Em meados dos anos 30 um franzino rapaz gaúcho, que gostava de compor umas marchinhas de carnaval, era noivo da bela mulata Inah. Mesmo apaixonadíssimo, tendo loucura por aquela mulher, hesitava em trocar a despreocupação da boemia pela certidão de casamento. Inah esperou por três anos para que ele decidisse, já que tanto repetia que por aquele amor ele podia “quase” morrer. Ela ainda guardava o poema que ele escreveu quando se conheceram no salão do Clube União Familiar, “Enquanto existirem estrelas no céu para brilhar, só tu serás o meu amor”, dizia um trecho escrito em papel perfumado. O pai, vendo que o filho tinha conhecido uma “moça decente”, arranjou-lhe logo um emprego de bedel na Faculdade de Direito quando ele deu baixa no Exército.
Mas quando se convenceu que o rapaz não tomaria uma atitude, Inah desmanchou o noivado, devolveu-lhe o poema de amor eterno, o perfume secou mesmo, e partiu para viver a vida dela. Afinal, ao contrário do que diria décadas depois um outro compositor com ar de moço bom, “quase” não seria apenas mais um detalhe naquela situação. Inah, firme em seus propósitos, que não ia ficar pendente a um advérbio.
Mesmo também dolorida com a separação, Inah foi rápida. O tempo é sempre favorável aos decididos. Dias depois o rapaz a viu na Rua da Praia, histórica via que nasceu às margens do Guaíba, na capital Porto Alegre. Faceira e com a consciência tranquila, Inah passeava pendurada no braço de um guapo que nem um pedaço do nubente “quase” marido podia ser.
O rapaz desesperou-se, teve ganas de matar ou morrer, principalmente depois quando a moça contraiu matrimônio com aquele que não era um tipo qualquer. Mas acalmou-se. Passando o que ele passou, talvez lhe viesse qualquer outra reação mais proveitosa. Não sabia mais o que trazia no peito, e fez do ciúme, despeito, amizade ou horror, um samba-canção.
O rapaz de menos de vinte anos, como deu para perceber pelo spoiler do texto, era Lupicínio Rodrigues, aquele moreno de rosto arredondado, bigodinho aparado e sorriso triste nos olhos amendoados. Assim surgiu a inspiração para os versos de Nervos de aço, a composição que narra a sua primeira grande desilusão amorosa, o seu desejo de morte ou de dor.
A música ficou guardada por um tempo, quieta em banho-maria de lágrimas para destilar o desgosto em aprendizado. Somente em 1947 foi gravada, na voz de barítono de Francisco Alves. O cantor tinha a marca de ser pioneiro em tudo, foi dele a primeira gravação de disco elétrico feita no Brasil, o primeiro a cantar e consagrar sambas como "Amélia", de Ataulfo Alves e Mário Lago, e Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Chico Alves foi até "rei", no caso, da voz, antes de Roberto Carlos, no descaso, da juventude. Com Nervos de aço não foi diferente, e a confissão axiomática que começa logo perguntando se você sabe o que é ter um amor, meu senhor, tornou-se um clássico no repertório não somente do autor, como também na história da música brasileira.
Lupicínio Rodrigues construiu sua obra com sangue nas veias em mais de 150 canções, como Vingança, Ela disse-me assim, Felicidade, Se acaso você chegasse, Esses moços, pobres moços, Volta, sempre relatando paixões, abandonos, casos e desapontamentos, seus na maioria, mas também dos amigos da boemia, como um cronista musical dos desencantos amorosos. Mesmo triste, nunca deixou sua Porto Alegre, no máximo foi ao Rio de Janeiro, conheceu Wilson Batista, Ataulfo Alves, Germano Augusto, e varavam as noites no Café Nice e atravessavam as madrugadas pelos bares da Lapa. Voltou depois de seis meses, munido de mais desencantos com uns namoros rápidos e dilacerantes para compor mais canções amarguradas.
Lupicínio criou o termo “dor-de-cotovelo”, patenteando o tipo de música que define os amantes bebendo suas dores com os braços apoiados em um balcão de bar. E para não alugar mais os ouvidos dos garçons e ter seu próprio tampo de mesa pra chorar, foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes onde a música estivesse sempre presente, era uma forma de juntar no mesmo espaço e noites o trabalho e a boemia. “Essas casas não eram só para ganhar dinheiro. Eram principalmente para reunir os amigos”, disse em uma entrevista poucos antes de falecer em 1974, de infarto, aos 59 anos.
Há várias ótimas interpretações da emblemática Nervos de aço, anteriores e depois da versão de Paulinho da Viola, no disco homônimo de 1973, que praticamente apresentou a canção para as novas gerações. Dois anos antes, Jamelão, a quem Lupicínio considerava o intérprete que dava o seu recado integralmente, gravou no disco todo a ele dedicado, Jamelão interpreta Lupicínio Rodrigues.
Hoje é aniversário de nascimento de Lupicínio, 106 anos de cotovelos resistentes no imaginário do cancioneiro brasileiro.
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