sexta-feira, 31 de julho de 2020

galope

O corpo do homem
é um cavalo
onde
a alma põe a sela
e dispara no mundo
- o galope da existência
é um fato mágico
um mistério profundo
uma revolução eterna.

As esporas dos dias
atiçam o meu corpo
pelo sertão do mundo
e com as rédeas dos braços
cavalgo
pela trajetória contínua do sol
com a vida ferrada
nos olhos
e os segredos nos alforjes do peito.

Jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo
é decisivo
todo caminho
dá para o norte
todo corpo
é um gibão sobre a alma
toda a vida
é o lado externo da morte
todo peito
é um roçado
para toda safra
ser das rosas.

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Poema de meu primeiro livro ©Roteiro dos pássaros, 1981, Prêmio Filgueiras Lima de Poesia, Editora e Gráfica Lourenço Filho, Fortaleza, Ceará.
O escritor amigo Carlos Emílio Corrêa Lima, parceiro da geração do Grupo Siriará de Literatura, sempre “me cobra” uma nova edição do livro. À época a tiragem foi de 1000 exemplares, e hoje me surpreendo quando encontro um exemplar no site Estante Virtual a preço de raridade.
Outro dia, o poeta amigo de Brasília, Domingos Pereira Netto, lembrou que em 2021 o livro fará 40 anos de publicação, e merece uma edição comemorativa.
Juntando a “cobrança” de um com a lembrança de outro, no próximo ano será lançada, pela Editora Radiadora, uma edição com tiragem limitada, revisada e com mais um prefácio.
Na edição de 1981:
Projeto gráfico, capa: Rosemberg Cariry
Prefácio: F. S. Nascimento
Textos da contracapa: F. S. Nascimento e Artur Eduardo Benevides
Foto: Celso Oliveira Fotógrafo

quarta-feira, 29 de julho de 2020

nunca mais outra vez

Uma vez eu vi-ouvi você tocando e cantando Belchior. O nosso rapaz há tempo muito tempo longe de casa, e você ali tão perto nos trazendo frases dentro de suas canções.
Uma vez eu falei que ia entrevistá-lo para meu filme “Pessoal do Ceará – Lado A Lado B”, você se surpreendeu e justificou que tinha começado na música há pouco tempo, não tinha nada para contar, que era autodidata, que tinha o diploma de sofrer de outra universidade, e se convenceu quando expliquei que o documentário quer ouvir a nova geração e suas influências, e você brincou, “tá bom, eu fico no lado B”.
Uma vez eu estava sentado à beira do caminho pra pedir carona, e você me levou do Cantinho do Frango para outro local, e atravessamos as ruas de Fortaleza, com tempo para ouvir o pendrive no carro, tempo para a turma do outro bar nos esperar, e conversamos entre as faixas, nos intervalos das águas das ruas, nas paralelas quando o sinal estava fechado para nós.
Uma vez eu disse que achava aquela sua guitarra de corpo vazado a sua marca, sua cara e seu coração, que enquanto tocava eu podia ver o coração selvagem de Belchior, pois o mundo inteiro estava ali em frente, adorando seu jeito calmo de cantar para nós o que alma deseja.
Agora nesta manhã de quarta-feira, isolados que estamos nessas ilhas cheias de distância, recebo a notícia que você partiu tão jovem. A manhã chegou trazendo a noite rumo ao seu coração, que como o coração de Belchior que você cantava tão bem, explodiu de tanto canto, pela simples alegria de ser.
Pediremos ao bom Deus que nos ajude, Erickson Mendes, a suportar a sua ausência, nosso coração também é frágil. Falaremos para a vida que continuaremos conversando com os amigos ao redor de sua mesa, lembrando de sua voz, sua risada para apagar a tristeza.
Uma vez num daqueles shows aconchegantes, onde as mesas ficam quase dentro do palco, pedi para cantar Tudo outra vez. “De novo, Nirton, já toquei”, disse sorrindo. E você com seu charme brasileiro, cantou outra vez e embarcou comigo, cantando tudo de novo com paixão.
Hoje à noite teria uma live. Eu ia pedir Tudo outra vez, amigo.

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré

Chega! Já deu, pandemia nos céus do planeta!
Chega! Já deu, pandemônio no chão do planalto central!
Os bares estão cheios de almas tão vazias negacionistas! A ganância vibra nos bares de todos os Leblons, a vaidade dos ‘inocentes’ excita outros ‘inocentes’ nas passarelas dos shoppings, nas areias escaldantes das praias.
Chega! Já deu, pandemônio!
Devolva nossa vida, nosso país e sofra afogado em teu próprio mar de fel, vagarás, vagarás, te tornarás bagaço, pedaço de tábua no mar, da tua familícia ninguém vai pro céu! Tens a aura da besta, essa alma bissexta, essa cara de cão! Não existe amor em JB.

Chega! Já deu, pandemia!
Não precisamos morrer pra ver Deus. Não precisamos sofrer pra saber o que é melhor pra nós e pra elenão! Ganho fé, saio a pé, vou até a Bahia, porque a fé não costuma faiá!

Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim, chama o pessoal, manda descer pra ver, meu projeto de Brasil chama-se um Gilberto Gil!


No diário do ano em que vivemos isolados, sampleando uma oração, convocando o Buda evoé jovem Criolo e a esperança nagô do filho de Gandhi.

terça-feira, 28 de julho de 2020

alinhamento dos astros

Caetano Veloso, José Saramago, Jorge Amado.
Registro astronômico da jornalista e fotógrafa Maria Sampaio, na casa do músico baiano, em Salvador, 1996.
Naquele ano, Caetano preparava o disco Livro, lançado em 1997, juntamente com a autobiografia Verdade Tropical. O álbum é um de seus melhores trabalhos. Estão lá Onde Rio é mais baiano, Manhatã, Não enche, uma ótima regravação de Na baixa do sapateiro, de Ary Barroso, e a conceitual faixa-título, onde o trecho inicial parece uma legenda inversa para a foto: “Tropeçavas nos astros desastrada / quase não tínhamos livros em casa / e a cidade não tinha livraria / mas os livros que em nossa vida entraram / são como a radiação de um corpo negro”.
Saramago lançara Ensaio sobre a cegueira um ano antes, possivelmente o livro do escritor que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro. Na Bahia ele descansava do trabalho que dizia ter sido “um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida.”
Jorge Amado preparava o que veio a ser sua penúltima obra, O milagre dos pássaros, uma fábula ambientada em Alagoas. Conta a história de Ubaldo Capadócio, trovador popular, amante de muitas mulheres, típico galanteador irresistível. Mesmo fora do céu da Bahia, personagens da constelação jorgeamadiana, numa deliciosa narrativa temperada com dendê.
O alinhamento dos planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, que aconteceu no último domingo, 26, voltará em 2022.
O alinhamento visto “nas sacadas dos sobrados / da velha São Salvador” em 1996, tornou-se um fenômeno raro.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

duas mulheres da América

"Descoberta por Jacob do Bandolim aos 16 anos, ela foi uma das maiores cantoras brasileiras, vibrando com igual beleza do erudito ao popular, e a primeira voz feminina da Bossa Nova.

MULHERES DA AMÉRICA reverencia A DIVINA ELIZETE CARDOSO e conta suas histórias de vida.

Pra minha alegria e agradecimento, o programa é feito a quatro mãos com o poeta, professor de literatura e cinema e cineasta do sertão de Inhamus Nirton Venancio 😊

Vem pra pertinho do céu amanhã, segunda, 20h, na tua www.radioeletrica.com
Produção e apresentação: Eliana Guedes"

- Eliana Guedes, em sua página no Facebook

domingo, 26 de julho de 2020

minh'avó


Minh’avó caminhava pela grande casa.
Minh’avó muito pequena, até um dia desses,
caminhava pela grande casa.
Continuava com seus passos
seu cansaço
seus laços.

Minh’avó alterou a lei da física:
carregava no seu espinhaço tão frágil
décadas décadas décadas
datas datas datas
dias dias dias
carregava festas
aniversários
e algumas compras
carregava guerras
revoluções
e algumas brigas.

Teimosa, não se dava conta de toda essa carga
e olhava pela janela
o automóvel na rua
a moça na calçada
e ninguém mais em direção à igreja.


Fragmento do meu livro inédito ©"Trem da memória - um poema"
a ser lançado pela Editora Radiadora
coordenação editorial Alan Mendonça
prefácios Valdi Ferreira Lima e Mailson Furtado

Na foto ilustrativa acima, de Maurício Albano, a atriz Jacy Fontenele em uma cena do meu filme "Um cotidiano perdido no tempo", 1988, onde interpreta minh'avó.

sábado, 25 de julho de 2020

deixa eu dizer que te amo

“E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”
- Trecho de O primo Basílio, de Eça de Queiroz, página 126, quando narra a reação da personagem Luísa depois de ler o bilhete apaixonado de Basílio, conquistador e irresponsável, que ilude a jovem casada, romântica e ludibriada pelo amante em seus sentimentos.
Publicado em 1878, o clássico romance sobre o adultério e a condição feminina, é um exemplar do realismo da literatura portuguesa. O escritor que já abalara três anos antes a moralidade da Igreja Católica no polêmico O crime do padre Amaro, dessa vez dirige seus dardos certeiros para as mazelas da família burguesa urbana, com uma análise ferrenha, focando com elegância literária, mas sem comedimentos na representação, os ridículos de uma classe média alta e proporcionalmente dissimulada. O personagem-título é uma espécie de dândi cínico e pedante, que mantém o estilo de vida aristocrático, mas decadente.
A precisão cirúrgica com que o escritor disseca os costumes, absurdos e contradições dos personagens da sociedade lisboeta, revela que o universo mesquinho e protótipo de futilidade reverbera-se muito além da geografia e do tempo. Nunca um romance teve seus aplicativos tão atualizados ao olharmos em volta o mundo em que vivemos, ladeira abaixo de hipocrisias.
Contemporâneos, Eça Queiroz e Machado de Assis admiravam-se. Foi do escritor brasileiro a primeira crítica a O primo Basílio, apreciação que já fizera quando lançara O crime do Padre Amaro. A repercussão da ampla análise de Machado praticamente tornou o romancista português bastante conhecido no Brasil. Eça de Queiroz escreveu-lhe agradecendo, mesmo discordando de alguns pontos em que ataca a escola realista.
Em 2000 a cantora Marisa Monte lançou o single Amor I love you que fez parte do seu disco Memórias, crônicas e declarações de amor. A música alcançou um sucesso inesperado, a mais tocada no rádio, trilha de novela da Globo, prêmio de melhor clipe no Video Music Brasil, indicação ao Grammy Latino na categoria Melhor Canção Brasileira, versão pop-sertaneja do cantor Daniel, um estouro no hit parade, como se dizia nos anos 60, 70.
No meio da canção, o cantor Arnaldo Antunes entra com sua personalista voz grave gutural e declama o trecho acima de O primo Basílio. O romantismo da incauta e contrafeita personagem do século 19 mescla-se com amor desvelado da jovem apaixonada do século 21. Se Luísa tinha suspirado devotamente e beijou o bilhete perfumado de Basílio, a moça na voz de Marisa Monte contava às paredes coisas do seu coração. Esta passeou no tempo, caminhou nas horas o passo da paixão que a lusitana Luísa dantanho conduzia a um êxtase. A alma da sofrida heroína de Eça de Queiroz se cobria de um luxo radioso de sensações, e isso acalma, rima que acolhe a alma e ajuda a viver na letra da canção.
Num salto na geografia e no tempo, o amor e seus precipícios. De Eça de Queiroz, que escreveu “aquelas belas sentimentalidades”, à Marisa Monte e Carlinhos Brown que escreveram o frugal de “um espelho sem razão”.
Acima, Luísa e Basílio “psicografados” pelo ilustrador Bernardo Marques (1898-1962), um dos grandes nomes da 2ª geração da pintura modernista portuguesa.

a mais alta patente do samba

foto Joaquim Corrêa, 2015
Na noite de 25 de junho de 2015 Nelson Sargento entrou no palco do Teatro da Caixa Cultural, em Brasília, após a abertura instrumental do grupo Galo Preto. Pequeno, franzino, com passos vagarosos, mas firmes, o compositor, com a elegância suprema da simplicidade, levantou a plateia em aplausos.
E começou a cantar, como cantasse em particular para o coração imantado de cada presente. E sambou em passos minimalistas, como dançasse para cada um de nós, ali com vontade de subir o palco. E contou a história de cada composição, de suas parcerias com Cartola, Guilherme Brito, Carlos Cachaça, como nos contasse doces segredos balançando a cadeira de vime na varanda. E falou de Evonete, sua esposa e musa de muitas sambas, que apareceu no palco para lhe servir água geladinha, como falasse da pessoa que amamos e estivesse iluminada em nossa frente. E falou como conheceu Paulinho da Viola, como traduzindo o bem-querer daquele que é um rio de canções sempre passando em nossas vidas. E falou de sua Mangueira Estação Primeira, da qual é Presidente de Honra, como que nos convidando para cantar um samba-enredo que é ele próprio. E falou de seu time, Vasco da Gama, que fez vibrar até aqueles que torcem por outras cores do outro lado do jogo.

No meio do show, Nelson agradeceu a presença de todos. Agradeceu aos músicos que o acompanhavam, ao cantor Pedro Miranda, com quem dividiu o repertório. Todos o reverenciaram com olhares que se derramaram diante aquela entidade, um Buda nagô nascido da beleza da nação negra brasileira.
Sempre simpático, cativantemente espirituoso, Nelson Sargento falou das comemorações de seu aniversário no ano anterior, e que estava firme, forte e sambando para os 91 anos naquele próximo 25 de julho.
Sincero e generoso, lembrou que o maior presente que recebeu como celebração pelas nove décadas de vida foi a produção do show Nelson Sargento, 90 Anos de Samba e a turnê que então seguia pelo país: "é muito bom receber as flores em vida", disse, fazendo a plateia novamente se levantar e aplaudir, comovida.
O sambista parafraseou de forma inversa o seu xará Nelson Cavaquinho, que lamentava na canção Quando eu me chamar saudade, não precisar "homenagear fazendo de ouro um violão" depois que fosse embora, preferia "as flores em vida / o carinho, a mão amiga".
Diante tanta mediocridade midiática da música que assola este país, agora mais que antes afundando em desencanto, é gratificante ter visto um artista do porte, da importância de Nelson Sargento, fazendo show, lúcido e brincalhão, lançando livro de biografia no hall do Teatro, acessível, autografando, tirando fotos e conversando com todos, como foi naquela noite.
E eis que o compositor chega hoje aos 96 anos, firme, forte e sambando tão longe tão perto mesmo que seja numa Live.

dia do escritor

Nirton Venancio e Fausto Nilo, autor do desenho da capa de Poesia provisória, Lançamento na Livraria Lamarca, Fortaleza, 15/2/2019.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

tô com saudade de tu

No começo da noite de 23 de julho de 2013, os teclados, os botões, o fole do coração de José Domingos de Morais, o querido sanfoneiro, cantor e compositor Dominguinhos, pararam. O baião, o forró, o xote, o choro, a bossa nova, silenciaram em nota dó.
Depois de quase um ano internado com problemas de câncer no pulmão, o artista por sete meses transitou entre quartos e salas de UTIs de hospitais em Recife e São Paulo. Mergulhou na escuridão do coma, e emergia em rápidas recuperações, quando podia ver a nota sol iluminando esperança, ao lado de parentes e amigos.
Falecido, a partir daquela noite de terça-feira, o incansável corpo de Dominguinhos seguiu numa “turnê” involuntária: por questões de decisões judiciais dos familiares foi sepultado inicialmente no cemitério de Paulista, município próximo da capital pernambucana, um dia depois o enterro definitivo em Garanhus, sua terra natal, onde era o seu desejo ficar quando o show por este mundo terminasse.
Dominguinhos, que tinha medo de viajar de avião, não teve escolha, e voltou feito pássaro para o sertão. Foi passear no seu céu.

nós só dissemos tchau

O compositor e cantor Péricles Cavalcanti e sua originalíssima versão de Back to black, de Amy Winehouse, apresentada no show Leve & Solto, SESC Pompeia, 2016, com o auxilio luxuoso de Marcelo Monteiro, sax, e Pipo Pegoraro, baixo e MPC.
Nove anos hoje que Amy não morreu.

meu mundo não é esse

foto Acervo O Estado de São Paulo, 2017
“A classe média só me dá aborrecimento, me faz comprar televisão, me faz consumir supermercado, me faz ter apartamento, me proíbe de respirar. Da classe média eu quero distância. Tanto assim que no meu filme a classe média é caricaturada como um cordão de bobocas que andam pelo filme o tempo todo fazendo poses como faz a classe média.”
“O meu trabalho não vai pras pessoas que deveriam ver porque os veículos de comunicação não permitem. Primeiro porque existe um bloqueio feito pela ignorância cultural brasileira. E existe deliberadamente um bloqueio da máquina de consumo contra meus filmes, porque minha imagem não agrada muito aos homens que comandam os veículos de comunicação. Eu sou realmente uma pessoa bastante difícil de lidar, realmente não tenho tolerância pra uma série de coisas que vejo acontecendo as repartições públicas e nos escritórios e nas diretorias dos veículos. Cerceamento de pensamento, e outras milongas mais. Logo, não tenho grandes possibilidades de aceitação.”
- Cantor, compositor e cineasta Sérgio Ricardo em entrevista ao fascículo Nova História da Música Popular Brasileira, 1978, que acompanha um disco de 10 polegadas, com oito faixas, letras comentadas e fichas técnicas.
Àquela data, Sérgio Ricardo tinha lançado onze discos, dirigido quatro filmes, o curta Menino da calça branca, os longas Esse mundo é meu, Juliana do amor perdido e A noite do espantalho (a que se refere no primeiro comentário), e marcadamente em seu currículo a mítica, icônica e bela trilha sonora de Deus e diabo na terra do sol, além de outros filmes de Glauber Rocha, Terra em transee Dragão da maldade contra o santo guerreiro.

O célebre episódio no II Festival de Música Popular, no auditório da TV Record, São Paulo, 1967, é recorrente ao se falar de Sergio Ricardo, quando ao apresentar sua canção Beto bom de bola foi violentamente vaiado sem conseguir conclui-la. O cantor voltou ao final e os gritos foram mais intensos. Sérgio Ricardo bradou “Vocês venceram! Isto é Brasil! Isto é país subdesenvolvido!”. Quebrou o violão, jogou para a plateia, saiu e foi desclassificado.

Os dois trechos da entrevista, ao que apressadamente possam analisar como traço de ressentimento, é a mais lúcida e sincera reflexão daqueles que fazem parte de uma constelação de “intransigentes sonhadores”, como bem definiu meu caro amigo compositor Ricardo Augusto.
Ziraldo, na mesma publicação, no texto de abertura assim arremata o perfil de Sérgio Ricardo:
“Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como um dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”
De 1979 para cá, quando em 2018 dirigiu o filme Bandeira de retalhos e ano passado lançou o livro de poesia Canção calada, Sérgio Ricardo íntegro, não se entregou. Moldou sua trajetória como Beto Bom de Bola, o personagem de sua canção vaiada, “deu o seu recado enquanto durou a sua história”. E sua história ficará sob aplausos.

de parabélum na mão

Nesta manhã de quinta-feira, aos 88 anos, o cantor e compositor Sergio Ricardo só se entregou à morte com o violão na mão.
foto de Will Santos, Festival da Música Brasileira, 1967.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

o nome dela

"Não tenho medo da morte. Na minha terra, a morte é uma mulher e se chama Caetana. E o único jeito de aceitar essa maldita é pensando que ela é uma mulher linda."
- Ariano Suassuna
Seis anos hoje que Ariano seguiu de encontro a Caetana.

guarde uma frase pra mim dentro de sua canção

foto Marcelo Tabach
Em meados dos anos 90 a cantora Amelinha encontrou com Belchior nos bastidores de uma emissora de televisão em São Paulo. Na alegria das conversas abraçadas de conterrâneos quando se encontram, o cantor comentou que gostaria muito de ouvir na voz dela uma canção que gravou em 1987, De primeira grandeza, no disco Melodrama.
O tempo passou. Em 2000 a cantora pensou em incluir a canção no CD Ednardo, Amelinha & Belchior - Pessoal do Ceará, mas não cabia dentro da proposta do disco.
Belchior sumiu em seu exílio voluntário e voltou de uma forma que não desejávamos. “Fiquei sete dias muda, quieta, chocada e com um vazio enorme no meu peito”, disse Amelinha, expressando um sentimento de todos nós.
Em agosto de 2017, quatro meses depois da morte de Belchior, a convite do produtor Thiago Marques Luiz, Amelinha segue para a cidade Piracaia, São Paulo. No Estúdio Canto da Coruja, situado num bucólico sítio, passa quatro dias gravando o álbum De primeira grandeza – as canções de Belchior, com direção musical de Estevan Sincovitz. O disco é belíssimo, um dos melhores de Amelinha, com sua voz cada vez mais afinada e anímica. Estão lá dez canções preciosas, incluindo uma das poucas conhecidas de Belchior, Incêndios, parceria com Petrúcio Maia, gravada por Fagner no disco Romance no deserto, 1987.
Belchior estava certo na intuição: a interpretação de Amelinha em De primeira grandeza é de uma beleza e simetria impressionantes, condizendo com a letra quando o autor diz “Quando eu estou sob as luzes / não tenho medo de nada / e a face oculta da lua - que é a minha! / aparece iluminada. / Sou o que escondo - sendo uma mulher / igual a tua namorada / mas o que vês quando me mostro – estrela / de grandeza inesperada.”
Ontem foi aniversário de Amelinha. Parabéns pelo seu dia todos os dias, flor da paisagem das canções cearenses nordestinamente brasileiras.

terça-feira, 21 de julho de 2020

another brick

Há 30 anos, exatamente no dia 21 de julho, Roger Waters apresentou um dos maiores concertos da história do rock, The Wall — Live in Berlin, com um público estimado em 350 mil pessoas.
O show foi em comemoração à queda do muro de Berlim, ocorrida um ano antes. A complexa estrutura do evento foi montada exatamente no local onde deu início a construção do muro, em agosto de 1961, entre a praça Potsdamer Platz e o Portão de Brandemburgo, entrada da capital alemã, onde tem o neoclássico arco do triunfo.
Tanto o disco The Wall quanto o filme homônimo, dirigido por Alan Parker, são anteriores ao fato, respectivamente 1979 e 1982. Apesar de ser inspirado na vida pessoal de Waters, fazendo referência ao seu pai morto na Itália durante a Segunda Guerra, (“Daddy's flown across the ocean / leaving just a memory”, inicia “Another brick in the wall"), a história narrada no operístico álbum duplo representa a opressão de todos ("I don't need no arms around me / and I don't need no drugs to calm me”, finaliza a icônica canção single).
Durante os 28 anos de existência, o muro, com seus quase 70 km de extensão, separou não somente um país, mas polarizou o mundo, no que Drummond chamou de "tempo de homens partidos". Com seus tijolos imbecis num desenho ilógico, foi o principal símbolo da Guerra Fria.
Há muros e "muros" ainda para serem derrubados, dentro de nós e lá fora. Há o meu lado e o teu. Isso e aquilo. "Tudo tão difícil depois que vos calastes... / E muitos de vós nunca se abriram", citando outra vez Drummond, em seu preciso poema Nosso tempo, página 23 de A rosa do povo, publicado do final da Guerra, 1945.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

domingo, 19 de julho de 2020

final de domingo com Clarice

"Fiquei sozinha um domingo inteiro. Não telefonei para ninguém e ninguém me telefonou. Estava totalmente só. Fiquei sentada num sofá com o pensamento livre. Mas no decorrer desse dia até a hora de dormir tive umas três vezes um súbito reconhecimento de mim mesma e do mundo que me assombrou e me fez mergulhar em profundezas obscuras de onde saí para uma luz de ouro. Era o encontro do eu com o eu. A solidão é um luxo."
- Trecho da fala da personagem Angela Pralini, autora-narradora de Um sopro de vida, de Clarice Lispector, página 45, publicado em 1978, um ano depois de sua morte.

os senhores de Abbey Road

Em 1969 o autor do livro O Senhor dos anéis, J. R. R. Tolkien, vendeu os direitos para a produtora United Artists, e foi escolhido Stanley Kubrick para dirigir a adaptação, com os Beatles no elenco. Imaginem!
George Harrison, já um predestinado ao hinduísmo, ia fazer o mago conselheiro Gandalf, Lennon com seus olhos amendoados encararia o esquisito hobbit Gollum, Paul com seu bom-mocismo congênito seria o herói guardião Frodo, e para o patinho feio Ringo sobrou Sam Gamgee, o prefeito do Condado da divisão dos pés-peludos.
Que ótima zorra psicodélica, tipo capa do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, seria naquele final de década, em contraponto à pauta da programação de alguns fatos marcantes que aconteciam ao redor do mundo naquele ano:
- Richard Nixon assume a presidência dos EUA e manda centenas de garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones morrerem na Guerra do Vietnã;
- o grupo do psicopata Charles Manson invade a mansão do cineasta Roman Polanski, na California, assassina a esposa grávida, a atriz Sharon Tate, e mais cinco amigos;
- policiais entram no bar The Stonewall Inn, em Nova York, local predominantemente gay, atacam a todos na mais explícita manifestação de ódio, discriminação e cerceamento da liberdade;
- um meteoro de mais de 1700 quilos cai numa região desértica do estado de Chihuahua, no México, disputando o noticiário com o Grande Prêmio do México de Fórmula 1 realizado na capital;
- na pequena cidade de Bethel, estado de Nova York, uma multidão de mais de 400 mil jovens com o dedo em V, cabelo ao vento, e mais de trinta músicos já famosos, vivem intensamente três dias de paz, amor e música da Era de Aquário, o Woodstock;
- Garrastazu Médici, o mais cruel dos generais da ditadura, toma posse e toma mais ainda os direitos dos brasileiros, executando com precisão tirânica todos os itens do AI-5;
- Pelé chuta o seu milésimo gol, no jogo Santos e Vasco da Gama, na arena do Maracanã, já no pontapé para o clima de "Pra frente, Brasil" do ano seguinte;
- Judy Galland, a atriz que aos 17 anos interpretou a doce Dorothy e foi além do arco-íris em O mágico de Oz, é encontrada morta no banheiro de sua casa, aos 47 anos, por overdose de barbitúricos;
- Led Zeppelin explode o famoso dirigível Hindenburg na capa de seu incendiário e ótimo disco de estreia;
- os Beatles sobem o terraço da Apple Records, em Londres, fazem seu último show, Let it be, depois atravessam a faixa de pedestres para a gravação de Abbey Road e encerram uma era na história da banda mais influente de todos os tempos;
- e bem mais acima, Neil Armstrong pisa na Lua, dando um pequeno passo e um salto gigante para a humanidade.
Mas Kubrick, que acabara de lançar aquele monólito negro emitindo sinais de outras civilizações em 2001 - uma odisseia no espaço, desdenhou o convite, não foi futurista o bastante para prever a mina de ouro que seria a sequência de filmes sobre o livro de Tolkien.
O cineasta disse que aquilo tudo era infilmável. Preferiu se dedicar a uma Inglaterra de futuro indeterminado onde se ambientava o livro de Anthony Burgess, A clockwork orange, que lhe rendeu o clássico e perturbador Laranja mecânica, em 1971, emoldurando a distopia com as sinfonias de Beethoven e Rossini.
A tecnologia digital naqueles inquietos e revolucionários anos 60 não existia ainda o suficiente para realizar, como se firmou no cinema-industrial, a linha mestra da trilogia de fascínio comandada pelo neozelandês Peter Jackson.
O filme com os Beatles nunca foi feito. Só restou o cartaz de experimento da produtora, como um flyer analógico, como um pergaminho da Terra Média que não existiu.
Em tempo: o senhor dos anéis Peter Jackson anunciou para 2021 o lançamento do documentário sobre Let it be. Fecha-se o círculo mágico.

sábado, 18 de julho de 2020

o mesmo ar

“O que é que se vê nesta ilha, que no mundo não tem comparação? Nem uma vida, nem duas vidas, nem quatro vidas, nem dezoito vidas bastariam para se aprender tudo o que há na ilha. Sabe-se de gente que está nela faz mais de quarenta ou cinquenta encarnações e, a cada reencarnação, por mais bem vividas que tenham sido as anteriores, o encarnado pode até pensar que já compreende muita coisa, mas, quando fica velho, vê que não compreende quase nada, precisa voltar sabe-se lá quantas vezes - Deus não tem pressa nenhuma, para Ele tudo é ontem, hoje e amanhã, só quem vive dentro do tempo somos nós. Para ficar apenas num exemplo, quem compreende os mangues, todas as suas plantas, todos os seus mosquitos, todas as suas mutucas, todas as suas locas, todos os seus siris, sururus, caranguejos e aratus? Ninguém, por mais escolado. E assim, tudo mais, das pedras enterradas aos bichos voadores, o que se conta sempre podendo ser verdade ou mentira, nada se logrando provar com prova provada mesmo.
Mas alguma coisa sempre se sabe, tirado mais daquilo que se sente do que daquilo que se vê. Por exemplo, sinta o ar."
- Trecho do livro Miséria e grandeza do amor de Benedita, página 10, de João Ubaldo Ribeiro, romance de 2000, o primeiro livro lançado no Brasil em formato e-book.
Mesclando uma narrativa de suspense e humor, conta a história de Deoquinha, uma espécie de Don Juan nordestino, ambientada na ilha de Itaparica. Casado com a ingênua Benedita, a morte do personagem central é o ponto de partida para a trama que reconstrói toda a sua trajetória de conquistador.
A empreitada digital, dentro de um projeto proposto a João Ubaldo pela editora Nova Fronteira e a virtual Submarino, teve mais de 7.000 downloads logo na primeira semana. Lançado no formato tradicional meses depois, o escritor se incomodava por ter tido apenas duas críticas, no Estadão e no Globo, apesar de várias reportagens sobre o sucesso da venda digital. Achava que foi encarado apenas como uma novidade no mundo eletrônico, e não no literário.
Na foto abaixo, de Edu Simões, 1999, João Ubaldo em frente a sua casa, no mesmo ar de Benedita, em sua natal Itaparica.
Seis anos hoje que ele partiu de vez para outra casa dos Budas ditosos.

a voz de Billie

“Southern trees bear strange fruit / Blood on the leaves and blood at the root / Black bodies swinging in the southern breeze / Strange fruit hanging from the poplar trees...”
- Versos iniciais da canção Strange fruit que a cantora Billie Holiday cristalizou numa interpretação lancinante, extraída vagarosamente de cada recanto onde o coração arfava cada palavra. A letra é um dos hinos mais doídos sobre o racismo nos Estados Unidos, considerada a primeira canção de protesto, mais explicitamente sobre o linchamento de negros.
Numa tradução livre, tentando aqui alcançar a essência da composição, Billie fala das árvores do sul que produzem uma fruta estranha, penduradas nos álamos, que derramam sangue em suas folhas e nas raízes. A referência é direta, o sentido mais do que alegórico: o grafismo nítido dos corpos de negros enforcados, balançando na brisa do sul.
De autoria do judeu branco Abel Meeropol, poeta e professor num colégio no Bronx, foi apresentada a Billie em 1939, no Cafe Society, um bar no porão de um prédio em Greenwich Village. A cantora ouviu e na mesma noite cantou. O impacto foi tão grande que por meses seguintes Billie ia ao local somente para interpretar Strange fruit.
Sua presença magnetizante no pequeno palco silenciava a plateia. Até os garçons paravam, evitando qualquer barulho, numa preparação de ambientação sacra. As luzes diminuíam, um único facho no rosto da cantora. Aquele pequeno universo subterrâneo tornava-se um útero onde pulsavam o lamento e a revolta contra a violência racial. Em um momento da letra, Billie Holiday torcia a boca, desenhando a expressão de rosto esganado numa árvore. Cantava e saía discretamente como entrava, e ia embora ouvindo os aplausos da calçada.
Em 2012 foi lançado o livro Strange fruit - a biografia de uma canção, de David Margolick, onde relata toda a história da emblemática composição.
Daquela data até os anos 2000, quase 100 versões foram gravadas de Strange fruit, de Carmen McRae a Nina Simone, de Diana Ross a Cocteau Twins, de Blue Spirit Blues a Sting, de Wynton Marsalis Quintet a Tori Amos, mas nenhuma tem os componentes de indignação e resistência tão genuínos como a anímica e elegíaca interpretação de Billie Holiday. Como disse William Duffy, coautor da biografia Lady Sings the Blues, 1959, “Billie não canta músicas; ela as transforma".
O que caracteriza o estilo de Billie Holiday é justamente o âmago da execução de cada nota em sua voz. A medula da alma na expressão melódica. Sua conturbada vida parece desfolhar-se em cada faixa dos quase 50 discos gravados, em estúdio e ao vivo.
Quando Billie nasceu, seu pai, um tocador de banjo, tinha apenas quinze anos de idade e sua mãe não mais do que treze. Ele abandonou a família, a mãe sumia nas noites, deixava a filha bebê com parentes. Negra, pobre, desamparada, a garota amargou infortúnios logo cedo. Foi violentada aos dez anos de idade por um vizinho. Internou-se em casa de correção, lavou chão de prostíbulo, e virou prostituta aos catorze anos. Isso na Nova York dos anos 20. Na década seguinte começou como cantora, quando foi descoberta por um pianista em um bar do Harlem. Sua voz conquistou nomes como Benny Goodman, Count Basie, Artie Shaw, Duke Ellington e Louis Armstrong. Fez concertos com todos eles.
Nos anos 40, Billie entrou numa de ruim para pior. Relações amorosas humilhantes, agredida em três casamentos, surtos de depressão por não poder engravidar, descontrole dos rendimentos em seus shows, enganada por sócios, ludibriada por empresários.
Internada no começo de 1959 com agravamento de cirrose hepática, insuficiência cardíaca e edema pulmonar, faleceu meses depois, no final da tarde de 17 de julho.
Tinha 44 anos, dez quilos a menos, e o olhar triste no teto do quarto.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

a jovem do amor demais

Ela tinha 16 anos quando Jacob do Bandolim, amigo de seu pai, a viu cantar em seu próprio aniversário.
Muito nova começou a namorar o jogador Leônidas da Silva, o craque que imortalizou a “bicicleta” no futebol. O pai não aprovava. Um dia, obrigou a filha a pegar o telefone e acabar com aquele namoro sem futuro. Ali do lado, com o olhar fixo, uma vara de marmelo na mão balançando no vinco da calça de linho, o pai aguardava a moça ‘desnamorar’ pelas linhas espirais telefônicas. Com medo de uma surra, obedeceu. No dia seguinte vingou-se do pai-patrão: entrou em campo com a desobediência e reatou com jogador. Foram vistos abraçados em plena rua da Lapa.
Relação assumida, apostando num campeonato de felizes-para-sempre, foram morar juntos. Numa manhã ensolarada apareceu uma recém-nascida na porta de casa e pegou para criá-la. Leônidas colocou a mulher na área e mandou escolher: "ou eu ou a criança!", não admitia jogar para escanteio na relação. "Fico com Teresa!". O jogador foi expulso de campo, surpreso porque a bebê até nome ganhara. Ficou mais fumaçando quando soube que no dia seguinte a pequena Tetê foi registrada, na certidão como filha de mãe solteira. O Diamante Negro, como era o apelido do jogador, que fosse brilhar noutro time.
Do outro lado do bairro, o pai da moça mais indignado com mais uma transgressão aos bons costumes do lugar: a filha jovem, cantora e agora mãe solteira de uma criança encontrada na rua.
Meses depois conheceu o músico Ari Valdez, rolou um clima, e foram morar juntos. Galanteador, não poupava alguma garota que lhe estendesse uns olhares lânguidos em seus shows. Mas tinha crises incontroláveis de ciúmes da esposa, principalmente quando ela precisava viajar para cantar. Grávida de Valdez, decidiu acabar com o relação. Saiu com barrigão e a pequena Tetê e foi morar com a mãe, também já separada. Definitivamente, não queria nada com um ciumento sem moral e motivos para tanto, e além do mais extensão do pai dominador.
Assim foi o começo da carreira de Elizete Cardoso, a Divina, apelido dado pelo jornalista Haroldo Costa, em um artigo publicado no A Última Hora.
Com uma voz belíssima que vibrava do erudito ao popular, Elizeth é uma das maiores cantoras da história da música brasileira, consagrada como intérprete impecável do choro ao samba-canção, chegando a Bossa Nova. Seu nome é até rima no endereço da rua Nascimento Silva, 107, onde Tom e Vinicius compunham para ela as canções de canção do amor demais, citada em Carta ao Tom, gravada em 1974 pelo poetinha, Toquinho e Quarteto em Cy.
Elizete Cardoso foi uma das pioneiras dos jingles em campanha política, gravou uma machinha para João Goulart como vice-presidente na chapa do candidato Jânio Quadros.
Com mais de 40 discos e reconhecida internacionalmente, amiga de Sarah Vaughan, a voz enluarada de nosso cancioneiro passou três anos se tratando de um câncer no estômago, diagnosticado em uma turnê no Japão, quando se sentiu mal no hotel. Mesmo doente, comparecia aos shows, muitas vezes não conseguindo ir até o final, de tão debilitada. O público se emocionava e aplaudia a beleza daquela mulher e seu canto de amor demais.
Elizete Cardoso é o modelo de resistência feminina em um país racista, machista, conservador, principalmente em uma época em que seus projetos de vida e seus ideais como artista e mulher eram completamente inconcebíveis.
Tinha 69 anos quando faleceu em 1990. Neste 16 de julho comemora-se o centenário de seu nascimento. Fazendo uma paráfrase com a citada carta musicada de Vinicius ao amigo Tom, ouvir Elizete Cardoso lembra um tempo feliz, ai que saudade, a vida era só felicidade, era como se o amor doesse em paz.
A Divina é para sempre. Tornamo-nos eternos no coração de quem nos quer bem.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

o prazer do cinema

foto Leo Lara
Em 1966, durante as filmagens de El justiceiro, o diretor Nelson Pereira dos Santos, grita chamando o seu assistente: “Luiz Carlos!”. Dois da equipe com o mesmo nome atendem. “Não, o do bigode!”, identifica Nelson.
E assim nasceu o apelido de um dos mais queridos cineastas brasileiros, Luiz Carlos Lacerda, que à época exibia um vasto bigode no estilo Marlon Brando em Viva Zapata. Mais podado, Luiz Carlos Lacerda conserva sua marca registrada. E por trás de seus óculos e do bigode, o nosso cineasta tem muitas histórias para contar. Luiz Carlos Lacerda é direto em suas colocações, opiniões e pensamento na mesma proporção que é afável com quem trabalha, com seus alunos, com quem tem o prazer de sua amizade.
Filho do produtor de cinema João Tinoco de Freitas, começou em 1965, como assistente de direção de Ruy Santos, no filme Onde a Terra começa. Mas é com Nelson Pereira dos Santos que ele considera de fato sua estreia profissional e afetiva. “Foi o meu grande mestre. Me ensinou tudo sobre cinema. Primeiro, a paixão pelo cinema, que o Ruy não me passou. Não é que ele ensinasse em tom professoral, mas de uma maneira liberal. A alegria que ele estabelecia na filmagem, a inteligência, a viagem que era trabalhar consigo, me contaminou definitivamente”, como diz na página 51 de Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema, relato biográfico escrito por Alfredo Sternheim, da Coleção Aplauso, 2007.
Autodidata, poeta de mão cheia e coração pulsante de talento, foi com “Mãos vazias”, que Bigode estreou na direção de longa-metragem, em 1971, baseado na novela homônima de Lúcio Cardoso, publicada em 1938.
Esse filme é um dos maiores exemplares da cinematografia brasileira. Narrando o drama de uma mulher submissa, que perde o filho, se revolta com os costumes tradicionais numa pequena cidade mineira, Mãos vazias reflete em si, na sua postura e linguagem transgressora, um período sintomático da vida politica do país, então no auge da ditadura militar, moldada pelos artigos do AI-5, sob o comando do cruel Garrastazu Médici.
O que contorna a feitura do filme, tudo que envolve a produção de Mãos vazias, retrata igualmente o período marcante do nosso cinema naquele início dos anos 70:
- para começar a rodar seu longa, filmado em Parati, Luiz Carlos Lacerda ganhou de seu mestre Nelson Pereira dos Santos, dez latas de negativos que sobraram de Como era gostoso o meu francês;
- equipamentos de câmera, som e luz foram emprestados do fotógrafo Julio Romiti;
- equipe e elenco pagos em sistema de cooperativa;
- a atriz principal, Leila Diniz, vendeu seu fusquinha para investir na produção;
- o ator Jece Valadão assumiu o pagamento de revelação e edição, e depois, através de sua produtora, decidiu não lançar o filme por “respeito ao público” por ter sido proibido pela censura;
- Leila Diniz engravida do cineasta Ruy Guerra durante as filmagens. Nasce Janaína. Foi seu último trabalho.
Do denso Mãos vazias, passando pelo divertido e dançante Viva sapato!, coprodução espanhola de 2007, ao seu mais recente trabalho, Introdução à música do sangue, também inspirado na obra de Lúcio Cardoso, o Brasil no cinema de Luiz Carlos Lacerda expressa um painel significativo de nossa história na arte e na política. Cada filme delineia o universo arcaico com suas condutas de relevância, o mundo contemporâneo com sua consistência de mudança, a desconstrução do óbvio no foco de transformação e esperança.
Leila Diniz, seu filme mais conhecido, além de uma homenagem a grande amiga, é um tributo ao esplendor da mulher brasileira, através daquela que com sua beleza irreverente, sua personalidade ousada, quebrou tabus e desafiou uma sociedade machista. Premiado no Festival de Brasília em 1987, melhor atriz (Louise Cardoso) e ator coadjuvante (Paulo César Grande), Luiz Carlos Lacerda consagrou na película o que Drummond agraciou na mais poética definição: "sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão."
Os cinco prêmios no Festival de Gramado e melhor filme, ator e direção de arte no Festival de Miami para For All - O Trampolim da Vitória, de 1997, codirigido por Buza Ferraz, honram, justificam, laureiam o filme que melhor reproduz, com um criativo roteiro de romance e comédia, a presença do Brasil dentro do Brasil na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos construíram uma base militar estratégica na cidade Paramirim, a doze quilômetros da capital potiguar.
Bigode completa hoje 75 anos de vida e prazer intrínseco pelo cinema.
Em necessário isolamento social em sua casa no Jardim Botânico, o cineasta vê filmes, lê, escreve, e faz a alquimia de seus pratos, “corto todas as cebolas da casa, arrasto os móveis, incenso”, como diz em seu belo poema que Maria Bethania declama antes de cantar a música Esse cara.
Grato, meu caro Bigode, pelos seus filmes. Grato por Mãos vazias que me deu uma sacudida quando o assisti, eu adolescente fascinado por cinema diante o telão do cine Diogo, em Fortaleza.
Parabéns pelo seu dia todos os dias. Aperto-lhe a mão e o chamo de amigo.

terça-feira, 14 de julho de 2020

livro pra Fernanda


Lucky, Harry

Lucky - O realismo é uma coisa.
Garçom – Ah, é? Como assim?
Lucky - É a prática de aceitar uma situação tal como ela é... e está preparado para lidar com ela.
Garçom - Está dizendo que o que você vê é a sua realidade?
Lucky – Mas o que você vê não é a minha realidade.

O diálogo, aparentemente banal, é um breviário que define bem a essência do ótimo Lucky, ou mais precisamente no título original Lucky is Harry Dean Stanton, filme dirigido por John Caroll Lynch, lançado no final de 2017.
A sacada dos roteiristas Logan Sparks e Drago Sumonja em homenagear o grande ator de Paris, Texas, criando um personagem fictício baseado na vida do próprio Harry Dean Stanton, apresenta uma diferente narrativa cinematográfica, um argumento pouco visto na história do cinema.
Harry Dean Stanton estava com 90 anos de idade quando se animou e não pensou duas vezes em aceitar o convite. Mesmo dizendo que os roteiristas conceberam aquele personagem, o ator interpreta a si mesmo, veste-se de sua vida, reveste-se de seus dramas e fantasmas, desnuda-se em sua solidão.
Lucky nunca casou, não teve filhos. Harry Dean Stanton também não. Os dois participaram da Segunda Guerra, como cozinheiros. Fumam um maço de cigarros por dia. São ateus em uma jornada espiritual. A morte é iminente, ambos têm mais passado que futuro, mas "se vamos voltar ao nada, a única coisa que podemos fazer é sorrir", reflete. A vida é presente em cada segundo diante o precipício. Lucky, ou Harry, ou Lucky e Harry, destilam o potencial ranzinza da velhice com doses de Bloody Mary e comentários espirituosos, ácidos, sem poupar quem está ao seu redor, sem dar espaço aos idiotas que se aproximam. “Só há uma coisa pior que silêncio constrangedor: conversa fiada”, diz.
O percurso narrativo do filme tem a alma de um documentário na pele da estrutura ficcional. As linguagens não se confundem: uma está incorporada à outra, por força do protagonista, pela presença do ator. O personagem Lucky interpreta o ator Harry. A realidade para cada um é aceitar a proximidade do fim, sabendo lidar sem autocomiseração. O que Harry vê na vida “inventada” de Lucky é a sua realidade. Mas o que Lucky “vê” em Harry não é a sua realidade. O cinema, em sua beleza e magnitude conceitual, atinge o poder de espelho descritivo, o tempo e o espaço diegéticos dentro da trama, os limites, coerências e particularidades do drama no mesmo fôlego da ficção e realidade.
O carismático Harry Dean Stanton, com sua esculpida cara de um tio nosso que queremos bem, fez quase trinta filmes ao longo de seis décadas. Mas não é o engenheiro técnico Brett de Alien, o oitavo passageiro nem o recuperador de bens Bud de Repo Man, que ficaram tão fortemente marcados como Travis, o andarilho com amnésia do filme de Wim Wenders, 1984. Não por acaso, Lucky faz longas caminhadas em estradas desertas e ruas desoladas de uma cidadezinha do Arizona, numa referência indireta ao lendário outro personagem, ou seja, numa citação direta ao ator.
Harry Dean Stanton faria hoje 94 anos de andanças. Faleceu em setembro de 2017, num leito de hospital em Los Angeles, tranquilamente, de causas naturais, sorrindo para o tudo que deixou, em direção ao nada que acreditava.
Não viu seu último filme na tela. Mas como Lucky, esteve dentro do filme. E o que vemos, é a realidade dele.