Durante a invasão moura na Espanha, por volta de 1218, e por extensão a dominação maometana na Península Ibérica, os cristãos eram perseguidos e escravizados. Reza a lenda – e o verbo aqui é adequadíssimo – que a Virgem Maria, vendo que muitos estavam perdendo a fé em Deus e a inocência perante a vida, na madrugada do início de agosto daquele ano apareceu simultaneamente nos sonhos de três garbosos, Pedro, um militar francês de origem fidalga, Raimundo, um grande teólogo da época, e o monarca Jaime I, de Aragão. Nossa Senhora disse-lhes que fundassem uma ordem religiosa com a sagrada missão de devolver a fé para os cristãos e libertá-los.
Quando souberam do sincronismo da mensagem celestial, não tiveram dúvidas em atender ao pedido da Santa Mãe. O bispo de Barcelona, Dom Pedro de Centelles, apressou-se em ministrar uma cerimônia para consagrar a tarefa aos três dadivosos designados e mais treze cavaleiros, e formaram a Ordem Real e Militar Nossa Senhora das Mercês, um título atribuído pela Igreja à madre misericordiosa. Oficialmente passaram a se dedicar à redenção dos cristãos que corriam perigo sob o jugo dos mouros.
Honório III, o papa de então, com seu grande prestígio espiritual, mais animado que o bispo de Barcelona, aprovou a Ordem e espalhou de imediato a congregação pela Europa. Com a descoberta e colonização da América a devoção tomou proporções literalmente continentais. Por conta do viés militar da secular Ordem redentora, das Mercês é padroeira até das Forças Armadas em vários países. Aqui ao lado, no Peru, é consagrada padroeira de Lima, capital.
No Brasil, especificamente em pleno ciclo do ouro em Minas Gerais, a Ordem se estabeleceu em Diamantina, Ouro Preto, São João Del Rei, Mariana, Sabará e Santa Bárbara. Mas se estendeu por várias outras regiões do Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Ceará, onde em Itapipoca, do dia 14 a 24 deste mês há no calendário celebrações pela Diocese da conhecida cidade dos três climas, por haver em seu território praias, serras e sertão.
A festa maior mesmo é em Barcelona, a cada 24 de setembro, primeira cidade onde das Mercês foi proferida padroeira. Neste ano esquisito as comemorações foram canceladas por conta da pandemia, principalmente agora quando é alertado pela OMS um novo surto do vírus na Espanha e Reino Unido.
Dois dos visitados em sonho pela Virgem tiveram suas patentes com codinomes deificados ao longo do tempo, São Pedro Nolasco e São Raimundo Peñaforte, tamanho empenho dos soldados de Maria pela causa.
Sete séculos depois da aparição de Mare de Déu de La Mercè, como assim se evoca na Espanha, no mesmo dia 24 de setembro nasceu o cineasta Pedro Almodóvar, na comunidade autônoma Castilla-La Mancha. Em Volver, de 2006, para escrever o roteiro, o diretor se inspirou na naturalidade com que seus conterrâneos religiosos tratam a morte, cultivam a memória e passam a vida inteira cuidando numa boa de sepulturas. O filme conta a história de três gerações de mulheres que representam essa comunidade onde se fala muito, se oculta muito, se escuta muito, e, para ser uma comédia, chora-se muito. Uma avó volta do além para resolver uns assuntos que esquecera. Mortos e vivos convivem sem nenhum espanto. O fantástico e o real no mesmo enquadramento.
Almodóvar foi batizado Pedro em homenagem a São Pedro Nolasco, por graça e devoção de sua mãe, Francisca Caballero, a simpática senhora que aparece em pequenos e brilhantes papeis em quatro filmes do filho, a parente do dentista em O que fiz para merecer isto?, a locutora de Mulheres à beira de um ataque de nervos, a mãe de uma atriz de filmes pornográficos em Ata-me e a impagável entrevistadora de um programa de televisão em Kika.
O cineasta comemora hoje 71 anos de idade, sob as benções de dona Francisca que faleceu em 1999, e está lá ao lado das Mercês, rogando por nós que recorremos a vós neste ano em que vivemos em perigo.
- do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
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