quarta-feira, 22 de abril de 2020

o poeta e a chuva

chuva
hoje chove muito, muito,
e parece que estão lavando o mundo.
meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele
e parece sua sombra
meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta se entra em muitos lugares
no trabalho, no quartel, no cárcere,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher / nem na alma
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje / que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e somente a alma sabe onde os dois se encontram
e quando / e como
mas o que pode a alma explicar?
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu / que escrevo palavras para voltar
ao meu vizinho que contempla a chuva/
à chuva / ao meu coração desterrado.

O poema, tocante, profundo como chuva na alma, é de Juan Gelman, uma das principais vozes da poesia latino-americana, em seu livro Isso, de 1984, lançado no Brasil somente em 2004, pela Editora UnB, com tradução de Leonardo Gonçalves. A obra é uma de apenas cinco em português da vasta bibliografia poética de 35 títulos.
Nascido na Argentina, está para eles como Drummond para nós. Gelman recebeu quase 40 prêmios e distinções, de 1980 a 2011, pelo mundo todo, entre eles o importante Prêmio Miguel de Cervantes, em 2007.
O poeta foi uma das vítimas da cruel ditadura militar na década de 70, obrigado a abandonar seu país. Em 1976, seu filho Marcelo e a mulher, grávida, desapareceram. Somente em 1989 o pai encontrou os restos mortais do filho. Em 2000, após uma busca de décadas, pôde encontrar sua neta, que tinha então 23 anos.
Juan faleceu na cidade do México, no começo de 2014, aos 83 anos. Partiu na chuva, com o coração desterrado, sem encontrar os restos mortais de sua nora, Claudia.

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