segunda-feira, 31 de agosto de 2020

eu vou ficar nessa cidade


E o menino seguia na madrugada para a estação
puxado pelo laço dos dedos da tiavó

na linha reta da rua
                            iluminada pela lanterna
                            de seu pedro
                            (uma mão no foco
                             outra na cabeça com as malas)

no silêncio longo da calçada
                                        rimado com o galo
                                        de seu antônio
                                        (um animal que latia
                                        outro que miava nos muros)

no embarque no primeiro vagão
                                              sentado à janela
                                              de seu olhar
                                              (uma paisagem que sumia
                                              outra que chegava)

fortaleza seria logo ali
                            depois da bica do ipu
                            passando o arco de sobral
                            chegando nas bananeiras de caucaia

fortaleza seria logo além
                            da saudade do quintal de ibiapaba
                            da lembrança da cancela da fazenda
                            da memória da casa de oitão

fortaleza seria logo aquém
                            do meu pai que esperava
                            de minha mãe que guardava
                            do irmão que me olhava

a cidade grande faria o menino ficar espichado.
.................................................................................
Um fragmento do meu próximo livro, Trem da memória – um poema, quando o menino vai de vez do sertão para a capital.
prefácio Valdi Ferreira Lima
coordenação editorial Alan Mendonça
Editora Radiadora
..................................................................................
Um frame, granulado pela memória, do meu filme O último dia de sol, 1999.
foto Deise Jefinny

domingo, 30 de agosto de 2020

tempo de barbárie


“Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes: barbárie, devastação.
O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão”.

- Belchior em Bahiuno, faixa do disco homônimo de 1993, musicada por Francisco Casaverde.
Em 10 de setembro de 1993 o jornal Correio Braziliense publicou uma entrevista com Belchior em página inteira no Caderno Dois. O cantor e compositor cearense esteve na capital federal para o show de lançamento do disco.
E lá sigo eu por essas ilhas cheias de distâncias que é Brasília, em direção à Sala Martins Pena do Teatro Nacional para rever e abraçar o amigo conterrâneo vindo do interior, ouvi-lo cantar sob as luzes sem medo de nada e contar histórias talvez iguais às minhas, jovem que desceu do norte pra cidade grande.
Itamar Franco estava há quase um ano na Presidência da República, depois do impeachment do abjeto Collor. Na entrevista, concedida ao jornalista Irlan Rocha Lima, Belchior, em resposta sobre a realidade nacional daquele momento, disse que “A confusão é geral, mas acredito que, antes de tudo, precisa-se restaurar a cidadania. Há um fosso intransponível entre as elites, sejam elas políticas, governamentais e empresariais, e o povo. A resolução das questões estruturais do País passa pela política, mas os políticos que estão aí são incapazes, incompetentes para essa tarefa.”
Sem imaginar como estaria o Brasil 27 anos depois, e muito menos querendo ser o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia, a análise de Belchior cabe bem, e infelizmente, nestes tempos milicianos do Ano II da Era Bozolítica.
Descendo ao inferno de Dante, guio-me pelos versos de Belchior por alguns círculos, vales, fossos e esferas de hoje, assim como Virgílio guiou Alighiere do purgatório ao paraíso pelas mãos de Beatriz:
- quando há perigo institucionalizado na esquina e policiais cumprem o maldito dever de matar e o sinal está fechado pra nós que não temos mais 25 anos de sonho e de sangue;
- quando não é mais tão difícil saber o que acontecerá, pois conhecemos o inimigo, sabemos seu nome e endereço, sem livro e com fuzil no coração do Brasil, como diria hoje o antigo compositor baiano;
- quando um fato absurdo supera o do dia anterior, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo em delírios sanguíneos e espumas em seus lábios;
- quando a força pesa sobre um pobre, um preto, um estudante e uma mulher sozinha, fazendo o mal que a força sempre faz, primeiro, foi meu pai, segundo, nosso irmão, terceiro, agora eles, de geração em geração.
Conceitual, com fortes referências históricas que se contextualizam em questões contemporâneas de barbárie social, de ontem, de hoje, e pediremos ao bom Deus nunca mais outra vez, Bahiurno foi o último disco autoral de Belchior. Além de Casaverde, entre as 16 canções, parcerias com Jorge Mello, Graco Braz Peixoto, Caio Braz, João Bosco, João Mourão e Eduardo Larbanois.


O neologismo do título une o nordestinado baiano, eu me lembro muito bem, com o huno da Ásia Central. Ambos são migrantes, fugitivos de vidas secas em busca de outros campos e invernada. Migrantes como o rinoceronte, um bahiuno no reino português, pois o que pesa no norte, disse Belchior que já sabia, cai no sul, grande cidade.
Na contracapa do disco, o primeiro em CD, pois vinil era uma coisa velha que não nos servia mais, o simples cantador das coisas do porão colocou a imagem do animal a que se refere no final da letra. A ilustração é do pintor alemão Albrecht Dürer, um dos mais importantes do Renascimento Nórdico, século 16. Belchior fez referência ao primeiro rinoceronte que chegou a Europa, desembarcado em Portugal vindo da Índia, presente do sultão Muzafar II. Até então, o bicho era criatura lendária para os europeus, incluída nos bestiários com os unicórnios.
Como em toda a obra do compositor sem parentes importantes, Bahiuno apresenta letras de beleza única, literárias e filosóficas, trazem na densidade discursiva uma dimensão política, uma compreensão e reflexão do mundo com seus perigos e esperanças, sabendo que não há motivo para festa, mas insistindo em lembrar que o novo sempre vem nessa divina comédia humana onde nada é eterno.
O rinoceronte é mais decente do que toda essa “gente de bem” do Ocidente “cristão” da Esplanada dos Ministérios.
30 de abril de 2017, um domingo.
30 de agosto de 2020, outro domingo.

Três anos e quatro meses que Belchior ficou encantado como uma nova invenção, e nós aqui, enquanto houver espaço, corpo e algum modo de dizer #elenão, nós cantamos.
Reproduções: arquivo Nirton Venancio

sábado, 29 de agosto de 2020

ela dançando à beira do vulcão

Na Itália pós-Segunda Guerra uma jovem lituana, Karen, para evitar a deportação aceita casar-se com um rude pescador siciliano, Antonio, que conheceu no campo de concentração. Ele a leva para viverem na sua ilha natal aos pés de um vulcão, Stromboli.
A vida naquele pedaço de terra no Mediterrâneo é dura e estéril, não há horizontes para todos os lados. Os moradores ainda nos mais rígidos padrões morais, senhoras conservadores em seus trajes pretos e olhares ilhados em silêncio e desconfiança ao que chega de longe. Karen sente a hostilidade por onde passa, o desdém por ser uma estrangeira que não se adapta aos costumes. Diante o conflito com marido que não ama e a incompatibilidade com a população que não a chama, decide fugir daquela nova prisão a céu aberto.
Esse é o enredo de Stromboli – Terra di Dio, dirigido por Roberto Rossellini, em 1949. A fotografia crua, os esquadramentos simétricos, a beleza nórdica da atriz Ingrid Bergman sob o sol insular, são alguns elementos narrativos de um dos melhores exemplares do cinema neorrealista.
Na década de 40 Ingrid Bergman já era uma das maiores estrelas de Hollywood, com mais de 20 filmes, entre eles o mítico drama romântico Casablanca e o épico biográfico Joana d'Arc. A atriz encantou-se com três grandes filmes de Rossellini, Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, ano zero. Disse a um amigo que desejava muito trabalhar com ele. Ingrid escreveu uma carta ao cineasta manifestando seu interesse e pouco tempo depois segue para o set à beira do vulcão.
Comprometidos em seus respectivos casamentos, Rosselini e Ingrid se apaixonam durante as filmagens. Assim como Karen perturbou os costumes dos moradores da ilha, a atriz abalou o continente ao assumir a relação extraconjugal. Após as filmagens, ambos divorciam-se de seus referentes cônjuges, casam-se e juntam os cetins.
Se as senhoras da ilha Stromboli no filme se incomodaram com casamento arranjado do pescador Antonio com aquela estrangeira translúcida, na vida real o neorrealismo foi mais surpreendente. Grupos religiosos exaltados, clube de mulheres de chás da cinco, legisladores de várias cidades dos Estados Unidos, consideraram aquele caso um acinte à tradição e à família cristã. Exigiram das autoridades que o filme fosse proibido, sumariamente. Ingrid Bergman foi denunciada como “uma influência poderosa para o mal” no plenário do Senado norte-americano no célebre discurso inflamado do senador Edwin C. Johnson, eminente político do Partido Democrata que fora governador do Colorado nos anos 30.
Stromboli teve, por consequência, problemas de distribuição com a RKO Pictures, as cópias foram editadas à revelia de Rossellini, com 20 minutos a menos da versão italiana. O embate acabou levando o diretor e a produtora a tomarem medidas legais entre si sobre os direitos de distribuição internacional do filme.
E Ingrid Bergman foi literalmente banida de território norte-americano, sua carreira em Hollywood interrompida e só conseguiu voltar em 1956, com o filme Anastácia, a princesa esquecida, de Anatole Litvak, que lhe deu o Oscar de melhor atriz. A relação com Rosselini durou dez anos, seis filmes e três filhos, Roberto e as gêmeas Isabella e Isotta.
No final da década de 70 a atriz foi diagnosticada com câncer nos seios e precisou fazer duas mastectomias. Recusou-se a seguir as orientações médicas para largar o fumo e a bebida. Faleceu de infarto no dia do seu aniversário de 67 anos, em 29 de agosto de 1982, dançando e comemorando a data com uma taça de vinho, um espumante e um cigarro.
O músico brasileiro Alvin L., em homenagem ao cerne poético do filme, compôs a bela canção Stromboli, que Marina Lima gravou no disco O chamado, em 1993, e exprime a relação entre a personagem e os últimos momentos da atriz:
"e ela dançando à beira do abismo, e ela dançando à beira do vulcão..."

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

ele tinha um sonho

No começo da manhã de 28 de agosto de 1963 centenas de negros norte-americanos seguiam em direção a Washington. Iam de coletivos, carros, carona, caminhavam pelas estradas empoeiradas como se caminha no coro de silêncio de uma procissão. No caso, carregavam no peito orações e cânticos e a imagem de um homem que ouviriam discursar naquele dia: Martin Luther King Jr.
A Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade foi organizada por lideranças negras dos Estados Unidos, no momento decisivo na história do Movimento Americano pelos Direitos Civis. Naquele encontro os manifestantes fariam pressão para que as questões de direito para os negros fossem levadas ao Congresso. Mais de 250 mil pessoas lotaram o espaço em frente ao Lincoln Memorial, e ouviriam líderes civis, sindicalistas, religiosos, políticos progressistas e artistas discursarem e cantarem por liberdade, trabalho, justiça social e fim da segregação racial.
Entre os tantas personalidades, destacavam-se o escritor, cineasta e ativista Gordon Parks, o cardeal Patrick O’Boyle, arcebispo de Washington, o socialista Bayard Rustin, que defendia abertamente as causas homossexuais, o romancista, dramaturgo e poeta James Baldwin, os atores Sidney Poitier, Harry Belafonte, Marlon Brando e Charlton Heston, que segurava uma faixa onde se lia “Todos os homens nascem iguais”. (Oponente ferrenho do marcartismo, crítico de Nixon, Heston a partir da década de 80 tornou-se um defensor de causas conservadoras, trocou o Partido Democrata pelo Republicano, apoiou o cowboy Reagan e os dois Bush para a Casa Branca; entusiasta pelo direito às armas de fogo, presidiu a National Rifle Association, e depois como membro honorário vitalício da entidade teve que enfrentar o cineasta Michael Moore tocar a campainha de sua casa em Tiros em Columbine).
Entre tantos músicos na Marcha estavam Josephine Baker, Joan Baez, Mahalia Jackson e Bob Dylan.
O presidente John Kennedy temia que a manifestação causasse conflitos e dificultasse a aprovação das leis em curso no Congresso. Mas a aglomeração diante o espelho d'água no Memorial foi pacífica e repercutiu mundialmente, fazendo com que o presidente Lyndon B. Johnson, que sucedeu Kennedy, assassinado no final daquele mesmo ano, influenciasse decisivamente na aprovação e implementação dos Atos Direitos Civis de 1964 e Direitos do Voto de 1965.
O ápice do histórico encontro foram os 16 minutos e 27 segundos do discurso de Luther King, que dispensou o texto pré-preparado. Magnetizada pela oratória firme, pacífica e emocionada sobre os direitos de uma sociedade em que todos seriam iguais sem distinção de cor e raça, a multidão aplaudia a cada pausa do orador. Em um dado momento, a cantora Mahalia Jackson, que estava ao lado de King, disse-lhe "conte a eles sobre o sonho!", e deu início ao trecho que ficou marcado e intitulou o discurso,“I Have a Dream”, uma expressão com a alma poética de versos de composições de Bob Dylan, que cantou logo após o canto de paz das palavras de Luther King.
Intitulado Homem do Ano de 1963 pela revista Time, Luther King foi condecorado pelo Nobel da Paz em 1964, o mais jovem a receber o importante Prêmio, aos 35 anos.
A participação ativa de Luther King em outros movimentos nos anos seguintes, como Marchas de Selma a Montgomery, pelos direitos civis no Alabama, em 1965, o ativismo nas ruas contra a pobreza e a Guerra do Vietnã, que também gerou outro famoso discurso, “Beyond Vietnam: A Time to Break Silence”, na Igreja de Riverside, em Nova Iorque, em abril de 1967, fizeram com que o pacifista fosse cada vez mais perseguido pelas forças da extrema direita e autoridades conservadoras.
O famigerado J. Edgar Hoover, diretor do FBI, fez dele alvo do programa de contrainteligência. Os agentes capangas mantinham-se no encalço, divulgavam notícias mentirosas para difamá-lo, enviavam cartas ameaçadoras. Depois de escapar de dois atentados, Martin Luther King foi assassinado com um tiro de rifle na sacada de um hotel em Memphis, em 4 de abril de 1968. O autor, James Earl Ray, que serviu na Segunda Guerra e era conhecido com um militar incompetente, agiu confessadamente por motivos racistas.
No final dos anos 90, um processo civil no Estado do Tennessee chegou à conclusão de que a morte de King foi planejada por membros da máfia e do governo norte-americano. Condenado a 99 anos de prisão, Earl Ray faleceu corrido pelo vírus da hepatite C, 30 anos depois de Luther King, no mesmo mês de abril.
“Digo-lhes hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu ainda tenho um sonho.”
Acima no vídeo, o recorte mais emocionante do discurso.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

o óleo nosso de cada dia

Há 161 anos, na tarde de 27 de agosto, o empresário norte-americano Edwin Laurentine Drake, conhecido como "Coronel Drake", fez jorrar o líquido negro das entranhas de 23 metros de profundidade. O arrojado Edwin construiu, aos 49 anos, a primeira torre de petróleo do mundo, na região centro-atlântico da Pensilvânia, hoje um dos estados mais industrializados e urbanizados dos Estados Unidos.
Naqueles meados do século 19, o posteriormente chamado "ouro negro" era apenas um mero, mas bem-vindo, combustível para acender lamparinas. Não demorou muito, quase nada no tempo, para o precioso líquido ser destilado com mais precisão e produzir carburantes como querosene etc e tal. O resto é história. Bem sabemos. E bebemos diariamente o óleo nosso de cada dia em que morremos, da luz ondulante dos candeeiros de 1859 às profundezas bilionárias do pré-sal.
Um dos filmes mais representativos sobre os tempos de mudança com a chegada do petróleo é Giant, dirigido por George Stevens, de 1955, no Brasil adequadamente intitulado Assim caminha a humanidade.
Baseado no romance homônimo de Edna Ferber, prolífera escritora e dramaturga conhecida pela consistência social temática em suas obras, o filme é ambientado no Texas, no começo dos anos 20, e narra a história de várias gerações de uma mesma família, tendo como pano de fundo as transformações de um país com a descoberta e consolidação do tal “ouro negro”. Para criar o astuto Jett Rink, personagem que enlaça toda a narrativa, a autora inspirou-se em parte pela extraordinária história da vida da pobreza à riqueza do magnata do petróleo Glenn Herbert McCarthy, um imigrante irlandês, a quem conheceu pessoalmente. Edna hospedou-se no famoso hotel de sua propriedade, o Shamrock Hilton, no livro e filme ficcionado como Hotel Emperador.
Giant é costurado com a conflituosa relação amorosa entre três personagens, a jovem de temperamento forte Leslie Benedict, vivida por Elizabeth Taylor no esplendor de seus 23 anos, o rico fazendeiro Jordan Benedict, interpretado pelo já influente Rock Hudson, que impôs à produção sua amiga Taylor em vez de Grace Kelly, como queriam, e o citado Jett Rink, literalmente encarnado pelo belo, vindouro e crepuscular James Dean, substituindo o "shane" Alan Ladd, que se recuperava de uma cirurgia.
O enredo consegue de forma magnífica mostrar a "involução" do ser humano em analogia com o que seria "evolução" e progresso com o advento do petróleo. A produção hollywoodiana, por outro lado, foi divulgada como um legado contra a intolerância racial, por pontuar essa contenda entre alguns personagens. E isso é latente no desenrolar na história.
Retrato épico ocidental de uma poderosa família de fazendeiros, Giant delineia na subtrama o racismo de muitos americanos anglo-europeus no Texas e a segregação social discriminatória aplicada contra os mexicanos. E mais: nesse universo de transgressão, o filme envolve a própria luta da personagem Leslie pelos direitos iguais das mulheres enquanto desafia a ordem social patriarcal, muito bem representada na cena em que impõe suas opiniões cortando a palavra dos homens.
Dando substância ao fôlego narrativo de divergências raciais e de emancipação feminina, Giant avança na dissecação desse rebanho humano que segue nas relações amorosas, familiares, nas disputas econômicas, sem medir esforços e dispostos a desconhecer valores de grandeza do combustível que jorra do coração das pessoas.
Em Giant, James Dean tem mais uma marcante atuação dramática. Foi o seu terceiro filme, precedido pelo icônico Juventude transviada de Nicholas Ray, e pela releitura bíblica de Vidas amargas, de Elia Kazan.
O ator não assistiu a sua formidável última quimera. Seu coração selvagem tinha pressa de viver. Morreu jovem numa curva do caminho quando seu Porsche 440 a 135 quilômetros por hora completou o seu destino.
O gigante James Dean, assim como o perfurador de poços Edwin Laurentine Drake, não viram até que ponto a humanidade descaminhou.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

meu reino por uma canção

foto Acervo Salif Keïta, 2005
“Quando ouvi Salif Keïta, dancei...”, diz Chico César em À primeira vista, aquela do refrão djavaniano “amarazáia zoê, záia, záia / ahin hingá do hanhan...”, gravada em seu primeiro disco, Aos vivos, de 1995.
A história desse grande músico maliano é emocionante. Nascido em uma família fundadora do Império Mali, tinha tudo para não ser cantor, e viver mesmo de salamaleques e os criados mudos abrindo portas para a majestade passar. Essa “tarefa” de cantar, pela tradição da cultura daquele país da África Ocidental, pertence a outro tipo de pessoas, ou como chamam por lá, ”griots”, incumbidos com a arte de contar histórias, lendas, e, de certa maneira, informar e educar. Não deixa de ser, e configurar, uma estrutura social, porque evoca uma genealogia e história de seu povo. Guardando as devidas proporções, é como os nossos repentistas nordestinos, por serem guardiões da tradição oral.
Mesmo com esse valor respeitado dos artistas populares, um membro do Império maliano, como Salif Keïta, tem reputação nobre, não lhe cabe a incumbência. Mas sua arte ultrapassou esse conceito, rompeu os limites da linhagem, e a música foi abençoada com o talento desse grande compositor, que hoje completa 71 anos de idade.
Junta-se a esse detalhe na vida de Keïta, o fato de ter nascido albino, como nossos Hermeto Pascoal e Sivuca. Uma raridade naquela região. Raro e amaldiçoado. Tal condição caracteriza um sinal de azar na cultura dos maiores grupos étnicos do ocidente africano.
Em 1968 um golpe militar em Mali liderado pelo tenente Moussa Traoré derrubou o governo socialista de Modibo Keïta, o primeiro presidente da Federação Mali, formada com Senegal depois que se libertaram da colonização francesa em 1960. A orientação de independência de Modibo Keïta do controle da União Soviética, com a finalidade de criar uma espécie de socialismo africano, complicou a situação econômica do país. O tenente golpista aproveitou a instabilidade, juntou outros militares com suas túnicas dashiki brancas, e a força se fez sobre o povo, com todo o mal que a força sempre faz. O presidente deposto foi preso e nove anos depois encontrado morto, por comida envenenada.
Salif Keïta com seus balafons, djembês, koras e outros instrumentos típicos, contornava como podia a situação, compondo e se apresentando com outros músicos. Já não bastava o fato de ser hostilizado por renegar a nobreza e ser cantor, malquisto por sua pele transparente, agora vivendo sob tutela de generais. A barra pesou e em 1973, quando tudo era ausência, não esperou, pegou sua banda Les Ambassadeurs e fugiram para Costa do Marfim.
Em meados da década de 70 Salif Keïta conseguiu reconhecimento internacional com seu canto de paz. Recebeu até um prêmio tradicional da vizinha Guiné, o National Order, entregue pessoalmente pelo presidente Sékou Touré, líder carismático e um dos primeiros nacionalistas comprometidos com a libertação de seu país da colonização francesa. Tudo a ver com o coração libertário de Salif Keïta.
O tempo em que viveu na Costa do Marfim foi um salto para o cantor. Quando não tinha nada, ele quis. Seu primeiro disco, Soro, um belo álbum com apenas seis longas faixas com a mais verdadeira alma melódica de seu povo, repercurtiu na Europa, inserindo-se no que se caracterizaria mais tarde como world music. Quando o olho brilhou, entendeu o poder que a arte tem como libertação.
Feito ave de arribação, pegou seus instrumentos e foi para o continente europeu. Quando deu por ele, estava na França, onde mora desde 1984. Salif Keïta fez o viés da posse, colonizou os franceses com sua música, fez usufruto do território do coração de todos com quase vinte discos gravados.
Com o álbum Soro na Costa do Marfim Salif Keïta criou asas e voou. E o paraibano de Catolé do Rocha quando ouviu, dançou.
foto Acervo Salif Keïta, 2005

a primeira foto

No começo de 1978 um jovem argentino realizava em um só espaço e tempo dois de seus sonhos: estar dentro de um set de filmagem e ao lado de um de seus ídolos na literatura. Aos 18 anos Daniel Mordzinski era assistente de direção do documentário longa-metragem sobre Jorge Luis Borges, Borges para milhões, de Ricardo Wullincher.
O filme, que participou da 2ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mostra à maneira da literatura do célebre escritor, uma narrativa alucinante, um clima fantástico na composição dos enquadramentos, o que emoldura com perfeição os depoimentos firmes, as análises lúcidas e seguras de Borges sobre tudo.
O escritor entendia de cinema na mesma proporção que dominava o universo esplêndido de sua escrita em poemas, contos e ensaios. Teórico, com textos publicados em revistas e periódicos, tinha fascínio pela grandiosidade humana de Carlitos (“Quem ousaria ignorar que Charles Chaplin é um dos deuses mais seguros da mitologia de nosso tempo?”), passando pela beleza resplandecente das atrizes (“o universo finito mesmo que ilimitado das costas zenitais de Greta Garbo”) aos conceitos inovadores de montagem e enquadramentos (“Atrevo-me a suspeitar, porém, que ‘Cidadão Kane’ perdurará como perduram certos filmes de Griffith ou de Pudovkin”). O cineasta e crítico argentino Edgardo Cozarinski publicou em 1983 o livro Do Cinema, onde reúne e comenta dezenas de textos de Borges.
E o jovem Daniel ali no set, fascinado naquele recorte mágico, a câmera filmando e ouvindo Borges. Um dia o rapaz pegou emprestada a máquina fotográfica do pai e daria um jeito de fazer um retrato do seu ídolo durante as filmagens. O que captou, de forma despretensiosa, ficou como uma das fotos mais expressivas e divulgadas do escritor. E mais: aquela primeira fotografia despertou nele a habilidade, um savoir-faire afetivo, em registrar imagens de ilustres e novos nomes da literatura. Tornou-se o “fotógrafo dos escritores”. Gabriel Garcia Márquez, Adolfo Bioy Casares, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato, José Saramago, Julio Cortázar, Salman Rushdie, Umberto Eco, os nossos Jorge Amado, Zélia Gattai, Luiz Fernando Veríssimo, Adriana Lisboa, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian, Adriana Lisboa, são alguns imortalizados pelas lentes de Daniel Mordzinski.
- No início, devo reconhecer, eles me impressionavam muito. É difícil ter menos de vinte anos e estar diante de Borges, o grande mito da literatura contemporânea. Mas posso confessar também que a vida me deu a oportunidade de ser amigo de alguns dos grandes. E sem perder o respeito, creio ter aprendido a tratá-los com naturalidade e isso me permite uma aproximação mais autêntica, menos litúrgica – disse Mordzinski em uma entrevista ao jornal O Globo, em setembro de 2014, quando esteve no Festival Literário de Araxá, Minas Gerais, para a exposição Quartos da escrita - Retratos de escritores em hotéis. No ano seguinte voltou ao Brasil para outra série no 1º Festival Literário Internacional de Belo Horizonte.
As fotos de Mordzinski fazem dos autores os personagens de uma literatura humana, de maneira mais próxima de quem leu e agora vê na plasticidade de um enquadramento. Essa definição e impressão estão nas páginas de quase vinte livros que publicou, individuais e coletivos, como Retratos de escritores mexicanos, 2009, A literatura na lente de Daniel Mordzinski, 2016, Un viaje al corazón de la literatura iberoamericana, 2018.
Hoje, para celebrar os 121 anos de nascimento de Jorge Luis Borges, Mordzinski coloca a foto seminal na parede da memória.


fotos Miguel Manso

domingo, 23 de agosto de 2020

coração Celestino

Na tarde de 23 de agosto de 1968, uma sexta-feira, o cantor e compositor Vicente Celestino chegou ao Hotel Normandie, em São Paulo, onde estava hospedado com sua esposa, a atriz, cantora, compositora e cineasta Gilda de Abreu. Vinha do ensaio de Canção de paz, composição de Gilda e Marina Ghiaroni, de 1966, e à noite cantaria na estreia do programa Tropicália ou Panis et Circenses, na TV Record.
A concepção vanguardista, antropofágica, e direi até dadaísta, do movimento Tropicália incluía esse dispositivo ousado, misturando na mesma inquietação de inovações estéticas radicais, manifestações tradicionais da cultura brasileira. Junto a Celestino estariam vindo desse mesmo sistema solar do nosso cancioneiro, Dalva de Oliveira e Emilinha Borba.
Vicente Celestino entrou no quarto do hotel ainda indignado com o que vira no ensaio. O disco-manifesto da Tropicália fora lançado há pouco menos de um mês, e a turma com seus acordes dissonantes preparava para aquela noite histórica uma espécie de apresentação-happening. Na hora de cantarem Miserere Nóbis, os intérpretes Gilberto Gil e Mutantes estariam dentro de uma encenação que reproduzia a Santa Ceia, tudo com a direção vulcânica de José Celso Martinez Corrêa. À cabeceira, Gil caracterizado como um Jesus Cristo alegórico, cantando aos apóstolos de parangolés que em vez da mesa “molhada de vinho e manchada de sangue”, “tomara que um dia de um dia não / na mesa da gente tem banana e feijão”.
Celestino esbravejou de imediato: “O Cristo negro ainda posso admitir, mas as bananas representando o pão sagrado, de jeito nenhum! É um desrespeito!”. Colocou o paletó e saiu enfurecido para o Normandie. E ficaram os tropicalistas pasmos na incerteza se ele voltaria para se conciliar com sua Canção de paz. Todos esperavam que sim, afinal, além de cantar, Vicente Celestino ouviria pela primeira vez sua célebre canção matricida Coração materno, de 1937, ser interpretada por um jovem de 26 anos, Caetano Veloso, que trazia debaixo dos caracóis de seus cabelos, a memória de ouvi-la nas radiadoras de Santo Amaro.
Faixa 2 do lado A do álbum seminal, a gravação de Caetano, ao contrário do que se poderia imaginar, com baterias, guitarras distorcidas e barulhos chocalhando em desconstrução conceitual, o que ouvimos é uma suave voz quase feminina do cantor narrando o drama do campônio que “encontra a mãezinha ajoelhada a rezar / rasga-lhe o peito o demônio / tombando a velhinha aos pés do altar”. Mesmo assim, o grandiloquente arranjo de cordas de Rogério Duprat, com a melodia complexa, ondulante e emotiva, se contrapõem à gravação original da voz de tenor de Vicente Celestino e sua exaltação de erudição máscula na letra.
Em sua biografia Minha vida com Vicente Celestino, lançada em 2003, Gilda de Abreu conta nas páginas 193 e 194, que logo após o jantar no hotel, subiram e o marido deitou-se para descansar um pouco. Minutos depois levantou-se para vestir o smoking e saírem. “Gilda... não fique nervosa, mas não estou me sentindo bem...”, ouviu de Celestino, ofegante.
O cantor abriu a janela procurando respirar. Virou-se e caminhou até a mulher e a abraçou, suplicando ar. Jogou-se na cama desfalecendo. Gilda ligou desesperada para a portaria, que telefonou para assistência médica. A ambulância cortou o trânsito naquele horário movimentado. Chegou vinte minutos depois. Não deu tempo. Vicente Celestino inerte na cama por um ataque cardíaco.
O coração paterno da canção não ouviu o coração filial e reverencial de Caetano.
Acima, Celestino e Gilda em meados dos anos 60. Foto de autor desconhecido

sábado, 22 de agosto de 2020

diário de uma saudade

“As pessoas têm uma visão de que ele tinha uma personalidade exuberante, mas ele começava a trabalhar na máquina de escrever às 8h, ia até as 12h, almoçava e depois retomava. O problema é que havia sido uma longa batalha mesmo. E aquilo afetou a saúde dele. Eu costumo dizer que, às vezes, quando o guerreiro repousa, o seu corpo não resiste. Ele não resistiu.”
Trecho de uma entrevista da artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta Paula Gaitán à revista Marie Claire, em 15/12/2009, por ocasião do lançamento do documentário Diário de Sintra, um relato poético sobre o tempo em que viveu com o marido, Glauber Rocha, e os filhos na pequena cidade portuguesa.
No final de 1980 o cineasta lançou o que veio a ser o seu último filme, A idade da Terra. Inspirado em um poema de Castro Alves, a surpreendente e operística obra caleidoscópica, com um tom profético e religioso, faz um retrato da situação política e cultural do Brasil daquela década de 70, envolta no manto sombrio do AI-5, dos acordes dissonantes dos generais plantonistas da repressão Médici, Geisel e Figueiredo.
Indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, o filme não teve a receptividade merecida no Brasil. Glauber se abateu muito, e com o coração exilado partiu com a família para Portugal. Soube-se em 2014 através de documentos revelados pela Comissão da Verdade, que o ditadura militar pretendia eliminá-lo, tinha até data marcada: setembro de 1981. Glauber era monitorado pelas entrevistas que dava em publicações da Europa criticando o governo. “Seus depoimentos são um violento ataque ao país", apontava um dos relatórios produzidos pelo Centro de Informações da Aeronáutica.
Sintra é um bucólico município de veraneio, com os telhados de suas casas banhados pela brisa do Atlântico. De lá Glauber atravessaria o olhar por cima de tanto mar, tanto mar, e muitas léguas a separá-lo dos sobrados da velha São Salvador. Sintra abrigou poetas românticos do século 18, como o inglês Lord Byron, agora acolhia o poeta barroco revolucionário do cinema brasileiro.
O documentário de Paula Gaitán não é um filme sobre Glauber Rocha. É um filme com Glauber Rocha. E nada mais poderoso sobre ele do que essa pulsação orgânica. Ali está o cineasta com o peito dolorido, mas com o coração fértil escrevendo roteiros do teyceiro mundo, pensando kynema brasileiro, tercendo conceitos filosóficos, dedicado e generoso no cotidiano com a família, brincando com as crianças, cantando com a pequena filha Ava.
Narrado em primeira pessoa, a voz de Paula Gaitán retorna à Sintra em um ensaio de narrativa não linear, como não linear é a memória, “ela é cheia de faltas e vazios, partes escuras que você não consegue alcançar”, como disse a cineasta em outro trecho da entrevista. Sensorial, o filme parte do esquecimento e reconstrói os dias fragmentados, cola os mosaicos da ausência, desdobra o lamento da perda do grande amor, pranteia a viuvez que é dela, mas que reflete no espelho uma saudade que a todos pertence: Glauber é a possibilidade da invenção e da liberdade que deixou para o cinema brasileiro.
Com a saúde comprometida por uma broncopneumonia, o cineasta é transportado de uma clínica em Lisboa para o Brasil. Faleceu dias depois do desembarque, em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos.
Glauber "não morreu da vontade de Deus; morreu de uma doença chamada Brasil", como chorou sua mãe, dona Lúcia Rocha.
Na foto acima, Paula fotografa o marido pelo reflexo de um espelho em Sintra.

cinema em transe

"Não há ninguém que se pareça com ele, nem de perto, no cinema de hoje - a força de sua obra, sua paixão intensa me fazem falta. Meu primeiro encontro com a obra de Glauber Rocha foi seu marcante ‘Terra em transe’ (1967), que ajudei a restaurar vinte e cinco anos após sua estreia. O filme leva o espectador ao esgotamento, tão intenso e implacável é a sua confusão de sons e imagens. Até hoje nunca vi nada igual! Muito rápido me certifiquei de descobrir seus outros filmes, dos quais ‘O dragão da maldade contra o santo guerreiro’ (1969) é o meu preferido. O engajamento pessoal de Rocha é tão grande que o estilo de seus filmes é inseparável de seu conteúdo político. Rocha não se contentava em pegar uma história e desenvolvê-la: ele criava verdadeiramente uma tapeçaria frenética de dor, cólera e sofrimento humanos que ele havia observado ao seu redor, em seu ofício tecido por sua grande inteligência.”


- Martin Scorsese em Cahiers du Cinéma, nº 500, março de 1996

Glauber e Scorsese encontraram-se três vezes, em Nova York, Los Angeles e no Festival de Veneza, em 1980. Nesse mesmo ano a artista plástica Paula Gaitán, à época sua esposa, fotografou em Portugal Glauber ao lado do cartaz do filme que o cineasta norte-americano estava lançando, O touro indomável.
A admiração era mútua. Em 1991 Scorsese posa para o fotógrafo Michael Chaiken segurando o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, um dos filmes restaurados juntamente com Terra em transe e O Dragão da Maldade, que receberam cópias novas em 35mm.
39 anos hoje sem o touro indomável do cinema brasileiro.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

eu sou, eu fui, eu vou


"Há muito tempo atrás na velha Bahia / eu imitava Little Richard e me contorcia / as pessoas se afastavam pensando / que eu tava tendo um ataque de epilepsia".

O bom e eterno Raul Seixas, na faixa de abertura de seu último vinilzão, A panela do diabo, que gravou com Marcelo Nova, lançado no começo de 1989.
Das doze músicas, oito foram compostas e cantadas pelos dois, inclusive a citada, Rock'n'roll, num dueto que expressa o saudável encontro do conterrâneo admirador e seu ídolo. A letra é uma maravilha de curtição nos rockzinhos que surgiram na década de 80. A dupla reverencia o rock-and-roll genuíno, e ousa dizer “que nunca vi Beethoven fazer / aquilo que Chuck Berry faz”, nem o banquinho e o violão bossa-novista escaparam, "bosta nova pra universitário / gente fina, intelectual / oxalá, Oxum, dendê oxossi de não sei o quê".
Mas Maluco Beleza sabia como e onde cutucava, sabia onde tem raiz de um no tronco de outro, "não importa o sotaque / e sim o jeito de fazer / pois há muito percebi que Genival Lacerda / tem a ver com Elvis e com Jerry Lee".
Em 10 de abril 1989 Raul e Marcelo Nova fizeram um show em Brasília, no então Gran Circo Lar, onde hoje está a nave branca do Museu Nacional da República Honestino Guimarães (foto acima, de Kika Seixas). Visivelmente debilitado com seu estado de saúde, e mesmo com a voz trêmula, encantou e agitou a plateia com o seu brilho de grande artista.
Voltaram à capital federal no dia 10 agosto do mesmo ano para show de encerramento do II Festival Latino-americano de Arte e Cultura, no Ginásio Nilson Nelson. Dez dias depois Raulzito partiu na sombra sonora de um disco voador.
31 anos hoje que Raul Seixas não morreu.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

o dia em que o palhaço chorou

No final dos anos 60 o ator e diretor Jerry Lewis entrou num período depressivo vendo a fraca repercussão de seus filmes. Desde meados dos anos 50 que ele manifestava sinais de descontentamento, embora evitasse falar, com o fim de sua parceria com o ator e cantor Dean Martin em dezenas de filmes. Este também não comentava o que motivou a desintegração da dupla que fazia tanto sucesso. Até personagens em gibis foram criados com os tipos que encantavam na tela, sempre Dean como o bom moço, galã, e Lewis o palhaço ingênuo. Ficaram muito tempo sem se falarem. A reconciliação se deu somente em 1987 quando o filho de Martin faleceu precocemente, aos 32 anos, em um acidente aéreo. Lewis compareceu ao velório e enterro. Os dois se abraçaram demoradamente. A morte sempre lembrando que a vida é um sopro.
Naquela década de 60 Jerry Lewis optou por ausentar-se dos sets. Foi dar aulas de direção de cinema em uma universidade em Los Angeles. Um de seus alunos era um jovem de 22 anos chamado Steven Allan Spielberg, que acreditava na amizade de seres de lugares distantes com crianças de pequenas cidades da Califórnia, comendo doces de manteiga de amendoim enquanto os adultos se interessavam pela tecnologia das espaçonaves.
Ao término do curso, em 1968, apresentou seu primeiro filme, o curta-metragem Amblin. O professor Lewis ficou aloprado com o que viu, a maestria narrativa do pubilo ao contar a história de um casal de jovens que se encontra no mais árido e hostil deserto da América, o Monjave. Mais fascinado ficou com a preciosidade da produção do pequeno filme, sob a coordenação de outro aluno, um garotão esperto de 24 anos, com visão logística de guerra nas estrelas, George Walton Lucas Jr.
Inspirado na garra e tenacidade daqueles garotos, quando decidiu voltar aos sets, Jerry Lewis fixou-se na ideia de realizar algo diferente, uma comédia dramática. Nada de caretas e pastelão. Caiu-lhe nas mãos um argumento, The day the clown cried, de dois roteiristas desconhecidos. O ator leu, topou dirigir e interpretar o papel principal. Rodado na França em 1972, o filme (foto abaixo) nunca foi exibido, envolvido em polêmica logo após as filmagens, e guardado a sete chaves pelo próprio Lewis.
A história é no mínimo extremamente delicada: durante a Alemanha nazista um palhaço bêbado num bar tira onda com o Führer Adolf Hitler, imitando-o com deboche. Os brutamontes da Gestapo sabem e o prendem, mandando-o para um campo de concentração em Auschwitz. Vendo o palhaço brincando e divertindo as crianças judias, fazendo-as esquecer onde estavam e o que o destino de fatal ocultava para a qualquer hora, os soldados o obrigam a entreter os pequenos nos momentos em que se enfileiram a caminho das câmaras de gás, prometendo-lhe liberdade pela cruel tarefa. Minutos depois ao ver a fumaça branca das chaminés levando aos céus o silêncio das crianças, que há pouco riam de suas brincadeiras, o palhaço desaba em remorso, choro e não se perdoa.
Jerry Lewis também não se perdoou pelo filme que dirigiu e interpretou. Despencou igualmente em compunção e lágrimas. Personagem e ator num só corpo e alma em conflito, transgredidos em suas condições de gênero humano. A volta ao cinema não foi tão redentora como supôs ao se inspirar no talento e obstinação daqueles seus dois alunos, agora um revelando-se grande diretor com o longa de estreia, Encurralado, 1971, e o outro dirigindo um curioso filme de ficção científica, THX 1138, sobre uma sociedade distópica que mistura 1984, de George Orwell, com Metrópolis, de Fritz Lang, também de 1971.
Na biografia Dean & Me - A love story, que lançou em 2005, Jerry Lewis confessa seu arrependimento com o filme de humor infeliz. "É mau, mau, mau. Podia ter sido poderoso, mas escorreguei”, deplora-se em um trecho.
Desde então, Jerry Lewis afastou-se definitivamente do cinema. Além do abalo de perder um filho por overdose, em 2007, sua saúde ficou extremamente comprometida nos últimos anos, e aos poucos reabilitava-se de quedas, remédios viciantes para diminuírem as dores, pneumonia, artérias do coração bloqueadas, cateterismo, meningite viral, câncer na próstata, diabetes, peso excessivo por conta de um tratamento de fibrose pulmonar, e por último, a insanidade de declarar a apoio a Donald Trump na eleição de 2016.
Na manhã de 20 de agosto de 2017 falece aos 91 anos, já em estado terminal com o problema cardíaco.
A única cópia do filme realizado em 1972 foi entregue por Jerry Lewis à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, e secretamente guardada, com o acordo de ser exibida somente em 2025, na véspera de um século do seu nascimento.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

no palco e nas ruas

foto Julio Agostinelli, Acervo Iconographia Cia da Memória.

"Tem som no microfone?
Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na 'Roda Viva' e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker!"

Assim esbravejou Caetano Veloso, no III Festival Internacional da Canção, em 1968, quando sua música É proibido proibir foi recebida com vaia pelo público no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA).
A explosiva interrupção do cantor durante a apresentação refletia claramente uma crítica ao governo naqueles tumultuados anos a caminho da decretação do AI-5, o golpe dentro do golpe que aconteceu em dezembro daquele o ano que não terminou, como diz o título do livro de Zuenir Ventura.
A primeira-dama dos palcos brasileiros é citada no trecho do discurso por ter, corajosamente, participado e tomado a frente da comissão de artistas que foi à residência do então governador Abreu Sodré, exigir providências sobre o ataque ao Teatro Galpão.
Os desdobramentos repressivos da ditadura militar atingiram todos os setores culturais do país. No teatro, Cacilda Becker colocou o rosto além dos palcos e não aceitava tapas como militante assumida das causas de sua classe. Sob acusação de que seus papeis nas peças que escolhia e a forma como interpretava tinham conotações subversivas, foi sumariamente demitida dos trabalhos na TV Bandeirantes.
No mesmo assustador 1968, Augusto Boal dirige o espetáculo Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos de vários dramaturgos, como Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro César Muniz e o próprio Boal. Com trilhas compostas por Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo e Ary Toledo, a montagem, discutindo o tema urgente como “O que pensa o Brasil de hoje?”, uniu o meio teatral de São Paulo com a classe carioca na luta contra as ações autoritárias da Censura. Logo no dia da estreia, em julho, a peça sofreu 71 cortes.
Integrante do elenco, Cacilda Becker, resoluta e belamente impávida, caminha até o proscênio e se responsabiliza pela apresentação do texto na íntegra. Aquela atitude corajosa de desobediência civil, de rebeldia cívica, petrificaram os agentes federais censores ali sentados na primeira fila. A força na voz inabalável daquela mulher atriz fizeram aqueles “machos brancos sempre no comando” acatarem a decisão e assistirem ao espetáculo sem darem um pio e recolherem as lâminas cretinas em suas pastas.
No primeiro semestre de 1969 Cacilda Becker atuava em Esperando Godot, no TBC, com direção de Flávio Rangel. O clássico do irlandês Samuel Beckett, um exemplar do teatro do absurdo, retrata sintomaticamente nas entrelinhas o absurdo do recrudescimento em que o país mergulhava. A atriz interpretava o personagem principal, Estragon. Ela substantivo feminino retira o pronome masculino e veste com alma o corpo do personagem, aquela que personifica a esperança, aquela que espera God(ot), aquela que aguarda Deus, aquela que é o caminho em seu nome, como na rubrica que divide a peça em três atos-mulheres: Estrada, Árvore, À Noite.
Numa apresentação em maio, justo no intervalo entre o primeiro e o segundo ato, Cacilda Becker sente-se mal, sofre um derrame cerebral. Às pressas, é levada ao hospital e é internada ainda com as roupas do personagem. Leva Estragon, mas o deixa na história do teatro brasileiro. Foi a primeira montagem profissional da peça no Brasil, depois de duas amadoras, uma da Escola de Arte Dramática de SP, com direção de Alfredo Mesquita, e outra de Luiz Carlos Maciel, em Porto Alegre, ambas na década de 50.
Depois de 38 dias, na manhã de 14 de junho, falece. Aliás, faleceram, pois como disse Drummond num trecho do poema “Atriz”, a ela dedicado, “A morte emendou a gramática. / Morreram Cacilda Becker. / Não era uma só. Era tantas.”
Cacilda não retornou ao palco naquela noite. Como num parentesco longínquo nos sobrenomes do dramaturgo e da atriz, o diálogo final da peça, entre os personagens Estragon e Vladimir, parece fazer uma conexão entre sentido e despedida:
- Vladimir: Então, devemos partir?
- Estragon: Sim, vamos.

Eles não se movem. Apagam-se as luzes. Fecham-se as cortinas.
E por falar nisso, hoje é comemorado o Dia do Ator. Então, viva Calcilda Becker e todas as Atrizes! “Eu não tenho pátria, tenho mátria!”
.....................................
Abaixo, a atriz em uma cena de Maria Stuart, de Friedrich Schiller, direção de Ziembinski, 1955.
foto Julio Agostinelli, Acervo Iconographia Cia da Memória.

poema vivo

O poeta, escritor e jornalista paulista Ademir Assunção é uma das maiores expressões da literatura brasileira contemporânea. Com 14 livros publicados, entre eles o ótimo “A voz do ventríloquo”, Prêmio Jabuti de 2013, é também parceiro em composições com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Zeca Baleiro, e suas incursões literárias-musicais revelaram uma singular linguagem multimídia em apresentações com a banda Buena Onda Reggae Club nas noites paulistanas.
Em 2017 tive a honra de somar com ele a mesa de debate com o tema “Canção e Literatura: O Legado de Bob Dylan”, incluída na programação da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará, ainda dentro do clima do Nobel de Literatura concedido ao bardo de Minnesota.
Ademir Assunção, isolado entre livros e lives nesse período sombrio de pandemia no ar e pandemônio no país, produz necessárias leituras de poemas seus e de outros poetas. Já somam quase cem edições. É uma respiração que oxigena a esperança a cada noite.
Hoje tive a alegria de ver e ouvir o meu poema “O morto”, do livro “Poesia provisória”, publicado pela Editora Radiadora, em 2019.
Gratidão, caro Ademir. Sua leitura com os monges do Maitri Vihar Monastery entoando mantra, diz o poema, dá alma ao poema, continua o poema.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

a ternura de quem amamos

foto Acervo Instituto Moreira Salles
“Lygia, eu estou péssima. Estou doentíssima, acho que vou morrer, venha me ver, pelo amor de Deus! Quero demais morrer segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai entender tudo na hora H. Ela vai dizer: ‘Hilda, fica calma e tal que é assim mesmo.’”
- poeta Hilda Hilst em seus escritos sobre Lygia Fagundes Teles. Textos, cartas e depoimentos entre as duas escritoras foram publicados nos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, em 1999.
Elas foram grandes amigas durante mais de 50 anos. Conheceram-se no final da década de 40, quando Lygia foi homenageada numa festa na Casa Mappin, em São Paulo, promovida pela Academia Brasileira de Letras, ao receber o Prêmio Afonso Arinos pelo terceiro livro de contos, O cacto vermelho.
Hilda Hilst ainda não tão conhecida, mas já daquele jeito descolada chegou ziguezagueando entre as mesas, furou a fila de autoridades, passando na frente da angelical Cecília Meireles que usava um turbante negro tipo indiano, e era levada pelo braço por Lygia para a cabeceira da mesa de jantar.
- Sou Hilda Hilst, poeta. Vim saudá-la em nome da nossa Academia do Largo de São Francisco - apresentou-se, vestida com uma simplicidade que contrastava com o esplendor de sua beleza e firmeza.
A Academia a que ela se referiu foi um termo incorporado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a mais antiga instituição do gênero no Brasil, também conhecida por Faculdade de Direito do Largo São Francisco, por se localizar no logradouro que acolhe alguns marcos importantes da história paulistana, um dos principais conjuntos de arquitetura barroca da capital.
Vários escritores passaram e muitos movimentos culturais surgiram nessa faculdade. O abolicionista Castro Alves, o grande nome da segunda geração romântica Álvares de Azevedo, o Simbolismo na pessoa de Alphonsus Guimarães, José de Alencar como expressão do Romantismo, o modernista Oswald de Andrade, o precursor da literatura infantil Monteiro Lobato, e entre tantos, ela Lygia Fagundes Telles, ela Hilda Hilst. Era, portanto, importante que a agraciada com o Prêmio da Academia Brasileira de Letras fosse também saudada pela Academia do Largo de São Francisco. Isso ficou claro na atitude intempestiva e admirável de Hilda.
“Consegue se conter até certo ponto mas de repente, com os impulsos, abre as comportas e solta os cachorros”, como escreveu Lygia em seu livro de memórias Durante aquele estranho chá, 2002, no capítulo a ela dedicado, Da amizade, página 35. Naquela noite no Mappin Lygia encantou-se com “aquela jovem muito loura e fina, os grandes olhos verdes com uma expressão decidida. Quase arrogante”.
Em novembro daquele mesmo ano em que se conheceram Lygia leu um poema inédito de Hilda, Canção do mundo, e viu que estava diante de uma das mais jovens e talentosas da “novíssima geração que borbulha freneticamente em São Paulo.”. “Os homens de bem / me perguntaram / o que foi feito da vida. / Ela está parada / angustiadamente parada. / O que foi feito / da ternura de todos que amaram”, diz o trecho final do poema, publicado, por indicação e apresentação de Lygia, na Revista Branca, edição 9, o mais importante periódico cultural da época.
A repercussão do poema “com pena firme penetrando fundo para trazer à tona todo o seu luminoso mundo interior”, como dissertou Lygia, fez Hilda Hilst lançar seu livro de estreia, Presságio, no ano seguinte.
Muitos não entendiam como duas pessoas de temperamentos distintos se davam tão bem. Em comum manifestavam o prazer de criar vários cachorros, e passavam horas idealizando para a velhice um lugar onde pudessem montar uma espécie de comunidade alternativa com os amigos, e passarem dias rindo e tricotando histórias ao redor da lareira.
Para as diferenças Hilda não perdia tempo explicando, dizia que “a gente tem uma amizade, sei lá, pode ser até de outras vidas, embora sejamos muito diferentes. Aí, por exemplo, eu bebo muito, ela não bebe nada. Ela diz: ‘Eu vou beber um vinhozinho’. Mas eu já estou bebendo uma garrafa e vários uísques”, dizia, às gargalhadas. Os opostos se distraem.
No dia 2 de janeiro de 2004, ainda desfazendo as comemorações do Ano Novo, Hilda sofreu uma queda em casa, quebrou as duas pernas e foi internada num hospital em Campinas. Seu estado clínico complicou com as infecções e faleceu na madrugada de 4 fevereiro.
Um ano antes, por volta das 23h de um final de semana, como num presságio que não poderia segurar a mão de Lygia na hora H, ligou para amiga e disse: “Lygia, a alma é imortal”. “Eu sei, Hilda”, respondeu Lygia, sem se surpreender com o jeitão repentino dela. “Ela me mandou um beijo e desligou”, lembrou a escritora.
Tornamo-nos eternos no coração de quem nos quer bem.
foto Acervo Instituto Moreira Salles