“Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes: barbárie, devastação.
O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão”.
- Belchior em Bahiuno, faixa do disco homônimo de 1993, musicada por Francisco Casaverde.
Em 10 de setembro de 1993 o jornal Correio Braziliense publicou uma entrevista com Belchior em página inteira no Caderno Dois. O cantor e compositor cearense esteve na capital federal para o show de lançamento do disco.
E lá sigo eu por essas ilhas cheias de distâncias que é Brasília, em direção à Sala Martins Pena do Teatro Nacional para rever e abraçar o amigo conterrâneo vindo do interior, ouvi-lo cantar sob as luzes sem medo de nada e contar histórias talvez iguais às minhas, jovem que desceu do norte pra cidade grande.
Itamar Franco estava há quase um ano na Presidência da República, depois do impeachment do abjeto Collor. Na entrevista, concedida ao jornalista Irlan Rocha Lima, Belchior, em resposta sobre a realidade nacional daquele momento, disse que “A confusão é geral, mas acredito que, antes de tudo, precisa-se restaurar a cidadania. Há um fosso intransponível entre as elites, sejam elas políticas, governamentais e empresariais, e o povo. A resolução das questões estruturais do País passa pela política, mas os políticos que estão aí são incapazes, incompetentes para essa tarefa.”
Sem imaginar como estaria o Brasil 27 anos depois, e muito menos querendo ser o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia, a análise de Belchior cabe bem, e infelizmente, nestes tempos milicianos do Ano II da Era Bozolítica.
Descendo ao inferno de Dante, guio-me pelos versos de Belchior por alguns círculos, vales, fossos e esferas de hoje, assim como Virgílio guiou Alighiere do purgatório ao paraíso pelas mãos de Beatriz:
- quando há perigo institucionalizado na esquina e policiais cumprem o maldito dever de matar e o sinal está fechado pra nós que não temos mais 25 anos de sonho e de sangue;
- quando não é mais tão difícil saber o que acontecerá, pois conhecemos o inimigo, sabemos seu nome e endereço, sem livro e com fuzil no coração do Brasil, como diria hoje o antigo compositor baiano;
- quando um fato absurdo supera o do dia anterior, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo em delírios sanguíneos e espumas em seus lábios;
- quando a força pesa sobre um pobre, um preto, um estudante e uma mulher sozinha, fazendo o mal que a força sempre faz, primeiro, foi meu pai, segundo, nosso irmão, terceiro, agora eles, de geração em geração.
Conceitual, com fortes referências históricas que se contextualizam em questões contemporâneas de barbárie social, de ontem, de hoje, e pediremos ao bom Deus nunca mais outra vez, Bahiurno foi o último disco autoral de Belchior. Além de Casaverde, entre as 16 canções, parcerias com Jorge Mello, Graco Braz Peixoto, Caio Braz, João Bosco, João Mourão e Eduardo Larbanois.
O neologismo do título une o nordestinado baiano, eu me lembro muito bem, com o huno da Ásia Central. Ambos são migrantes, fugitivos de vidas secas em busca de outros campos e invernada. Migrantes como o rinoceronte, um bahiuno no reino português, pois o que pesa no norte, disse Belchior que já sabia, cai no sul, grande cidade.
Na contracapa do disco, o primeiro em CD, pois vinil era uma coisa velha que não nos servia mais, o simples cantador das coisas do porão colocou a imagem do animal a que se refere no final da letra. A ilustração é do pintor alemão Albrecht Dürer, um dos mais importantes do Renascimento Nórdico, século 16. Belchior fez referência ao primeiro rinoceronte que chegou a Europa, desembarcado em Portugal vindo da Índia, presente do sultão Muzafar II. Até então, o bicho era criatura lendária para os europeus, incluída nos bestiários com os unicórnios.
Como em toda a obra do compositor sem parentes importantes, Bahiuno apresenta letras de beleza única, literárias e filosóficas, trazem na densidade discursiva uma dimensão política, uma compreensão e reflexão do mundo com seus perigos e esperanças, sabendo que não há motivo para festa, mas insistindo em lembrar que o novo sempre vem nessa divina comédia humana onde nada é eterno.
O rinoceronte é mais decente do que toda essa “gente de bem” do Ocidente “cristão” da Esplanada dos Ministérios.
30 de abril de 2017, um domingo.
30 de agosto de 2020, outro domingo.
Três anos e quatro meses que Belchior ficou encantado como uma nova invenção, e nós aqui, enquanto houver espaço, corpo e algum modo de dizer #elenão, nós cantamos.
Reproduções: arquivo Nirton Venancio