ilustração Leonardo Kayo
“A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada, de tudo prostei. Ao que veio uma ânsia. Agora eu queria levar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo que eu era, para entrar num destino melhor.”
Esse trecho, se eu escrevesse tão bem, poderia ser de uma página do meu diário de isolamento social. Há noites, confesso, não durmo, perplexo com essa sacolejada no planeta que partiu de Wuhan. Minha mão, sim, freou o ímpeto de ao abrir a vidraça, gritar do oitavo andar para o carro que passa: “fique em casa!”. Minha força esperdiçada pelo vão do quarto não tem, não pode mais se prostar na extensão do corredor.
Guardo as reservas de esperança lúcida se a ânsia me vem e esqueço o carro lá longe que segue. Fique em casa. Fecho os olhos e penso nas águas cristalinas de uma dessas cachoeiras no entorno de Brasília. Tororó é a mais próxima, a uns 30 quilômetros de onde me distancio social e provisoriamente no final da Asa Norte. Quando tudo passar (quando?) irei ao Tororó buscar água e acharei para beber e me banhar ao lado da bela morena que poderei abraçar sem receio. Bem sei que uma noite não é nada, se não dormir agora, dormirei de madrugada com a benção de orixá.
Quando tudo passar (quando?) vestirei meu terno novo, de linho branco, que até o ano passado lá no meu Ceará ainda era flor, e ao lado do meu filho, que é um rapaz novo encantado com vinte e dois anos de amor em Águas Claras, sairemos de tudo que éramos antes da pandemia para entrar num destino melhor. O quando virá.
O trecho no início, entre aspas, é uma fala de Riobaldo, em Grandes Sertões: Veredas, do imenso Guimarães Rosa, página 296. O personagem, isolado entre os jagunços, não se sente um deles. Está lá pelo amor que Diadorim lhe despertou. Riobaldo sente desconforto no bando. Sente falta do lado lá de fora, de música, das pessoas, de festas. “Eu queria era um divertimento de alívio”, diz dele para ele no isolamento. Riobaldo sofreia os ímpetos e espera. “Esperei a escuridão passar. Mas quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal”.
Assim, no meu quarto na quase quarta semana de isolamento, pelo amor de Diadorim da vida em mim, espero a escuridão passar. Buriti é uma planta da arecácea também aqui no planalto central do país. Organizo o movimento do meu silêncio para estar diante do buritizal quando o dia clarear.
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