foto Geraldo Guimarães
Um dos mais fortes contestadores do regime militar, Gonzaguinha tem em sua obra de 17 discos, nas letras e canções, a postura determinada herdada da mãe, Odaléia dos Santos, compositora e cantora da noite, que não abria mão de sua arte. De postura avançada para a época, recusava-se a ficar em casa, bela e recatada, como queria Gonzagão.
Odaleia tinha apenas 22 anos quando contraiu tuberculose, a chamada peste branca naqueles anos 40, doença contagiosa, fatal, uma sentença. Depois de meses e meses internada em sanatórios em Petrópolis e Santos Dumont, Minas Gerais, não resistiu à doença.
Antes de Odaléia falecer, Gonzaguinha, com dois meses de idade, e para preservar a saúde, foi retirado dos braços da mãe e entregue aos padrinhos, um casal amigo de Gonzagão, Dina e Henrique, que moravam no Morro de São Carlos, no Estácio, Rio de Janeiro. Até os dois anos, o menino via a mãe em rápidas visitas. E o pai também pouco encontrava, no começo de carreira, fazendo shows, já antecipando “minha vida é andar por esse país...”
Os títulos dos discos de Gonzaguinha resumem a grandiosidade explosiva de demarcação poética, cívica e maternal na história da música brasileira:
- no primeiro e no segundo, 1973, 1974, ambos Luiz Gonzaga Jr., apresenta-se e insiste com seu nome na cara do governo mais cruel da ditadura militar, Médici;
- Plano de voo, 1975, mostra as cartas de navegação de seu pensamento musical para o governo Geisel que esboçava abertura política;
- Começaria tudo outra vez, 1976, avisa que naquele período de ensaio placebo de abertura, repetiria o mesmo plano de resistência na arte e no discurso;
- Moleque Gonzaguinha, 1977, lembra a força do filho de Odaléia nos braços seguros de Dina, a nova mãe do franzino quimbundo mu’leke africano que subiu o morro de São Carlos. Naquele ano, o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência de Angola e Moçambique que se tornaram, logo após a independência, socialistas;
- Recado, 1978, quando o país oscilava e processava uma distensão “lenta, gradual e segura", como diziam os militares, recorre à lembrança mátria na canção Odaléia, noites brasileiras, uma das mais belas homenagens de um filho para a mãe que nunca partiu em suas noites, e continua como “estrela guia” no solo pátrio;
- de 1979 a 1990, Gonzaguinha na vida, De volta ao começo, Coisa mais maior de grande – Pessoa, A vida de viajante, Caminhos do coração, Alô, alô, Brasil, Grávido, Olho de lince, Gerais, Corações marginais, Luizinho de Gonzagão Gonzaga Gonzaguinha, atestam e testemunham tanto uma nova estrutura política no país, com as Diretas Já, Constituição de 1988, Nova República, quanto uma nova disposição familiar, pessoal, de reencontro com pai Gonzagão.
E também, com ternura, mas sem perder a dureza naquele 1988 da maldição dos vices, com Sarney no comando, avisa que “a gente não está com a bunda exposta na janela / pra passar a mão nela”.
Na manhã de 29 de abril de 1991, com o Brasil sob a presidência do marajá das Alagoas, o carro de Gonzaguinha bate de frente com um caminhão, em uma estrada no Paraná, ao regressar de uma apresentação na cidade Pato Branco. Ele se dirigia para Foz do Iguaçu, de lá iria de avião para Florianópolis, onde tinha um show agendado.
A súbita morte do cantor, aos 45 anos, deixou um vazio na música brasileira, insubstituível como tudo que é uma só vez na vida.
Nestes tempos de vírus no ar e vermes almas sebosas no poder, com certeza Gonzaguinha começaria tudo outra vez e bradaria "a gente quer viver numa nação / a gente quer é ser um cidadão".