terça-feira, 25 de agosto de 2020

meu reino por uma canção

foto Acervo Salif Keïta, 2005
“Quando ouvi Salif Keïta, dancei...”, diz Chico César em À primeira vista, aquela do refrão djavaniano “amarazáia zoê, záia, záia / ahin hingá do hanhan...”, gravada em seu primeiro disco, Aos vivos, de 1995.
A história desse grande músico maliano é emocionante. Nascido em uma família fundadora do Império Mali, tinha tudo para não ser cantor, e viver mesmo de salamaleques e os criados mudos abrindo portas para a majestade passar. Essa “tarefa” de cantar, pela tradição da cultura daquele país da África Ocidental, pertence a outro tipo de pessoas, ou como chamam por lá, ”griots”, incumbidos com a arte de contar histórias, lendas, e, de certa maneira, informar e educar. Não deixa de ser, e configurar, uma estrutura social, porque evoca uma genealogia e história de seu povo. Guardando as devidas proporções, é como os nossos repentistas nordestinos, por serem guardiões da tradição oral.
Mesmo com esse valor respeitado dos artistas populares, um membro do Império maliano, como Salif Keïta, tem reputação nobre, não lhe cabe a incumbência. Mas sua arte ultrapassou esse conceito, rompeu os limites da linhagem, e a música foi abençoada com o talento desse grande compositor, que hoje completa 71 anos de idade.
Junta-se a esse detalhe na vida de Keïta, o fato de ter nascido albino, como nossos Hermeto Pascoal e Sivuca. Uma raridade naquela região. Raro e amaldiçoado. Tal condição caracteriza um sinal de azar na cultura dos maiores grupos étnicos do ocidente africano.
Em 1968 um golpe militar em Mali liderado pelo tenente Moussa Traoré derrubou o governo socialista de Modibo Keïta, o primeiro presidente da Federação Mali, formada com Senegal depois que se libertaram da colonização francesa em 1960. A orientação de independência de Modibo Keïta do controle da União Soviética, com a finalidade de criar uma espécie de socialismo africano, complicou a situação econômica do país. O tenente golpista aproveitou a instabilidade, juntou outros militares com suas túnicas dashiki brancas, e a força se fez sobre o povo, com todo o mal que a força sempre faz. O presidente deposto foi preso e nove anos depois encontrado morto, por comida envenenada.
Salif Keïta com seus balafons, djembês, koras e outros instrumentos típicos, contornava como podia a situação, compondo e se apresentando com outros músicos. Já não bastava o fato de ser hostilizado por renegar a nobreza e ser cantor, malquisto por sua pele transparente, agora vivendo sob tutela de generais. A barra pesou e em 1973, quando tudo era ausência, não esperou, pegou sua banda Les Ambassadeurs e fugiram para Costa do Marfim.
Em meados da década de 70 Salif Keïta conseguiu reconhecimento internacional com seu canto de paz. Recebeu até um prêmio tradicional da vizinha Guiné, o National Order, entregue pessoalmente pelo presidente Sékou Touré, líder carismático e um dos primeiros nacionalistas comprometidos com a libertação de seu país da colonização francesa. Tudo a ver com o coração libertário de Salif Keïta.
O tempo em que viveu na Costa do Marfim foi um salto para o cantor. Quando não tinha nada, ele quis. Seu primeiro disco, Soro, um belo álbum com apenas seis longas faixas com a mais verdadeira alma melódica de seu povo, repercurtiu na Europa, inserindo-se no que se caracterizaria mais tarde como world music. Quando o olho brilhou, entendeu o poder que a arte tem como libertação.
Feito ave de arribação, pegou seus instrumentos e foi para o continente europeu. Quando deu por ele, estava na França, onde mora desde 1984. Salif Keïta fez o viés da posse, colonizou os franceses com sua música, fez usufruto do território do coração de todos com quase vinte discos gravados.
Com o álbum Soro na Costa do Marfim Salif Keïta criou asas e voou. E o paraibano de Catolé do Rocha quando ouviu, dançou.
foto Acervo Salif Keïta, 2005

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