sábado, 25 de julho de 2020

deixa eu dizer que te amo

“E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”
- Trecho de O primo Basílio, de Eça de Queiroz, página 126, quando narra a reação da personagem Luísa depois de ler o bilhete apaixonado de Basílio, conquistador e irresponsável, que ilude a jovem casada, romântica e ludibriada pelo amante em seus sentimentos.
Publicado em 1878, o clássico romance sobre o adultério e a condição feminina, é um exemplar do realismo da literatura portuguesa. O escritor que já abalara três anos antes a moralidade da Igreja Católica no polêmico O crime do padre Amaro, dessa vez dirige seus dardos certeiros para as mazelas da família burguesa urbana, com uma análise ferrenha, focando com elegância literária, mas sem comedimentos na representação, os ridículos de uma classe média alta e proporcionalmente dissimulada. O personagem-título é uma espécie de dândi cínico e pedante, que mantém o estilo de vida aristocrático, mas decadente.
A precisão cirúrgica com que o escritor disseca os costumes, absurdos e contradições dos personagens da sociedade lisboeta, revela que o universo mesquinho e protótipo de futilidade reverbera-se muito além da geografia e do tempo. Nunca um romance teve seus aplicativos tão atualizados ao olharmos em volta o mundo em que vivemos, ladeira abaixo de hipocrisias.
Contemporâneos, Eça Queiroz e Machado de Assis admiravam-se. Foi do escritor brasileiro a primeira crítica a O primo Basílio, apreciação que já fizera quando lançara O crime do Padre Amaro. A repercussão da ampla análise de Machado praticamente tornou o romancista português bastante conhecido no Brasil. Eça de Queiroz escreveu-lhe agradecendo, mesmo discordando de alguns pontos em que ataca a escola realista.
Em 2000 a cantora Marisa Monte lançou o single Amor I love you que fez parte do seu disco Memórias, crônicas e declarações de amor. A música alcançou um sucesso inesperado, a mais tocada no rádio, trilha de novela da Globo, prêmio de melhor clipe no Video Music Brasil, indicação ao Grammy Latino na categoria Melhor Canção Brasileira, versão pop-sertaneja do cantor Daniel, um estouro no hit parade, como se dizia nos anos 60, 70.
No meio da canção, o cantor Arnaldo Antunes entra com sua personalista voz grave gutural e declama o trecho acima de O primo Basílio. O romantismo da incauta e contrafeita personagem do século 19 mescla-se com amor desvelado da jovem apaixonada do século 21. Se Luísa tinha suspirado devotamente e beijou o bilhete perfumado de Basílio, a moça na voz de Marisa Monte contava às paredes coisas do seu coração. Esta passeou no tempo, caminhou nas horas o passo da paixão que a lusitana Luísa dantanho conduzia a um êxtase. A alma da sofrida heroína de Eça de Queiroz se cobria de um luxo radioso de sensações, e isso acalma, rima que acolhe a alma e ajuda a viver na letra da canção.
Num salto na geografia e no tempo, o amor e seus precipícios. De Eça de Queiroz, que escreveu “aquelas belas sentimentalidades”, à Marisa Monte e Carlinhos Brown que escreveram o frugal de “um espelho sem razão”.
Acima, Luísa e Basílio “psicografados” pelo ilustrador Bernardo Marques (1898-1962), um dos grandes nomes da 2ª geração da pintura modernista portuguesa.

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