foto: Fernando Gomes / Agência O Globo, 1995
"E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda."
- Trecho de uma carta de Caio Fernando Abreu a sua amiga Jacqueline Cantore, em 1° de novembro de 1981.
O escritor gaúcho foi um missivista compulsivo. De sua Olivetti Lettera 44, datilografou uma infinidade de cartas, com forte essência poética, dos mais variados e cotidianos assuntos, de fatos comezinhos a reflexões existenciais e filosóficas. Escritores, atores, cantores, amigos, eram os destinatários.
O poeta, curador literário e professor da UFRJ Ítalo Morriconi, numa pesquisa minuciosa, reuniu dezenas dessas cartas, juntamente com escritos de cartões postais, bilhetes, e publicou em 2002 o livro Caio Fernando Abreu: Cartas, com mais de 500 páginas, o que nos dá com a narrativa fragmentada uma espécie de um romance de vida, de fôlego combativo e resistente.
Caio Fernando Abreu viveu em um período brabo da ditadura militar, foi um dos primeiros a escrever abertamente sobre sexo numa visão dramática, e assumiu sem rodeios sua homossexualidade. No final dos anos 60, sentindo-se perseguido pela polícia política, o escritor foi morar na Casa do Sol, como assim chamava o sítio que a poeta Hilda Hilst construiu em Campinas, São Paulo. Ainda inseguro com recrudescimento do país em tempos de AI-5, Caio se autoexilou em vários países da Europa no começo da década de 70.
Arriscou a voltar em 1974, quando terminava o governo Médici. O deputado Ulysses Guimarães lançava a sua anticandidatura simbólica à presidência da República, mas todas as cartas estavam marcadas para a vitória nada simbólica do general Ernesto Geisel pelo Colégio Eleitoral, com 400 votos contra os 76 do medebista. Caio Fernando dedica-se obstinadamente à literatura como renitência aos anos sombrios que continuavam. Até 1996 publicou livros de contos, novelas, peças de teatros, textos infantis, fez traduções e cuidou das roseiras no jardim da casa dos pais, em Porto Alegre, onde foi morar ao descobrir-se portador de HIV.
Sua vasta e bela obra literária revela personagens sofridos, mas incansáveis em busca constante da felicidade, sem nunca se dobrarem ao desassossego dos dias e ao remoinho da desesperança. O estilo confessional da prosa visceral de Morangos mofados, por exemplo, de 1982, expõe as inconstâncias mais profundas de uma geração ante a inquietude pela redemocratização do país nas ruas e pela tranquilidade para viver as escolhas e os afetos no peito. Cada página transborda e “mantém uma férrea unidade, em torno da coragem de se despir, da fidelidade aos sentimentos mais íntimos e mesmo os mais terríveis, e ainda à dificuldade de ser", como escreveu o crítico José Castello no posfácio da reedição lançada ano passado.
Hoje Caio Fernando Abreu faria 72 anos. Falecido em 1996, durante os 47 anos que viveu não enlouqueceu, não se matou, não desistiu e incomodou bastante.
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