sexta-feira, 18 de setembro de 2020

um curumim amazonense


“Em ‘De Senectude’, Norberto Bobbio, aos 87 anos diz: ‘Nunca imaginei viver tanto’, nem eu, digo aos noventa e seis. Sempre pensei que morreria aos 47 anos, depois aos 57. Não morri. Também não lembro a razão dessas suspeitas”, escreveu Alberto Soeiro em seu blog no dia 18 de setembro de 2016.

Em agosto do ano passado, eu lançava o meu livro Poesia provisória na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Logo quando começo a apresentação, vejo Alberto chegando, saudável, lindo e faceiro. Há uns três anos não o via pessoalmente. Sentou-se para ouvir-me, veio para me prestigiar, foi para ficar cada vez mais em mim.

E quem é Alberto Soeiro? Um advogado que ao se aposentar aos 58 anos passou a ler cada vez mais, a ver cinema, teatro e exposições cada vez mais, a viajar cada vez mais, a fotografar cada vez mais. Passou a viver o “ócio remunerado”, como costumava dizer. O manauara que chegou ao Rio de Janeiro em 1948, foi morar em Fortaleza, onde tem laços familiares, em 1978, quando o conheci através de seu primo Arthur Jorge. Pediu a um parente que alugasse uma casa, pequena, confortável e se possível com quintal. Estava farto de apartamento. E logo estaria numa rua ainda sem asfalto no bairro Parquelândia, num imóvel como queria, três quartos, pois levara a mãe e a tia, sala de refeições com uma toalha de linho branco na mesa, cozinha com armários bege, quarto de empregada sem empregada, e uma lavanderia lá fora, debaixo de uma latada.

Alberto poderia ter sido um escritor famoso, um diretor de teatro, ou mesmo um cineasta, de tanto que entende de tudo isso e muito mais. E foi nesses lugares que nos aproximamos nos eventos em Fortaleza e passei a frequentar sua casa, em longos papos vespertinos no fim de semana, ao sabor de bolo de milho e café com pouco açúcar, enquanto mãe e tia viam baixinho televisão na sala. Eu o ouvia e o admirava até quando discordava de alguma posição contrária a minha. Ele me admirava e me ouvia mesmo quando defendia um filme que ele não gostara. Alberto nunca casou, não teve filhos, mas plantou árvores frutíferas e roseiras no quintal da Parquelândia, e escreveu livros, mesmo dizendo que assim não são as publicações artesanais editadas pela Universidade Sem Fronteiras, versando os mais diversos assuntos, memórias, relatos de viagens, poemas e receitas da cozinha amazonense.

Desprendido, sua vasta biblioteca era, e é ainda, “itinerante”. Compra muitos livros, lê e os doa, sucessivamente, aos amigos, às bibliotecas. Até meados dos anos 80, antes de vir morar em Brasília, fui beneficiado com essas doações, de livros recentes a preciosidades, edições raras como Poesia e prosa, em papel-bíblia, de Manuel Bandeira, de 1958, Epigramas Irônicos e Sentimentais, de 1922, e Imagens do México, de 1929, ambos em papel de Linho do Prado, de Ronald de Carvalho, as primeiras publicações de Solombra, de Cecília Meireles, 1963, e Poema Sujo, de Ferreira Gullar, 1976, além da bibliografia completa de Thomas Mann.

Eu sem muitas condições financeiras para fazer “farra” em livrarias e sebos, Alberto ajudou-me com sua afetividade a manter minha biblioteca atualizada à época. Hoje quando vejo meus-livros-dele sublinhados e com anotações laterais com sua caligrafia drummondiana, daqui da Asa Norte do cerrado à avenida João Pessoa nas asas do bairro Damas, onde hoje mora, encontro-me e converso com ele em cada página. “É por isso que gosto de dar livros lidos às pessoas a quem prezo muito. Os sublinhados são pedaços de mim mesmo. Uma espécie de eucaristia”, escreveu uma vez em seu blog.

E quem é Alberto Soeiro mesmo? Um famoso dentro de mim, que um dia me assustou com uma delicadeza: em 2010 esteve em Brasília, de passagem para o Pantanal, em uma dessas suas viagens em grupos de terceira idade. Ligou-me dias antes avisando, queria muito me ver, que eu fosse ao hotel, trazia algo para mim, para eu “guardar de volta”. Quando desceu, Alberto trazia um envelope grande, volumoso. No meio da conversa, entregou-me, com um sorriso leve. Abri e me surpreendi: estavam ali o meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros, de 1981, e vários publicações minhas de revistas, folhas com poemas, tudo que a ele dei na época em Fortaleza. Diante o meu espanto e o meu olhar em silêncio como pergunta, disse que já entrava nos noventa, não tinha mais muito tempo, e aquele material meu-dele era muito valoroso, estando comigo continuaria com ele quando fosse. De volta para casa, me peguei com furtivas lágrimas quando olhei pelo retrovisor.

Hoje cedo liguei para ele para parabenizá-lo pelos 100 anos de idade, e contei sobre aquele dia. Ainda bem que tinha me enganado. E eu queria mesmo era atravessar os ares da pandemia até Fortaleza e abraçar um século de vida, disse-lhe. A sua voz jovialmente lúcida espalhou-se em meu coração nos longos minutos matinais desta sexta-feira natalícia. O Alberto que ano passado apareceu faceiro no lançamento do meu livro, chegou novamente airoso como um pássaro pelas ondas do Smartphone no lançamento de sua nova velha idade.

Há uns quatro anos escreveu que se tivesse que escolher uma figura para representar sua longevidade, escolheria a linha reta. Nada relacionado a moral, retidão, caráter, mas a uma vida sem lances heroicos ou dramáticos. Vida, vivida na hora certa. E assim, me encho de esperanças, minha linha procura rimar com a dele, pois, parafraseando um dos seus dizeres espirituosos, tudo que há de bom em ti, recolhi como acervo em mim.

Meu coração abraça o seu, Alberto. Te amo, meu caro amigo, com minha “ternura mais funda e mais cotidiana.”

Nenhum comentário: