domingo, 5 de julho de 2020

a burguesia fede

 Fred Barnard, 1880
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
Os inocentes do Leblon, poema de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1940, publicado no livro O sentimento do mundo, uma observação crítica a um dos mais nobres bairros da zona sul carioca, onde o valor do metro quadrado é proporcional ao distanciamento que muitos moradores têm da realidade.
Parafraseando e atualizando o aplicativo para a cruel realidade de agora, quando no último dia 2 um grande número de pessoas, sem máscaras de proteção facial e debochando do isolamento, lotou as calçadas dos bares do bairro:
- os ignorantes e culpados do Leblon ignoram o navio no ar que chegou com a doença para todos, a eles interessa apenas se trouxe bailarinas, aquelas em que no poema se refere às dançarinas do Cancan francês, e as tratam como prostitutas;
- a eles imbecis importa saber se o barco trouxe os imigrantes para dilapidar e dividir entre si nossas riquezas, e não aqueles que chegam da ilha estrangeira caribenha para se somar aos nossos sonhos, curas e esperanças;
- os cretinos das calçadas dos bares flamejantes, com suas importadas cervejas Westvleteren 12 e Three Philosophers, ignoram que o grama de rádio potencial de massa de urânio que destruiu Hiroshima agora são as gotículas infectadas que arrasaram a também oriental Wuhan;
- com a pele bronzeada com óleos suaves nas areias escaldantes do Leblon, os idiotas preferem dar as costas aos seus serviçais que contaminaram e agonizam sem UTIs;
E dando um salto simétrico no tempo, na mesma lucidez poética e oportuna da letra de Antonio Cícero em Virgem (do disco homônimo de Marina, 1987), “Os inocentes do Leblon / eles nem sabem de você / nem vão querer saber”.
São néscios operantes para o nada, para a destruição, dopados e incapazes da reflexão e discernimento para a solidariedade, para a empatia, para a vida.

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