendia eliminá-lo, tinha até data marcada: setembro de 1981. Glauber era monitorado pelas entrevistas que dava em publicações da Europa criticando o governo. “Seus depoimentos são um violento ataque ao país", apontava um dos relatórios produzidos pelo Centro de Informações da Aeronáutica.
Sintra é um bucólico município de veraneio, com os telhados de suas casas banhados pela brisa do Atlântico. De lá Glauber atravessaria o olhar por cima de tanto mar, tanto mar, e muitas léguas a separá-lo dos sobrados da velha São Salvador. Sintra abrigou poetas românticos do século 18, como o inglês Lord Byron, agora acolhia o poeta barroco revolucionário do cinema brasileiro.
O documentário de Paula Gaitán não é um filme sobre Glauber Rocha. É um filme com Glauber Rocha. E nada mais poderoso sobre ele do que essa pulsação orgânica. Ali está o cineasta com o peito dolorido, mas com o coração fértil escrevendo roteiros do teyceiro mundo, pensando kynema brasileiro, tercendo conceitos filosóficos, dedicado e generoso no cotidiano com a família, brincando com as crianças, cantando com a pequena filha Ava.
Narrado em primeira pessoa, a voz de Paula Gaitán retorna à Sintra em um ensaio de narrativa não linear, como não linear é a memória, “ela é cheia de faltas e vazios, partes escuras que você não consegue alcançar”, como disse a cineasta em outro trecho da entrevista. Sensorial, o filme parte do esquecimento e reconstrói os dias fragmentados, cola os mosaicos da ausência, desdobra o lamento da perda do grande amor, pranteia a viuvez que é dela, mas que reflete no espelho uma saudade que a todos pertence: Glauber é a possibilidade da invenção e da liberdade que deixou para o cinema brasileiro.
Com a saúde comprometida por uma broncopneumonia, o cineasta é transportado de uma clínica em Lisboa para o Brasil. Faleceu dias depois do desembarque, em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos.
Glauber "não morreu da vontade de Deus; morreu de uma doença chamada Brasil", como chorou sua mãe, dona Lúcia Rocha.
Na foto acima, Paula fotografa o marido pelo reflexo de um espelho em Sintra.

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