terça-feira, 14 de julho de 2020

Lucky, Harry

Lucky - O realismo é uma coisa.
Garçom – Ah, é? Como assim?
Lucky - É a prática de aceitar uma situação tal como ela é... e está preparado para lidar com ela.
Garçom - Está dizendo que o que você vê é a sua realidade?
Lucky – Mas o que você vê não é a minha realidade.

O diálogo, aparentemente banal, é um breviário que define bem a essência do ótimo Lucky, ou mais precisamente no título original Lucky is Harry Dean Stanton, filme dirigido por John Caroll Lynch, lançado no final de 2017.
A sacada dos roteiristas Logan Sparks e Drago Sumonja em homenagear o grande ator de Paris, Texas, criando um personagem fictício baseado na vida do próprio Harry Dean Stanton, apresenta uma diferente narrativa cinematográfica, um argumento pouco visto na história do cinema.
Harry Dean Stanton estava com 90 anos de idade quando se animou e não pensou duas vezes em aceitar o convite. Mesmo dizendo que os roteiristas conceberam aquele personagem, o ator interpreta a si mesmo, veste-se de sua vida, reveste-se de seus dramas e fantasmas, desnuda-se em sua solidão.
Lucky nunca casou, não teve filhos. Harry Dean Stanton também não. Os dois participaram da Segunda Guerra, como cozinheiros. Fumam um maço de cigarros por dia. São ateus em uma jornada espiritual. A morte é iminente, ambos têm mais passado que futuro, mas "se vamos voltar ao nada, a única coisa que podemos fazer é sorrir", reflete. A vida é presente em cada segundo diante o precipício. Lucky, ou Harry, ou Lucky e Harry, destilam o potencial ranzinza da velhice com doses de Bloody Mary e comentários espirituosos, ácidos, sem poupar quem está ao seu redor, sem dar espaço aos idiotas que se aproximam. “Só há uma coisa pior que silêncio constrangedor: conversa fiada”, diz.
O percurso narrativo do filme tem a alma de um documentário na pele da estrutura ficcional. As linguagens não se confundem: uma está incorporada à outra, por força do protagonista, pela presença do ator. O personagem Lucky interpreta o ator Harry. A realidade para cada um é aceitar a proximidade do fim, sabendo lidar sem autocomiseração. O que Harry vê na vida “inventada” de Lucky é a sua realidade. Mas o que Lucky “vê” em Harry não é a sua realidade. O cinema, em sua beleza e magnitude conceitual, atinge o poder de espelho descritivo, o tempo e o espaço diegéticos dentro da trama, os limites, coerências e particularidades do drama no mesmo fôlego da ficção e realidade.
O carismático Harry Dean Stanton, com sua esculpida cara de um tio nosso que queremos bem, fez quase trinta filmes ao longo de seis décadas. Mas não é o engenheiro técnico Brett de Alien, o oitavo passageiro nem o recuperador de bens Bud de Repo Man, que ficaram tão fortemente marcados como Travis, o andarilho com amnésia do filme de Wim Wenders, 1984. Não por acaso, Lucky faz longas caminhadas em estradas desertas e ruas desoladas de uma cidadezinha do Arizona, numa referência indireta ao lendário outro personagem, ou seja, numa citação direta ao ator.
Harry Dean Stanton faria hoje 94 anos de andanças. Faleceu em setembro de 2017, num leito de hospital em Los Angeles, tranquilamente, de causas naturais, sorrindo para o tudo que deixou, em direção ao nada que acreditava.
Não viu seu último filme na tela. Mas como Lucky, esteve dentro do filme. E o que vemos, é a realidade dele.

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