domingo, 13 de setembro de 2020

quando eu me chamar saudade

foto © Vania Toledo

"Eu só vou fazer sucesso depois de morto", disse o 'Nego Dito' Itamar Assumpção ao baixista e amigo Paulo Lepetit nos anos 70.

Um dos maiores compositores brasileiros e um dos mais representativos nomes da cena alternativa da música paulistana, Itamar tinha consciência da consistência e atemporalidade de seu trabalho. Nunca sucumbiu aos ditames da indústria fonográfica para fazer “sucesso”.

Itamar nasceu no município de Tietê e ainda criança foi morar no interior do Paraná, um tempo em Arapongas, depois em Londrina. E foi nessa cidade que o então estudante de contabilidade Itamar ‘de’ Assumpção, que aprendeu a tocar violão sozinho ouvindo Jimi Hendrix, uma noite voltando da casa de um amigo onde fora pegar um gravador CCE emprestado, foi abordado pela polícia no ponto de ônibus. Acusado de roubo, ficou cinco dias preso. O episódio com aquele jovem negro, pobre e com um objeto que não podia comprar, serviu de inspiração, para anos mais tarde, já na capital paulista, nominar sua banda, Isca de Polícia, formada por Lepetit, os guitarristas Jean Trad e Luiz Chagas (pai de Tulipa Ruiz), o baterista Marco da Costa, Vange Milliet e Susana Salles, que não eram backing vocals, e sim cantoras em potencial e expressivas nos shows de Itamar.

O disco de estreia, Beleléu, Leléu, Eu, de 1980, é uma obra-prima, um marco na chamada Vanguarda Paulistana. Toda sua obra mistura com originalidade a substância do samba de Cartola, Adoniram, Ataulfo Alves, com o rock de Hendrix e o funk de James Brown, passando pelo soul do genuíno afro-americano, atravessando os compassos acentuados do reggae, chegando ao cool jazz de Miles Davis. E na essência desse caldeirão de referências, a reverência aos batuques do terreiro de candomblé que o menino Itamar, bisneto de escravos angolanos, ouvia no quintal de sua casa às margens das águas então cristalinas do Tietê, vila que no Brasil colonial foi invadida pelos bandeirantes usurpadores de nossas riquezas minerais, escravizadores de índios e destruidores de quilombos.

Inquieto, autêntico e produtivo, Itamar compunha em torno de 30 a 40 canções por ano, com parcerias ilustres de Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ademir Assunção, Luiz Tatit, Arrigo Barnabé, Ná Ozetti, Bocato, Carlos Careqa, Tata Fernandes, Vange Milliet, e tantos outros.

Se os discos de Itamar explodiam em originalidade, os shows eram literalmente espetáculos surpreendentes pela inventividade, pelos arranjos às vezes refeitos no palco, pelos improvisos que o cantor fazia descendo até a plateia e passando um tempão conversando com alguém ali fascinado com o Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé. Eu aproveitava e ficava louco, fazia cara de mau, entrava na onda, falava o que me vinha na cabeça. Itamar rejeitava o rótulo de “maldito”. “Eu sou um artista popular!”, bradava com o colorido de seu figuro, seus óculos escuros e sua beleza ébano.

Itamar faria hoje 71 anos. Falecido em 2003, aos 53, depois de quatro anos lutando contra um câncer no intestino, deixou nove discos. Um dos três álbuns póstumos, Vasconcelos e Assumpção, 2004, foi gravado um pouco antes de sua partida. São sete faixas em parceria com o percussionista Naná Vasconcelos.

Intitulado Isso vai dar repercussão, liga-se simbolicamente ao seu vaticínio dito ao amigo Paulo Lepitit.

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