
Ratos, temerosos roedores, com seus músculos miúdos, olhinhos amedrontadores luzindo nas trevas dos esgotos... invadem as casas, as cidades, o país. Numa longe localidade, restaurada do nada, eles promovem o VII Seminário dos Roedores, evento onde reúne os burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, sempre ladeado do seu Chefe de Relações Públicas. Aquele país cada vez mais atravancado pelos mecanismos, os expedientes de papelocracia que invertem a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.
Esse é o resumo de Seminário dos ratos, um dos quinze contos no livro homônimo de Lygia Fagundes Telles, lançado em 1977.
A escritora, que completou 97 anos no dia 19 deste mês, com uma narrativa alegórica que mescla realidade e fantasia, o fantástico e a lógica racional, apresenta uma reflexão política e social do que vivemos em períodos de contenção de liberdade, de domínio pela força, de aniquilamento dos nossos direitos pela mentira e adestramento. O livro foi escrito em uma das décadas mais cruéis da ditadura militar no Brasil, a era Geisel herdada de Médici e entregue a Figueiredo.
Todos os textos, na simbologia do horror e do asco, exprimem a distopia, a perplexidade, o poder na mão dos homens sem alma. Na capa das primeiras edições do livro, dois ratos erguem estandartes com bandeiras, à frente de uma figura estilizada, uma espécie de monstro-rei. A ilustração sugere que será tanto protegido quanto retirado do trono pelos roedores. É da natureza a vilania de quem se merece. E no conto-título, Lygia coloca como epígrafe os versos finais de Edifício Esplendor, de Carlos Drummond de Andrade, “– Que século, meu Deus! diziam os ratos. / E começavam a roer o edifício.”, um dos doze poemas publicados no pequeno-grande livro José, o quarto do itabirano, 1942.
A abertura do conto, o conto, o livro, tudo é atualíssimo no Brasil de agora, nestes tempos pandêmicos, em que pestes, ratos e marrecos, depois de infectarem as cabines, pulam fora na tentativa em direção ao trono lá na frente.
Que século, meu Deus! - diremos os homens.
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