sábado, 29 de agosto de 2020

ela dançando à beira do vulcão

Na Itália pós-Segunda Guerra uma jovem lituana, Karen, para evitar a deportação aceita casar-se com um rude pescador siciliano, Antonio, que conheceu no campo de concentração. Ele a leva para viverem na sua ilha natal aos pés de um vulcão, Stromboli.
A vida naquele pedaço de terra no Mediterrâneo é dura e estéril, não há horizontes para todos os lados. Os moradores ainda nos mais rígidos padrões morais, senhoras conservadores em seus trajes pretos e olhares ilhados em silêncio e desconfiança ao que chega de longe. Karen sente a hostilidade por onde passa, o desdém por ser uma estrangeira que não se adapta aos costumes. Diante o conflito com marido que não ama e a incompatibilidade com a população que não a chama, decide fugir daquela nova prisão a céu aberto.
Esse é o enredo de Stromboli – Terra di Dio, dirigido por Roberto Rossellini, em 1949. A fotografia crua, os esquadramentos simétricos, a beleza nórdica da atriz Ingrid Bergman sob o sol insular, são alguns elementos narrativos de um dos melhores exemplares do cinema neorrealista.
Na década de 40 Ingrid Bergman já era uma das maiores estrelas de Hollywood, com mais de 20 filmes, entre eles o mítico drama romântico Casablanca e o épico biográfico Joana d'Arc. A atriz encantou-se com três grandes filmes de Rossellini, Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, ano zero. Disse a um amigo que desejava muito trabalhar com ele. Ingrid escreveu uma carta ao cineasta manifestando seu interesse e pouco tempo depois segue para o set à beira do vulcão.
Comprometidos em seus respectivos casamentos, Rosselini e Ingrid se apaixonam durante as filmagens. Assim como Karen perturbou os costumes dos moradores da ilha, a atriz abalou o continente ao assumir a relação extraconjugal. Após as filmagens, ambos divorciam-se de seus referentes cônjuges, casam-se e juntam os cetins.
Se as senhoras da ilha Stromboli no filme se incomodaram com casamento arranjado do pescador Antonio com aquela estrangeira translúcida, na vida real o neorrealismo foi mais surpreendente. Grupos religiosos exaltados, clube de mulheres de chás da cinco, legisladores de várias cidades dos Estados Unidos, consideraram aquele caso um acinte à tradição e à família cristã. Exigiram das autoridades que o filme fosse proibido, sumariamente. Ingrid Bergman foi denunciada como “uma influência poderosa para o mal” no plenário do Senado norte-americano no célebre discurso inflamado do senador Edwin C. Johnson, eminente político do Partido Democrata que fora governador do Colorado nos anos 30.
Stromboli teve, por consequência, problemas de distribuição com a RKO Pictures, as cópias foram editadas à revelia de Rossellini, com 20 minutos a menos da versão italiana. O embate acabou levando o diretor e a produtora a tomarem medidas legais entre si sobre os direitos de distribuição internacional do filme.
E Ingrid Bergman foi literalmente banida de território norte-americano, sua carreira em Hollywood interrompida e só conseguiu voltar em 1956, com o filme Anastácia, a princesa esquecida, de Anatole Litvak, que lhe deu o Oscar de melhor atriz. A relação com Rosselini durou dez anos, seis filmes e três filhos, Roberto e as gêmeas Isabella e Isotta.
No final da década de 70 a atriz foi diagnosticada com câncer nos seios e precisou fazer duas mastectomias. Recusou-se a seguir as orientações médicas para largar o fumo e a bebida. Faleceu de infarto no dia do seu aniversário de 67 anos, em 29 de agosto de 1982, dançando e comemorando a data com uma taça de vinho, um espumante e um cigarro.
O músico brasileiro Alvin L., em homenagem ao cerne poético do filme, compôs a bela canção Stromboli, que Marina Lima gravou no disco O chamado, em 1993, e exprime a relação entre a personagem e os últimos momentos da atriz:
"e ela dançando à beira do abismo, e ela dançando à beira do vulcão..."

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