foto Leo Lara
Em 1966, durante as filmagens de El justiceiro, o diretor Nelson Pereira dos Santos, grita chamando o seu assistente: “Luiz Carlos!”. Dois da equipe com o mesmo nome atendem. “Não, o do bigode!”, identifica Nelson.
E assim nasceu o apelido de um dos mais queridos cineastas brasileiros, Luiz Carlos Lacerda, que à época exibia um vasto bigode no estilo Marlon Brando em Viva Zapata. Mais podado, Luiz Carlos Lacerda conserva sua marca registrada. E por trás de seus óculos e do bigode, o nosso cineasta tem muitas histórias para contar. Luiz Carlos Lacerda é direto em suas colocações, opiniões e pensamento na mesma proporção que é afável com quem trabalha, com seus alunos, com quem tem o prazer de sua amizade.
Filho do produtor de cinema João Tinoco de Freitas, começou em 1965, como assistente de direção de Ruy Santos, no filme Onde a Terra começa. Mas é com Nelson Pereira dos Santos que ele considera de fato sua estreia profissional e afetiva. “Foi o meu grande mestre. Me ensinou tudo sobre cinema. Primeiro, a paixão pelo cinema, que o Ruy não me passou. Não é que ele ensinasse em tom professoral, mas de uma maneira liberal. A alegria que ele estabelecia na filmagem, a inteligência, a viagem que era trabalhar consigo, me contaminou definitivamente”, como diz na página 51 de Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema, relato biográfico escrito por Alfredo Sternheim, da Coleção Aplauso, 2007.
Autodidata, poeta de mão cheia e coração pulsante de talento, foi com “Mãos vazias”, que Bigode estreou na direção de longa-metragem, em 1971, baseado na novela homônima de Lúcio Cardoso, publicada em 1938.
Esse filme é um dos maiores exemplares da cinematografia brasileira. Narrando o drama de uma mulher submissa, que perde o filho, se revolta com os costumes tradicionais numa pequena cidade mineira, Mãos vazias reflete em si, na sua postura e linguagem transgressora, um período sintomático da vida politica do país, então no auge da ditadura militar, moldada pelos artigos do AI-5, sob o comando do cruel Garrastazu Médici.
O que contorna a feitura do filme, tudo que envolve a produção de Mãos vazias, retrata igualmente o período marcante do nosso cinema naquele início dos anos 70:
- para começar a rodar seu longa, filmado em Parati, Luiz Carlos Lacerda ganhou de seu mestre Nelson Pereira dos Santos, dez latas de negativos que sobraram de Como era gostoso o meu francês;
- equipamentos de câmera, som e luz foram emprestados do fotógrafo Julio Romiti;
- equipe e elenco pagos em sistema de cooperativa;
- a atriz principal, Leila Diniz, vendeu seu fusquinha para investir na produção;
- o ator Jece Valadão assumiu o pagamento de revelação e edição, e depois, através de sua produtora, decidiu não lançar o filme por “respeito ao público” por ter sido proibido pela censura;
- Leila Diniz engravida do cineasta Ruy Guerra durante as filmagens. Nasce Janaína. Foi seu último trabalho.
Do denso Mãos vazias, passando pelo divertido e dançante Viva sapato!, coprodução espanhola de 2007, ao seu mais recente trabalho, Introdução à música do sangue, também inspirado na obra de Lúcio Cardoso, o Brasil no cinema de Luiz Carlos Lacerda expressa um painel significativo de nossa história na arte e na política. Cada filme delineia o universo arcaico com suas condutas de relevância, o mundo contemporâneo com sua consistência de mudança, a desconstrução do óbvio no foco de transformação e esperança.
Leila Diniz, seu filme mais conhecido, além de uma homenagem a grande amiga, é um tributo ao esplendor da mulher brasileira, através daquela que com sua beleza irreverente, sua personalidade ousada, quebrou tabus e desafiou uma sociedade machista. Premiado no Festival de Brasília em 1987, melhor atriz (Louise Cardoso) e ator coadjuvante (Paulo César Grande), Luiz Carlos Lacerda consagrou na película o que Drummond agraciou na mais poética definição: "sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão."
Os cinco prêmios no Festival de Gramado e melhor filme, ator e direção de arte no Festival de Miami para For All - O Trampolim da Vitória, de 1997, codirigido por Buza Ferraz, honram, justificam, laureiam o filme que melhor reproduz, com um criativo roteiro de romance e comédia, a presença do Brasil dentro do Brasil na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos construíram uma base militar estratégica na cidade Paramirim, a doze quilômetros da capital potiguar.
Bigode completa hoje 75 anos de vida e prazer intrínseco pelo cinema.
Em necessário isolamento social em sua casa no Jardim Botânico, o cineasta vê filmes, lê, escreve, e faz a alquimia de seus pratos, “corto todas as cebolas da casa, arrasto os móveis, incenso”, como diz em seu belo poema que Maria Bethania declama antes de cantar a música Esse cara.
Grato, meu caro Bigode, pelos seus filmes. Grato por Mãos vazias que me deu uma sacudida quando o assisti, eu adolescente fascinado por cinema diante o telão do cine Diogo, em Fortaleza.
Parabéns pelo seu dia todos os dias. Aperto-lhe a mão e o chamo de amigo.
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