Em cidades invisíveis, obra máxima de Italo Calvino, o personagem Marco Polo, jovem veneziano viajante, relata ao Imperador Kublain Khan suas impressões sobre as mais de cinquenta cidades que visitou.
Publicado em 1972, o romance em metanarrativa constitui-se em um conjunto de metáforas que traduzem bem a relação das pessoas com os lugares, o que esse encontro do desenho urbano com a geografia afetiva reflete nas condições e inquietações humanas, como memória, crenças, esperança, velhice, morte.
O próprio Calvino, de certa forma, está organicamente conduzido nessa narrativa, pela sua história, pelo diagrama que as cidades inventadas traduzem sua visão de mundo. O escritor nasceu em Cuba quando seus pais, cientistas italianos, moraram na ilha no começo dos anos 20. Cresceu e viveu na Itália, onde lutou na resistência contra o fascismo durante a Segunda Guerra.
As cidades de Calvino são personagens em sua arquitetura, memória e desejo. Nelas parece que morou um pouco de cada um de nós. Ou que gostaríamos de ter morado. O que sonhamos um dia morar. Mesmo que “o último porto só pode ser a cidade infernal”, como diz Kublain Khan a Marco Polo no final do livro, ao que ele rebate: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui.”
No distante ano de 832, um humilde sapateiro chamado Beato Sorore, na província de Siena, a 50 quilômetros de Florença, colocou sua casa à disposição dos peregrinos que por ali passavam, famintos e cansados, e dos enfermos que habitavam o local e não tinham como se tratar. A casa expandiu as edificações e se tornou hospital, orfanato, capela, igreja e museu, atravessando história, a Idade Média, as pestes, as guerras, até chegar a Idade Moderna. Hoje é o extenso Santa Maria della Scala, mantendo todo o complexo que se formou ao longo de mais de um século.
A quantidade de prédios, de construções primitivas, recuperadas e novas, soma em torno de 12.000 m². Um túnel construído entre os séculos 13 e 15, e que era usado para entregar alimentos e materiais de construção, se estende serpenteando sob três andares onde estão os museus e centenas de quadros e peças valiosas, incluindo o Museo Archeologico Nazionale onde repousam sarcófagos, as capelas e igrejas com vistosos oratórios e atraentes imagens sacras, e o hospital, o Policlinico Santa Maria le Scotte, com dezenas de enfermarias, laboratórios e farmácia.
Num dos leitos do hospital faleceu no dia 19 de setembro de 1985, aos 61 anos, Italo Calvino, que estava internado vítima de aneurisma cerebral. Os edifícios com seus afrescos, relevos, jugos de colunas imensas, compõem e se elevam como uma grande cidade no meio da província de Siena. E como o viajante Marco Polo de seu livro, Italo Calvino, enfermo, e traduzindo a metáfora da relação das pessoas com os lugares, foi acolhido na antiga hospedaria do sapateiro Beato Sorore.
Foi seu último porto na sua última cidade visível.
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