domingo, 19 de julho de 2020

os senhores de Abbey Road

Em 1969 o autor do livro O Senhor dos anéis, J. R. R. Tolkien, vendeu os direitos para a produtora United Artists, e foi escolhido Stanley Kubrick para dirigir a adaptação, com os Beatles no elenco. Imaginem!
George Harrison, já um predestinado ao hinduísmo, ia fazer o mago conselheiro Gandalf, Lennon com seus olhos amendoados encararia o esquisito hobbit Gollum, Paul com seu bom-mocismo congênito seria o herói guardião Frodo, e para o patinho feio Ringo sobrou Sam Gamgee, o prefeito do Condado da divisão dos pés-peludos.
Que ótima zorra psicodélica, tipo capa do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, seria naquele final de década, em contraponto à pauta da programação de alguns fatos marcantes que aconteciam ao redor do mundo naquele ano:
- Richard Nixon assume a presidência dos EUA e manda centenas de garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones morrerem na Guerra do Vietnã;
- o grupo do psicopata Charles Manson invade a mansão do cineasta Roman Polanski, na California, assassina a esposa grávida, a atriz Sharon Tate, e mais cinco amigos;
- policiais entram no bar The Stonewall Inn, em Nova York, local predominantemente gay, atacam a todos na mais explícita manifestação de ódio, discriminação e cerceamento da liberdade;
- um meteoro de mais de 1700 quilos cai numa região desértica do estado de Chihuahua, no México, disputando o noticiário com o Grande Prêmio do México de Fórmula 1 realizado na capital;
- na pequena cidade de Bethel, estado de Nova York, uma multidão de mais de 400 mil jovens com o dedo em V, cabelo ao vento, e mais de trinta músicos já famosos, vivem intensamente três dias de paz, amor e música da Era de Aquário, o Woodstock;
- Garrastazu Médici, o mais cruel dos generais da ditadura, toma posse e toma mais ainda os direitos dos brasileiros, executando com precisão tirânica todos os itens do AI-5;
- Pelé chuta o seu milésimo gol, no jogo Santos e Vasco da Gama, na arena do Maracanã, já no pontapé para o clima de "Pra frente, Brasil" do ano seguinte;
- Judy Galland, a atriz que aos 17 anos interpretou a doce Dorothy e foi além do arco-íris em O mágico de Oz, é encontrada morta no banheiro de sua casa, aos 47 anos, por overdose de barbitúricos;
- Led Zeppelin explode o famoso dirigível Hindenburg na capa de seu incendiário e ótimo disco de estreia;
- os Beatles sobem o terraço da Apple Records, em Londres, fazem seu último show, Let it be, depois atravessam a faixa de pedestres para a gravação de Abbey Road e encerram uma era na história da banda mais influente de todos os tempos;
- e bem mais acima, Neil Armstrong pisa na Lua, dando um pequeno passo e um salto gigante para a humanidade.
Mas Kubrick, que acabara de lançar aquele monólito negro emitindo sinais de outras civilizações em 2001 - uma odisseia no espaço, desdenhou o convite, não foi futurista o bastante para prever a mina de ouro que seria a sequência de filmes sobre o livro de Tolkien.
O cineasta disse que aquilo tudo era infilmável. Preferiu se dedicar a uma Inglaterra de futuro indeterminado onde se ambientava o livro de Anthony Burgess, A clockwork orange, que lhe rendeu o clássico e perturbador Laranja mecânica, em 1971, emoldurando a distopia com as sinfonias de Beethoven e Rossini.
A tecnologia digital naqueles inquietos e revolucionários anos 60 não existia ainda o suficiente para realizar, como se firmou no cinema-industrial, a linha mestra da trilogia de fascínio comandada pelo neozelandês Peter Jackson.
O filme com os Beatles nunca foi feito. Só restou o cartaz de experimento da produtora, como um flyer analógico, como um pergaminho da Terra Média que não existiu.
Em tempo: o senhor dos anéis Peter Jackson anunciou para 2021 o lançamento do documentário sobre Let it be. Fecha-se o círculo mágico.

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