terça-feira, 31 de março de 2020

como disse aquele amigo do Haiti

Cai, cai
autoria e interpretação da cantora e atriz carioca Thais Thomaz

o neorrealismo de minha memória

foto Deise Jefinny
“’O último dia de sol’, de Nirton Venancio, é uma belíssima investida no cinema dos sentimentos e da memória. Rosselini redivivo, numa lição despojada de recursos, mas requintadíssima em sinceridade. Venancio, que havia realizado um poético e emocionante curta-metragem em 1988, ‘Um cotidiano perdido no tempo’, prossegue revisitando o seu próprio passado com a segurança dos grandes veteranos do cinema da Península.
‘Só é moderno aquele que soube ser antigo’, disse Murilo Mendes. O olhar de Venancio e a luz de Miguel Freire jamais interferem de maneira grosseira na observação adulta dos sentidos aviltados do menino personagem; a opção pelo preto-e-branco se impõe na tentativa de detectar fragmentos dolorosos da memória de um país à deriva. ‘O último dia do sol’ parece um episódio apócrifo de ‘Roma, cidade aberta' ou ‘Alemanha, ano zero’.
Quem se amarra em firula, vai criticar o final em aberto, o tempo excedente de algum plano e a economia dos diálogos. Os amantes do fetiche vão detestar a decupagem clássica. Mas somente aqueles que odeiam o cinema como meio de aperfeiçoamento humano serão incapazes de enxergar que estão diante de um filme grandioso em sua generosidade. A evolução de Nirton Venancio o coloca além do cinema narrativo e mais próximo da poesia em estado seminal.
Eis, finalmente, um herdeiro insuspeito da dramaturgia prosaica, embora sempre universal, e imensa em afetividade, de Roberto Santos.”

- Carlos Reichenbach (1945-2012), em sua página na internet, Cinema - Cartas do Reichenbomber, 23 de junho de 2000, sobre meu filme curta-metragem.
Na madrugada de 1º de abril de 1964, dia seguinte ao golpe militar no Brasil, um ativista político foge com a esposa e o filho pequeno. A ação, com roteiro baseado em fatos na minha memória, passa-se em uma pequena cidade do interior cearense.
Filmado em película PB 35mm, com 18 minutos de duração, recebeu os prêmios de melhor fotografia (Miguel Freire) no 4º Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba, melhor direção de arte (Jefferson De Albuquerque Junior) no 10º Cine Ceará, melhor filme nacional conferido pela Organização Católica Internacional de Cinema, no 23° Guarnicê de Cinema e Vídeo do Maranhão. Selecionado para Festival de Cine y Video de Derechos Humanos (Argentina), Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata (Chile) e Festival de Cine de La Habana (Cuba). E tantos festivais e mostras no Brasil, e debates sobre a ditadura militar. Ivana Bentes, no Curta Brasil, lembrou que é o primeiro filme que tem enredo no dia do golpe.
No elenco, os atores brasilienses Ademir Miranda, Dora Gorovitz e Reinaldo Vieira, os cearenses Antonieta Noronha, Allyson Amaral, Joca Andrade, Pedro Domingues, e parte da população de Baturité, Ceará, onde foi filmado, que participaram como figurantes.
A música original, na partitura do coração, é de Eugênio Matos, que estreou como compositor de trilhas sonoras. Montagem e edição de som do grande Severino Dadá, que colou cada fragmento de minha memória. Dami Cruz criou os figurinos, e com o auxilio luxuoso de José Everaldo, trouxeram os personagens no tempo. Chico Bororo e Márcio Câmara foram os alquimistas técnicos de som, com assistência de Lenio Oliveira. Valmi Paiva e Fábio Vasconcelos recriaram com Jefferson a noite de ontem na direção de arte. O artista plástico Dim Brinquedim refez um velho vagão-restaurante em um vagão de passageiros sobre os trilhos dos anos 60. Erika Bauer e Florence Wayne foram as continuístas que nunca perderam um take da minha memória detalhada. Galba Sandras e Deise Jefinny foram os fotógrafos de cena sempre discretos registrando tudo de algum canto no set. Sergio Rodrigues, Claudionor Little Rock, Cláudio Braga e No-Bala seguraram com firmeza a maquinaria e elétrica. Joe Pimentel e Luiz Carlos Salatiel não me deixaram em nenhum momento sozinho como assistentes de direção. Carlos Silvestre Russo, Pereira Sebastian Matias e Pedro Rodrigues enquadraram minha memória nas lentes como assistentes de câmera de Miguel Freire, a 24 quadros por segundo. Jose Rosa Filho e Marcos França seguraram a onda entre Fortaleza e Baturité como assistentes de produção. Magna Mastroianni resolveu muito mais do que tudo na produção executiva. Alvarina Sousa Silva fechou bem a produção na segunda etapa de filmagem.
Gratidão aos críticos de cinema Firmino Holanda, Maria Do Rosário Caetano, Hermes Leal, Frederico Fontenele Farias, que escreveram o que sentiram na tela.
E por último, e primeiros em meu coração, minha homenagem e profunda gratidão a Almiro Santos Filho, diretor de produção, e Carlito Almeida, chefe eletricista, que partiram para outros sets e deixaram as luzes acesas em meu cinema paradiso. 
E outros que se foram e ficaram em mim: Carlão Reichenbach, que sempre me abraçou, do alto de sua generosidade. O dramaturgo Alcione Araújo, que leu o roteiro em uma oficina e deu orientações importantes.
Uma cópia está disponível no meu canal no Vimeo. Não está em boa qualidade, mas em ótima resolução de dedicação que toda essa equipe e elenco imprimiram ao que imaginei quando escrevi o roteiro, dei o comando de “ação!” e o ponto do “Corta!”.

segunda-feira, 30 de março de 2020

foi Riachão quem fez o dia raiar

"Quando menino, eu gostava muito de brigar. Mal acabava uma peleja, já estava eu disputando outra. E aí chegavam os mais velhos para apartar, empregando aquele ditado popular: você é algum riachão que não se possa atravessar".
Assim o sambista Clementino Rodrigues explicou a origem de seu nome artístico, Riachão, em entrevista ao extinto jornal Diário de Notícias, de Salvador, no final dos anos 70.
Autor de mais de 500 composições, Riachão é uma espécie de sambista-cronista das coisas da Bahia, e por extensão, da alegria e irreverência da saudável malandragem que se manifesta nas rodas de samba, nos batuques do partido-alto, no ritmo do cavaquinho, pandeiro, surdo e agogô da alma brasileira.
Riachão ficou mais conhecido como o autor de Cada macaco no seu galho, que Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram no álbum Expresso 2222, em 1972. Depois do seu primeiro disco em 1960, gravou dois LPs nos anos 70. Em 2001, as novas gerações tomaram conhecimento de Riachão como o compositor de Vá morar com o diabo, na empolgante interpretação de Cássia Eller, registrada em seu último CD, Acústico MTV. A gravação original de Riachão é de 1972, do disco Sonho de malandro.
Os anos 2000 foram favoráveis para a redescoberta do cantor e compositor baiano. O cineasta conterrâneo Jorge Alfredo dirigiu o documentário Samba Riachão, onde conta suas histórias que são verdadeiros relatos das transformações da música popular brasileira nas ruas de Salvador. O filme ganhou o troféu Candango de melhor longa-metragem no 34º Festival de Brasília, 2001, dividindo o prêmio com Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho. Riachão foi ovacionado no palco do cine Brasília, quando na noite de apresentação do documentário cantou de improviso para uma silenciosa e reverente plateia. A divisão do prêmio principal para dois filmes distintos em categorias causou estranheza a todos. “Entrou dendê no tabule”, como observou um crítico do jornal Estado de São Paulo que cobria o evento.
Mesmo aclamado pela mídia e gravando em parceria com Carlinhos Brown, Tom Zé, Caetano Veloso, Dona Ivone Lara, Riachão não teve a projeção merecida. E recolheu-se mais ainda depois de uma tragédia na família: a esposa e dois filhos morreram num acidente de carro em 2008. De lá para cá sua alegria foi se recuperando muito vagarosamente, com a ajuda dos amigos, que o incentivavam a voltar a cantar e gravar.
Preparava músicas para o seu sonhado disco, com o título que ele escolheu como um desejo manifesto, Se Deus quiser vou chegar aos 100. Não conseguiu. Sentiu umas dores na barriga ontem à noite, tomou um remédio e foi deitar. O sambista aconchegou-se ao sono dos dois anos que faltavam e não acordou.
Abaixo, um trecho da entrevista que ele deu ao programa Ensaio, de Fernando Faro, da TV Cultura, em 2001, em que conta como surgiu a sua primeira composição.

oitavo andar

Hoje, dois anos e onze meses que nem te lembras de voltar, caro Belchior...
Atualizo o aplicativo no quadro da memória para estes dias aflitivos que vivemos, e ouço seu grito.

mas eu canto

foto Acervo Amazonas Notícias
Em 1964, o poeta Thiago de Mello era nosso adido cultural no Chile, então governado pelo conservador independente (sem partido) engenheiro Jorge Alessandri. Aqui, os latifundiários, a elite empresarial, as forças armadas e os interesses norte-americanos preparavam o golpe.
No dia 30 de março, Thiago de Mello completou 38 anos de idade. Festejou na Casa La Chascona, do poeta Pablo Neruda, onde morava, ao lado de brasileiros e amigos chilenos, entre estes o médico Salvador Allende.
Neruda e Allende estavam ao lado do poeta quando, no dia 1º de abril, ouviu no rádio o pronunciamento do deposto Jango sobre o golpe militar do dia anterior.
“O que sinto é que esse golpe militar no Brasil desencadeará uma onda de revoltas nos países da América. E até o Chile pode ser alcançado”, comentou - e vaticinou - Salvador Allende, como lembrou o poeta em entrevista à revista do Movimento Humanos Direitos, em 2009.
Como esperado, Thiago de Mello renunciou ao cargo na Embaixada. Na condição de exilado, cheio de indignação e saudade do seu país então marcado pelos Atos Institucionais que cerceavam a liberdade e suprimiam direitos, o poeta escreve um de seus mais belos poemas, Os Estatutos do Homem, o seu Ato Institucional Permanente, descrito em 14 artigos utópicos, que simbolizam a crença em leis que iluminam o coração dos homens que resistem.
O poema é o segundo, página 19, no livro publicado depois do golpe, o sintomático Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar, 1965, Editora Civilização Brasileira. Em 1980 a Martins Fontes lançou somente o poema, em formato livreto 21x21, e ilustrações do cearense Aldemir Martins.
Traduzido por Pablo Neruda, Os Estatutos do Homem teve várias edições no Chile, Uruguai, Argentina, Peru, Cuba, além de Portugal e versões para Estados Unidos e Alemanha, onde foi lançada em 1977 a Cantata dos Estatutos do Homem, composição para coral e orquestra, de autoria de Peter Janssens (1934-1998), um alemão apaixonado pela cultura da América Latina. Viveu na Argentina e musicou poemas do nicaraguense Ernesto Cardenal.
Morando desde 1978, quando retornou ao Brasil, à beira do rio Andirá, em seu Amazonas natal, Thiago de Mello completa hoje 94 anos.
Com mais de 20 livros publicados, entre poesia e prosa, e do alto de sua sempre renovada esperança, o poeta costuma citar os versos do poema A vida verdadeira, do livro Faz escuro...: “Não, não tenho caminho novo. / O que tenho de novo / é o jeito de caminhar.”
E nestes tempos sob nuvens escuras em que vivemos, de vermes no poder e vírus no ar, canto o Artigo I dos Estatutos do Buda Nagô das águas de Andirá:
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

foto Acervo Amazonas Notícias

sábado, 28 de março de 2020

o humor fotográfico



O fotógrafo e poeta francês René Maltête dizia que “nada é mais necessário que o humor, porque nos evita sofrimentos desnecessários; o humor pode mudar a impotência individual da dor”.
Falecido em 2000, aos 70 anos, deixou livros onde estão poemas e fotos que se mesclam pela característica nonsense da mensagem. Nas ruas de Paris dos anos 50, começou a fotografar as pessoas, sempre de um ângulo que criava não uma cena falsa, mas um viés com os elementos que davam a ilusão, o abstrato dentro do real. Mesmo quando passou a compor a cena para uma foto, na rua ou em ambiente fechado, o que ele fazia eram ajustes, que ao final pareciam flagrantes. Reflexões filosóficas em situações incomuns da vida cotidiana.
É muito significativo que René Maltête tenha começado sua carreira com Jacques Tati, o cineasta, que nos anos 50 e 60, melhor imprimiu o minimalismo e o silêncio como linguagens em filmes que não tinham uma história de começo, meio e fim, mas uma série de cenas curtas dentro da narrativa. A junção dessas rápidas e polifônicas explanações construíam o corpo do enredo.
Maltête fazia com suas fotos o que Tati fez em Meu tio, Playtime e As férias de sr. Hulot, para citar aqui seus três filmes mais conhecidos. “O que interessa a Tati não é o indivíduo, mas a mise-en-scène de um mundo", escreveu o crítico Stéphane Goudet, definição que se aplica perfeitamente à obra fotográfica de René Maltête.
Aqui, algumas de suas fotos mais conhecidas.

Acima, Plaisir solitaire. Diante o espelho o jogador joga com ele mesmo. Uma ilustração para esses dias de #fiqueemcasa.

as ondas do rio Ouse

Em toda obra da inglesa Virginia Woolf, Orlando: uma biografia se destaca por ser considerado um dos livros mais acessíveis em estilo, narrativa e temática semi-biográfica, baseado em parte na vida da amante da escritora, a romancista e paisagista Vita Sackville-West.
Sobre a relação, a jovem cineasta britânica Chanya Button dirigiu em 2018 o drama biográfico Vita & Virginia (no Brasil, Um romance nas entrelinhas), onde mostra mais diretamente as conflagrações do romance entre as duas escritoras e como gerou um dos mais emblemáticos livros na literatura modernista.
Em Orlando, Virginia Woolf, com uma impressionante beleza de escrita, discute as ambiguidades da similitude feminina e masculina e seus conflitos com a condição humana. Com um humor elegante, a história discorre o significado da imortalidade da personagem, uma espécie de “Hightlander vitoriana”, que atravessa 350 anos no tempo da história britânica. Em 1992 a cineasta inglesa Sally Porter fez uma adaptação à altura, Orlando, com a ótima atriz Tilda Swinton, papel que lhe deu projeção mundial no cinema.
Em 1989, Bia Lessa fez uma extraordinária adaptação de Orlando para o teatro, com Fernanda Torres no papel. Remontou a peça em 2004, com Betty Goffman substituindo.
A literatura de Virginia Woolf é um desafio para a linguagem cinematográfica, mesmo assim as adaptações feitas demonstram propriedade e uma leitura implícita das imagens que a autora coloca em suas páginas. Mrs. Dalloway, romance histórico de 1925, foi filmado em 1997 por Marleen Gorris, com Vanessa Redgrave no papel da fictícia socialite pós-Primeira Guerra. O livro em si é um dos pontos principais, quase como um personagem, na cinebiografia que o cineasta Stephen Daldry dirigiu em 2002, As horas, baseado no original de Michael Cunningham, onde mostra a existência de três mulheres de gerações diferentes: a editora Clarissa Vaughan (Melry Streep), a dona de casa Laura Brown (Julianne Moore) e ela, Virginia Woolf (Nicole Kidman), cujas vidas são entrelaçadas pelo romance que esta tenta escrever, Mrs. Dalloway.
Ao farol, drama introspectivo em paisagem insular, que Woolf descrevia como “facilmente o melhor dos meus livros”, de 1927, teve uma adaptação pouco conhecida, feita por Colin Gregg para a televisão britânica, em 1983.
Entre romances, ensaios e contos que Virginia Woolf escreveu, considero As ondas, de 1931, que não foi filmado, um dos mais inventivos enredos enquanto narrativa. É sua obra mais experimental. Uma maravilha! Os solilóquios de seis personagens (ou seriam vozes?), se alternam em conceitos individuais e de comunidade, do ser e de todos, do eu e do outro. Um caleidoscópio de índoles, traços psicológicos que vão de encontro à consciência de quem narra, de quem é narrado e de quem lê.
No começo dos anos 20 Virginia Woolf frequentava a Garsington Manor House, um extenso edifício em Oxfordshire, sudeste da Inglaterra, que a aristocrata e proprietária Lady Ottoline Morrell transformou em ponto de encontro de intelectuais famosos, como Aldous Huxley, T. S. Eliot, D. H. Lawrence, principalmente durante a Primeira Guerra, servindo o lugar como refúgio, além de outros imóveis da anfitriã das artes. Amante de alguns, como o filósofo Betrand Russell, Lady Morrell foi patrona influente de muitos escritores.
Falecida em 1938, seus diários, cadernos, cartas e fotografias desse período de convivência com seus protegidos, estão hoje guardados na Biblioteca Britânica. Relatos e fotos de Virginia Woolf fazem parte desse precioso acervo. A foto acima, em frente ao prédio, feita por Lady Morrel, é de 1923. Virginia Woolf tinha 41 anos e acabara de lançar o romance O quarto de Jacob.
O começo da Segunda Guerra Mundial, a destruição da sua casa em Londres durante uma busca, a fria recepção da crítica a sua biografia escrita pelo amigo Roger Fry, tudo veio em ondas para Virginia Woolf depois desse tempo em Garsington.
Na manhã de 28 de março de 1941, então com 59 anos, a escritora encheu de pedras os bolsos de seu casaco e foi ao encontro das águas profundas do Rio Ouse, perto de sua casa, em North Yorkshire. Foi encontrada três semanas depois, por um grupo de crianças.
"O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Fostes inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom."
Trecho da breve e comovente carta que deixou para ao marido, Leonard Woolf.

Como Orlando, Virginia Woolf atravessa o tempo na história da literatura e em ondas na nossa memória.

sexta-feira, 27 de março de 2020

a imagem do dia

Sozinho diante a monumental praça de São Pedro vazia, o Papa Francisco celebrou a missa nesta sexta-feira, deu a bênção e a indulgência plenária ao mundo pela pandemia de coronavírus.
Gesto inédito em toda história do Vaticano.

a brutalidade da peste

foto ©Renato Mangolim
No final de 2018 estreou no Rio de Janeiro, a peça A peste, baseada no romance homônimo de Albert Camus, dirigida por Vera Holtz e Guilherme Leme, seguindo  depois para outras capitais.
Escrito durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1947, a Magnum opus do escritor franco-argelino, uma espécie de “versão romanceada da filosofia existencialista”, como bem definiu recentemente o professor Arnaldo Godoy, livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, descreve a história que se passa em Oran, cidade no litoral mediterrâneo da Argélia, assolada por uma epidemia, devastando os habitantes progressivamente.
A excelente montagem teatral centraliza a narrativa no personagem principal, o médico Bernard Rieux, que, em um dia qualquer, ao sair de casa depara-se com um rato morto, e pede ao porteiro do prédio para retirá-lo. Outros aparecem, e ninguém se importa, até o mal chegar às pessoas.
Estruturado em um monólogo, com atuação perfeita de Pedro Osório (foto), a peça desenvolve contornos contemporâneos para apontar e refletir o desmoronamento moral da sociedade e os avanços dos governos de ultradireita, pontuações que estão no original de Camus, na analogia que faz à ocupação nazista na Europa.
Assim como no livro, a montagem de Holtz e Leme espelha também a reavaliação de pequenos gestos que nos mantém juntos no cotidiano, a urgente solidariedade que precisamos ter como resistência diante os flagelos e o autoritarismo. Reflexão oportuna neste momento no mundo inteiro, e especialmente no Brasil, quando temos a infelicidade de um despresidente-alma sebosa no planalto central do país, desdenhando a gravidade de uma pandemia, encarnando a brutalidade da peste ao tomar atitudes genocidas contra a população.
Hoje celebra-se o Dia Mundial do Teatro, em referência a inauguração do Teatro das Nações, em Paris, 1961. Também se comemora no Brasil o Dia do Circo, em reverência a data de nascimento, em 1897, do paulista Abelardo Pinto, conhecido como palhaço Piolin.
Ao Teatro e ao Circo, àqueles que nos palcos entregam-se de corpo e alma em seus trabalhos, e assim “dão coerência aos sonhos”, como dizia Luigi Pirandello, minha ternura e gratidão mais profundas, lá do pré-sal do meu coração.

quinta-feira, 26 de março de 2020

mais além

“Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado, e disse à minha alma: 'Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?'
E minha alma disse: 'Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho.’”

- Walt Whitman, em As folhas da relva, publicado em 1855. A ‘magnum opus’ do maior poeta norte-americano teve várias edições. Inicialmente, o autor bancou sozinho a tiragem, investiu do seu salário de empregado de um jornal. Whitman não considerava seu livro concluído.
A vida não parava de lhe dar motivos para desfolhar a relva e escrever. Escrever e se fazer presente em trabalhos voluntários nas ruas, nos hospitais, nos asilos, nas embarcações como marinheiro. Foram praticamente quatro décadas preparando o livro e convivendo com mendigos, prostitutas, operários, pessoas que compartilhavam as dores e a esperança. O poeta esteve na trincheira da Guerra da Secessão, na batalha entre o norte industrializado e abolicionista e o sul aristocrata, latifundiário e escravagista.
Whitman escreveu sobre a liberdade. E não por acaso é o criador do verso livre. Sua alma libertária se cristalizava na escrita desacorrentada da métrica acadêmica. E pela ousadia, lucidez em ver, sentir e falar sobre a odisseia do homem simples, Whitman chegou a ter sua obra acusada de esquisita, bizarra e até obscena, a ponto de um crítico descerebrado sugerir açoite em praça pública como punição.
Ao final da nona e última edição do livro, em 1892, já no leito de morte, Whitman chegou a 382 poemas.
As folhas da relva é uma espécie de bíblia da poesia norte-americana. Um livro de fôlego, épico, sobre o ser humano em busca de respostas e caminhos. Uma vez concluído e alcançado o objetivo do poeta, prosseguimos no caminho dele.
Acima, o autor fotografado por George Collins Cox, em 1887. Um dos retratistas pioneiros, Cox sempre esteve por perto de Whitman, e notabilizou-se pelas belas imagens que expressavam a consistência da alma do poeta. Seu acervo foi restaurado em 1979, e digitalizado na Library of Congress's Prints and Photographs, Washington.
Hoje, depois de 128 anos de sua morte, a poesia da imagem também indo mais além.

quarta-feira, 25 de março de 2020

desobediência civil


menos #elenão!


#elenão é louco

“Não, ele não é um louco.
Ele não representa a desrazão.
Ao contrário, ele representa uma racionalidade que por pouco tempo, com algum pudor, ocultava-se nas cordialidades cotidianas e, hoje, sente-se livre, sem qualquer controle institucional e/ou moral que interrompa o avanço do seu desprezo à humanidade para além de si e dos seus.”

- trecho de um artigo de Cynthia Ciarallo, doutora em Psicologia, publicado em agosto de 2019 no site JornalGGN, e cada vez mais oportuno.

terça-feira, 24 de março de 2020

poema que desejamos ler em breve

A primavera não sabia, da jornalista e escritora italiana Irene Rivella.
Interpretação do ator português Rui Unas.

de reverendo a lutador

Em junho de 1970 o cantor e compositor Tim Maia lança seu primeiro LP, com seu nome como título. Ele chegara dos Estados Unidos, onde foi estudar música negra.
O disco é uma obra-prima do lado A ao B. Entre as doze faixas, estão pérolas como Primavera, Coroné Antonio Bento, Cristina, Azul da cor do mar, Eu amo você, a maioria em parceria com o paraibano Cassiano, o que foi um encontro perfeito: ambos têm o talento de mesclar o ritmo soul com raízes da música brasileira urbana e rural.
O exemplo disso é a faixa 4 do lado A, Padre Cícero. O arranjo e o vozeirão de Tim Maia misturam o soul com o baião, com guitarras, bateria, triângulo e vocais que vão e vêm dos guetos de Chicago (onde o ritmo teve influência gospel) ao sertão de Juazeiro (onde a sanfona toca nas igrejas).
Um fato curioso sobre a composição Padre Cícero: o jornalista e produtor musical Nelson Motta conta na página 84 da biografia Vale tudo: O som e a fúria de Tim Maia, 2007, que em 1970, à frente da produção das trilhas sonoras das novelas da Globo, precisava de algo novo, impactante, que coubesse no perfil do personagem principal de Irmãos Coragem, interpretado por Tarcísio Meira. Foi ao estúdio da Polydor onde o cantor estava gravando seu disco de estreia e se entusiasmou com o ritmo eletrizante, imponente e heroico de Padre Cícero. Ali mesmo foi negociado com Tim Maia a versão João Coragem, faixa 9 do disco da novela. “No sertão do Crato”, virou “no sertão distante” “e no Juazeiro” mudou para “no sertão inteiro”, e o reverendo do agreste caririense se tornou o lutador garimpeiro da fictícia cidade Coroado de Janete Clair.
Padre Cícero era tão “milagroso” que a música de Tim Maia e Cassiano foi sucesso em inglês. A banda Os Condors gravou no seu primeiro e único LP, de 1971, com a versão de Terry Winter (1941-1998), um dos pseudônimos do brasileiro neto de ingleses Thomas William Standen, autor do sucesso "Summer holiday". A banda era de São Paulo mesmo, cantava covers de sucessos norte-americanos. O santo do Juazeiro converteu-se em “Father Cícero”.
Hoje é aniversário de nascimento do Padim Ciço, 176 anos. Rogai pelos brasileiros nesta hora agora que recorremos a vós.

segunda-feira, 23 de março de 2020

frágeis pigmeus


“Moro há 50 anos no centro de Roma, na rua mais movimentada da cidade, que leva da praça Veneza à Basílica de São Pedro.

Normalmente, essa rua está 24 horas por dia entupida de trânsito, de turistas e peregrinos. Há duas semanas, está muda e deserta. Só de vez em quando ouve-se o grito de uma sirene de ambulância e algum sem-teto passa. A cidade inteira está fantasmagórica como a Los Angeles de 'Blade Runner'. Aqui, porém, desapareceram até os replicantes extraterrestres.

O que significa uma pandemia como essa para Roma, para a Itália, para a humanidade como um todo? Como ela age nas mentes e nos corações de todos nós que, armados com tecnologias poderosas e inteligência artificial, até poucas semanas atrás nos sentíamos os senhores do céu e da terra?

Subitamente nos descobrimos frágeis pigmeus diante da onipotência imaterial de um vírus que, por vias misteriosas, escapou de um morcego chinês para vir matar homens e mulheres em nossas cidades.”

- Trecho do artigo de Domenico De Masi, sociólogo italiano, no jornal Folha de São Paulo, 22/3/2020.


pausa dos gigantes

Na foto abaixo, James Dean e Elizabeth Taylor fotografados por Richard Miller, 1955, descansado durante um intervalo das filmagens de Assim caminha a humanidade (Giant), de George Stevens.
Dean estava com 24 anos quando se foi antes da estreia do filme, a 135 km por hora no seu Porsche 440.
Elizabeth Taylor tinha 23. Aos 26 foi a felina Maggie em Gata em teto de zinco quente. Ganhou o primeiro Oscar aos 28, pela interpretação da atormentada Gloria de Disque Butterfield 8. Quando completou 31 anos foi consagrada rainha do Egito em Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz.
Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Mike Nichols, 1966, deu o segundo Oscar a atriz, que mais uma vez entregou-se a uma personagem difícil, a inquieta Martha que ama-e-odeia o marido George – papel do ator Richard Burton, com quem viveu uma relação conflituosa.
No ano seguinte Elizabeth Taylor interpreta a esposa infiel em O pecado de todos nós, de John Huston. O marido seria protagonizado por Montgomery Clift, mas faleceu poucos antes de iniciar as filmagens. Lee Marvin e Richard Burton não toparam o papel, um major do Exército impotente e secretamente homossexual, e sobrou para Marlon Brando, que acabara de fazer um empresário que se relaciona com uma prostituta russa em A condessa de Hong-Kong, último filme de Charles Chaplin.
Na década de 70 e seguintes, Elizabeth Taylor não teve papeis relevantes, com exceção da garçonete Jimmie em Unidos pelo mal, dirigido pelo ator Peter Ustinov, mais uma vez contracenando com o marido Burton, e que lhe deu o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, 1972.
Filmes pequenos para a televisão, voz para desenhos animados, empreendimento comercial na área de cosmético, amiga e conselheira de Michael Jackson, e madrinha de seu primeiro filho, trabalhos filantrópicos em campanhas contra a AIDS, e sérios problemas de saúde, como um tumor no cérebro e insuficiência cardíaca crônica, marcaram os últimos anos da atriz.
Na manhã de 23 março de 2011 Elizabeth Taylor não resistiu a uma cirurgia no coração. O descanso definitivo aos 79 anos.

não é filme

foto olhardigital
Em quarentena. Entre leituras, escritas e afazeres, trabalho em casa, entre telefonemas aos filhos, familiares, um amigo no andar de cima e outros distantes, viagens canceladas, passeios adiados, entre olhar da janela a rua deserta e o inimigo invisível que avança por todos os lados, entre a saída rápida ao supermercado esvaziado, luvas, álcool gel, máscara, o medo coletivo mensurado a dois metros na fila, entre o grupo de risco e o risco de ficar em grupos, entre a descrença ainda de muitos ao perigo iminente, entre a saudade de um abraço e as mensagens no WhatsApp, hashtag #fiqueemcasa nas redes sociais, entre a impotência de ver os que não têm casa onde ficar, entre a revolta crescente pelo país estar entregue a um demente de "gripezinha" na presidência, assessores delirantes na mesma ala da estupidez, poderes legislativo e judiciário fracalhões, entre a aceitação de recolhimento e a esperança que se arranca não se sabe de onde...
A sensação que se tem é que estamos entregues ao próprio infortúnio, de estarmos dentro de um desses filmes de contágio, ou nas páginas de A peste, de Albert Camus, filmado por Ridley Scott.

A realidade confirmando a ficção.

domingo, 22 de março de 2020

o colecionador

foto acervo da família.

“Há uma diferença muito grande entre um pesquisador, historiador e o colecionador. Mas no Brasil a deficiência é tão grande de objetos a serem pesquisados nos museus, que qualquer um que se meta a historiar ou a pesquisar — e qualquer brasileiro tem direito a isso, independente de sexo e idade, porque a pesquisa e o amor a verdade histórica é algo que nasce com a pessoa — tem que ser, antes de mais nada, um colecionador. Por isso é que acho que as coleções são indispensáveis.”

- Christiano Câmara, pesquisador, historiador, colecionador, e tudo que o significa a memória da cultura musical brasileira. Guardava também centenas, em cópias VHS, de filmes dos estúdios hollywoodianos até os anos 50, período que ele, com muito humor e convicção, considerava o melhor.
20 mil discos de cera, vinis, fotos, revistas e enciclopédias, estavam guardados e sempre à disposição de quem quisesse visitar a casa-museu-acervo de Christiano, ali, no centro da cidade de Fortaleza, por detrás da Catedral, numa transversal da subida da rua Rufino de Alencar, no meio da rua Baturité, onde o olhar descia para a praia de Iracema. travessa Baturité, ou Rua da Escadinha, 162, título do documentário curta-metragem realizado em 2003 pelo sobrinho Márcio Câmara, onde relata a trajetória do tio historiador autodidata, bancário aposentado, e uma das maiores referências de cultura no Brasil.
Sempre que se batia palmas – como antigamente – ao portão de ferro, ‘seu’ Christiano aparecia lá da entrada da casa, pelo corredor aberto lateral. Com um sorriso e largas bermudas de quem sabe ficar em casa e viver criativamente a aposentadoria, recebia o visitante, adentrava e nos guiava pelo paraíso da memória, mesmo se a pessoa conhecesse, tivesse vindo outras vezes. Era sempre o primeiro dia de tantos outros para tanta coisa a se admirar.
Christiano nos conduzia pelas estantes, mostrava as raridades, abria os vinis e colocava uma faixa para ouvir. Enquanto ouvíamos a música, ouvíamos também a legenda de suas informações, datas, casos, histórias que, inevitavelmente, envolvia os ouvidos e o coração. Como se não bastasse aquele longo e afetivo passeio pela história da música brasileira dos anos 1910 à década de 50, o visitante era acolhido à mesinha na varanda para um café com tapioca, sempre servido por sua esposa, dona Douvina, 58 anos juntos.
O trecho acima é da entrevista que Christiano Câmara concedeu ao site A Nova Democracia, em setembro de 2003. Em 2016, na madrugada do dia 22 de março, o memorialista faleceu, aos 81 anos, em decorrência de problemas cardiorrespiratórios, depois de dois meses hospitalizado.
Há quatro anos não subimos mais a rua da Escadinha.

sábado, 21 de março de 2020

ilhados na quarentena

"Sonífera ilha", gravado em compacto no começo de 1984, foi o single que lançou os Titãs. No lado B, a faixa "Toda cor".
Composta por Marcelo Fromer, Branco Mello, Toni Bellotto, Ciro Pessoa e Carlos Barmack, o sucesso da música impulsionou a gravação do LP de estreia da banda paulistana, que em agosto próximo completará de 36 anos de lançamento.
Com uma pegada meio ska, a interpretação no disco é de Paulo Miklos.
Aqui no clipe comemorativo, os remanescentes titânicos Branco Mello, Toni Bellotto, Sergio Brito e vários artistas sintonizam juntos o radinho de pilha.

a história de Carbonari

foto Juca Varella, 2003
No final dos anos 80 fui a produtora do documentarista Primo Carbonari, em Barra Funda, zona oeste da capital paulista. Atencioso, ouviu minhas informações e meu pedido sobre uma pesquisa que estava fazendo para um trabalho.
Impressionou-me aquele senhor gordo, tipicamente italiano, como um personagem vindo de um filme de Fellini para outro de Ettore Scola. Bastante reservado, calça largas de linho cinza, suspensórios, usava pares de lentes grossas improvisadas em uma armação de óculos de soldador, o que já remetia a protagonista de filmes dos irmãos belgas Dardenne. A peculiaridade dos óculos dava-lhe precisão para manusear películas 16 e 35mm, ajustar as lentes das câmeras, acionar a moviola, e ler os jornais de letras miúdas quando as visitas saiam.
Ele me guiava pelos labirintos de corredores abarrotados de estantes de ferro com latas e latas e latas com mais de 13 mil rolos de filmes. O cheiro de celuloide poderia ser sufocante para quem não fosse um apaixonado pela magia do cinema. Quilômetros de imagens de cinejornais naquelas prateleiras, muitos que vi antes das projeções dos clássicos europeus, dos westerns de John Ford e os spaghetti de sua Itália imigrante. Estava eu ali, entre as obras guardadas em minha memória afetiva, guiado na galeria por seu total criador. Era como entrar no útero de uma parte do cinema.
Primo Carbonari foi responsável durante 45 anos pelo Cinejornal, informativo veiculado nas salas de cinema de todo o país com as mais variadas notícias. De 1929 a 1990, registrou imagens que marcaram o desenvolvimento da indústria, as pesquisas e progresso da medicina, os momentos históricos do esporte, os movimentos culturais, os desfiles das escolas de samba, e principalmente a política, que era seu tema predileto. Carbonari filmou as posses de Getúlio aos presidentes da ditadura militar, e o enterro de Tancredo Neves.
Em 2003 o cineasta Eugênio Puppo iniciou um projeto para recuperar e catalogar o riquíssimo acervo, e finalizar o trabalho em um documentário que contasse a recente história do Brasil através das lentes de Carbonari. Acervo que ele adequadamente chamava de AmplaVisão. O projeto não foi concluído, por questões com os herdeiros.
Primo Carbonari faleceu em 2006, no começo da noite de 21 de março, de problemas causados pela obesidade, aos 86 anos. Em 2012 li no Jornal GGN que um processo, em que envolve a produtora de Eugênio Puppo e a filha do documentarista, Regina Carbonari, corria na 1ª Vara Cível do Foro Regional de Santana. E nesse impasse, a história em decomposição química pela inadequada conservação dos rolos de filmes.
Mesmo sem pretensão, Carbonari tornou-se um dos maiores documentaristas brasileiros. Um dos primeiros com uma ideia na cabeça perseguindo a notícia e uma câmera 16mm na mão apreendendo o fato.

conselho de amigo


"Aproveita esse bando de saudades que se agitam em teu espírito".
- Esse foi o conselho que Graciliano Ramos deu a um amigo que desabafa suas dores e quer escrever poemas.
O trecho está no livro póstumo Cartas, publicado em 1980, pela Editora Record. Nele estão cartas enviadas pelo escritor alagoano a amigos e familiares, no período de 1910 a 1952.
A leitura proporciona uma relação íntima entre o autor e o leitor, numa curiosa simetria entre o missivista e seus destinatários.
A respeito do amigo poeta que tem um "bando de saudades" no peito, Graciliano reforça dizendo: "espero que me mandes em breve uma chusma de sonetos"...Deve ter mandado. Saudade dá muita poesia.
Hoje, 63 anos de saudade do velho Graça.

quinta-feira, 19 de março de 2020

o amor nos tempos da peste

“Os flagelos, com efeito são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”
Trecho da primeira parte, página 24, de A peste, de Albert Camus, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, publicado em 1947.
A história se passa em Oran, cidade no litoral mediterrâneo da Argélia, que é assolada por uma epidemia, devastando os habitantes progressivamente.
Filósofo, jornalista, ensaísta, dramaturgo, romancista, o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) foi militante na Resistência Francesa assim como tomou posições decisivas na Guerra da Independência de seu país de origem.
Para escrever A peste, inspirou-se na pestilência de cólera em 1849 em Oran, ao mesmo tempo que faz uma analogia à ocupação nazista na Europa.
As duas leituras - o mal invisível da contaminação biológica e a maldade na concretude humana - convergem para a reflexão sobre a impotência, a exclusão da liberdade e, sobretudo, a ruminação sobre a solidariedade necessária entre os homens, a urgência do ser coletivo tomar forma, corpo e atitude em detrimento do particular, do individual, da peste do ego.
No livro vemos a morte se aproximar, invadir e alterar a rotina dos habitantes, encurralados pelo horror. Homens, mulheres, crianças, velhos, o juiz, o médico, o padre, todos se veem separados, isolados, sem comunicação exterior, e em suas inquietações interiores se conscientizam da importância que as pessoas tinham em suas vidas.
Do bacilo argelino em Oran do século 19 ao surto virótico na chinesa Wuran de 2020, “como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, é-se obrigado a amar sem o saber", como diz Albert Camus em outro trecho de sua obra máxima.

o ator e o personagem

foto de Adery Luís Costa / Acervo Sincrocine Produtora
O ator Amâncio Fregolente disse uma vez em uma entrevista que se morresse no palco, durante uma peça, quem morreria seria o personagem e não ele, tamanha era sua entrega numa atuação.
De formação teatral rodrigueana, concluiu o curso de medicina já cinquentão, com especialização em psiquiatria, e exerceu a profissão em um consultório na cidade do Rio de Janeiro por vários anos, ao mesmo tempo em que se dedicava ao cinema e ao teatro, em mais de cem brilhantes papéis.
Sobre sua formatura como médico, Nelson Rodrigues escreveu uma crônica, publicada no jornal O Globo, dentro da série A Vida Como Ela É, em que conta como recebeu a notícia. Diz um trecho:
“Imaginem vocês que eu estava há três anos na redação escrevendo o meu romance ‘O casamento’. Nisto bate o telefone. Era o Fregolente, que eu não via há séculos. E agora quero que leitor se comova como eu: o Fregolente vinha me comunicar que, aos 53 anos, estava se formando em medicina, era médico... [...] Que coisa deslumbrante o riso do Fregolente, e repito: o som do riso do Fregolente. Berrava no telefone: ‘na idade em que o sujeito só pensa em morrer, eu só penso em curar!'. Explodia em gargalhadas ao dizer isso.”
A cura se desdobrava também em seus trabalhos como ator, em serviços prestados ao bem-estar das pessoas em tantas peças e filmes. O ator Fregolente extraía de si uma outra vida, cada interpretação insistia na reflexão, na esperança, reverberava a pulsação da alma humana.
Em 1979 integrou o elenco do filme Amante latino, de Pedro Carlos Rovai, contracenando com Monique Lafon, Ida Gomes, Anselmo Vasconcellos, Elke Maravilha, Angelina Muniz e, entre outros, o cantor Sidney Magal, que interpretava a si mesmo, no auge da popularidade, destaque que firmava a proposta da produção.
Incorporando elementos da chanchada, é uma comédia musical, onde Magal prepara um show para juntar grana e hipotecar a escola em que estudou na infância. O prédio seria demolido para dar lugar a uma fábrica. Fregolente interpreta um inescrupuloso empresário que fará tudo para impedir o show.
Durante as filmagens, no dia 19 de março daquele ano, o ator sente-se mal e falece de infarto do miocárdio.
Fregolente tinha 66 anos, o dobro da idade de quando começou a atuar. Como predisse na entrevista, faleceu o personagem > faleceu o duplo de si. O início da carreira nos palcos > 33 anos depois o último take num filme. A simetria do tempo por todos os lados.
Na foto acima, o personagem e Fregolente em seu último trabalho.

quarta-feira, 18 de março de 2020

rap do "coiso"


fora!


rock and roll Chuck

Em final de 1987 o cineasta californiano Taylor Hackford lançou o documentário Chuck Berry Hail! Hail! Rock 'n' Roll, no Brasil com o título Chuck Berry – O mito do rock.
As duas horas eletrizantes na tela mostram longos trechos de dois shows no Fox Theatre, em St. Louis, Missouri, em homenagem aos 60 anos de idade do músico no ano anterior.
Vários ilustres roqueiros e bluesmen entrelaçam a narrativa com depoimentos, como Eric Clapton, Robert Cray, Roy Orbison, Bo Diddley, a cantora Etta James, Bruce Springsteen...
Mas o ponto alto é a participação de Keith Richards. O projeto do documentário, na verdade, partiu do stone, um discípulo assumido de Berry. A técnica e a performance de Richards tocar guitarra são declaradamente inspiradas nas canções clássicas do pioneiro do gênero, Rock and roll music, Johnny B. Goode, Roll over Beethoven, Mabybellene...
Durante o ensaio de Oh, Carol, Chuck Berry interrompe Keith Richards dizendo que não é assim, e ouve as explicações. O lendário roqueiro deixa claro que se quer fazer direito, veja como ele faz. Os músicos da banda se entreolham, aguardando aqueles dois deuses da guitarra chegarem a um acordo. Keith Richards, mascando um chiclete, engole seco sua postura de Rolling Stone e obedece às cordas de aço do mestre.
Há três anos, no começo da tarde de 18 de março, a guitarra e coração de Chuck Berry pararam de tocar.

terça-feira, 17 de março de 2020

aprendendo a jogar

Em 5 de janeiro de 1982 Elis Regina foi a convidada do programa Jogo da Verdade, apresentado pelo jornalista Salomão Ésper, na TV Cultura, São Paulo, com as participações do produtor musical Zuza Homem de Mello e do jornalista Maurício Kubrisly como entrevistadores.
Foi um show de raciocínio lúcido, pensamento astuto, reflexões brilhantes e verdadeiras, pertinentes àquele momento da música brasileira e à situação política e social do país.
Em um trecho ela fala que aquele do 666 do apocalipse estava solto entre nós. Era governo do “cavaleiro” Figueiredo, o último dos generais da ditadura militar.
Falecida 14 dias depois dessa entrevista, a cantora faria hoje 75 anos. O que ela falou sobre o capeta cabe muito bem no mal do Brasil de hoje.

segunda-feira, 16 de março de 2020

o mundo desde o fim

Em uma cena do filme Asas do desejo (Der Himmel über Berlin), de Wim Wenders, 1987, o personagem Damiel, interpretado por Bruno Ganz, está na Biblioteca de Berlim. Na sua condição invisível de anjo inclina a cabeça sobre um homem que lê um trecho do Livro de Gênesis, em hebraico: "Ha'Aretz haita tohu-va-vohu"/ “A Terra estava um caos”.
Essa possivelmente seja a cena que resume toda a essência da história e propósito do personagem. Damiel acompanhado de outro anjo, Cassiel, vivido por Otto Sander, sobrevoam a gélida e devastada Berlim, ainda separada pelo Muro. Os dois compõem uma legião de querubins e serafins que vêm a este mundão, que não se toca de tanta estupidez, velar pelas almas perdidas, pelos seres que se desesperam impotentes e em silêncio.
O filme centraliza a narrativa nas andanças, ou mais propriamente, adejos, de Damiel e Cassiel, como Cosme e Damião redivivos, contemporâneos, costumizados fisicamente de humanos, com seus casacos e imensas asas sobre a garbardine. Acompanham as desventuras dos mortais lá do alto, de baixo e do lado, na mesma latitude e longitude da respiração. Apesar de não sentirem na pele a dimensão das dores e o elevo dos prazeres terrenos, se compadecem e desconhecem em equivalentes proporções.
Damiel, porém, em uma fresta e descuido de sua condição divina, sucumbe, e na horizontalidade das circunstâncias, apaixona-se pela bela trapezista Marion, interpretada pela atriz francesa Solveig Dommartin, então casada com Wenders. Damiel sofre por não poder concretizar o sentimento, o desejo. Para poder tocá-la, precisaria deixar de ser anjo, renegar sua conjunção de imortalidade, e assim, conhecer por dentro o que do alto apreende e presume dos humanos. Um outro anjo o ajuda na escolha entre os dois mundos.
A menção de o Muro de Berlim na história se coloca como uma alegoria, uma representatividade do que separa e do que une, do que se pensa e do que se faz, do que se deseja e do que não se pode. A Terra em permanente ameaça do caos no exterior e no lado de dentro de cada mortal.
Wim Wenders declarou que para a dissertação do roteiro inspirou-se na poética do tcheco Rainer Maria Rilke, no espaço cósmico interior que sua obra reflete, na união e desunião transcendental do homem e o mundo.
Nos créditos finais, o cineasta dedica o filme “a todos os anjos, mas especialmente a Yasujiro, François e Andrej”.
A dedicatória de Wim Wenders, como referência e reverência, expressa o cinema minimalista do japonês Ozu, a paixão na cinematografia do francês Truffaut e o tempo metafísico do russo Tarkovsky: amálgamas de homens e anjos em suas obras.
Em 1998, Hollywood refilmou com o título Cidade dos anjos, dirigido por Brad Silberling, com Nicholas Gage e Meg Ryan, mas sem a presença de um anjo para intermediar a qualidade imortal do original.
Com a Alemanha reunificada com a queda do Muro, Wim Wenders filma em 1993 a continuação, Tão longe, tão perto, com Bruno Ganz e seu Damiel reloaded, agora casado com a trapezista e dono de uma pizzaria.
Como cantou Caetano Veloso em Os outros românticos, gravado em 1989 no disco O estrangeiro, “Anjos sobre Berlim / o mundo desde o fim / e, no entanto, era um sim / e foi e era e é e será sim”, um jogo de palavras e sutil aliteração final que remete a “serafim”.

domingo, 15 de março de 2020

cidadão do teatro

foto Ann Mari, Dublin
Em abril de 2008, o diretor de teatro e dramaturgo Augusto Boal esteve no Abbey Theatre, em Dublin, para receber o Prêmio Crossborder For Peace and Democracy. Emocionado, falou sobre sua vida nos palcos, perseguido pelo regime militar do Golpe de 64, enfrentando censura, prisão, tortura... Relatou um pouco da vida no exílio a partir de 1971, e o retorno ao Brasil em 1986.
Expoente da vanguarda artística nos anos 50 e 60, Boal foi responsável pela concepção do Teatro do Oprimido, que buscava aliar à prática artística uma ação social e política, calcada na educação, na cidadania, nos princípios pedagógicos. Dizia que “atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma.”
O jornal inglês The Guardian escreveu que Boal “reinventou o teatro político, uma figura internacional tão importante quanto Brecht ou Stanislavski." No mesmo ano da premiação na Irlanda, seu nome foi lembrado para o Nobel da Paz.
Foi para ele que Chico Buarque compôs com Francis Hime Meu caro amigo, gravada no disco Meus caros amigos, 1976. Morando em Lisboa, Boal recebeu a carta em forma de música, "notícias nessa fita", com a saudade da largura de tanto mar, tanto mar...
Falecido em 2009, faria hoje 89 anos.