quarta-feira, 30 de setembro de 2020

hasta la eternidad, papá


Joaquín Salvador Lavado, o cartunista argentino Quino, criador de Mafalda, a simpática garotinha de seis anos preocupada com problemas sociais, faleceu hoje aos 88 anos, vítima de AVC.

Na foto acima, de Natacha Pisarenko, o artista na abertura de sua exposição "O Mundo Segundo Malfalda" em Buenos Aires, em 15 de setembro de 2014.

aquela estrela é a dele


Três anos e cinco meses hoje que a vida vento vela o levou daqui...

corações velozes - retrato de um artista quando jovem


Em 1949 Nicholas Ray dirigiu o drama noir O crime não compensa (Knock on any door), estrelado por Humphrey Bogart. Mas é o personagem de John Derek, Nick Romano, um jovem desajustado, o mais marcante no filme, e a certa altura de uma cena diz “Live fast, die young, leave a good-looking corpse” / “Viva rápido, morra jovem e deixe um cadáver bonito”.

Seis anos depois, Ray volta ao tema no clássico e icônico Juventude transviada (Rebel without a cause), com James Dean no papel do jovem problemático Jim Stark. Provavelmente, o diretor deve ter lembrado a frase para o ator, que a tomou para si, sempre repetindo em entrevistas, a ponto de ser creditada de sua autoria.
James Dean tinha paixão por automobilismo, que ele chamava de "perspectivas libertadoras". Com a grana que recebeu por seu trabalho em Vidas amargas, de Elia Kazan, comprou alguns carros e passou a correr em eventos profissionais.
O ano de 1955 foi agitado para o ator, competindo em todas corridas que aparecesse. Num campeonato em Palm Springs, na Califórnia, chegou a ganhar o primeiro lugar na categoria de iniciantes. Essa sua paixão por pouco não atrapalhou seus compromissos no cinema. A Warner Bros, que produziu Assim caminha a humanidade, de George Stevens, colocou um item no contrato impedindo-o de correr enquanto estivesse filmando. Depois do último take, Dean apressou-se para se inscrever numa corrida que aconteceria em Salinas, no começo de outubro.
Na tarde de 30 de setembro, uma sexta-feira, acompanhado do seu mecânico, o alemão Rolf Wütherich, o ator entrou em seu Porsche 440 e partiu de Los Angeles a Salinas, pela Rota 466, para dar uma amaciada no motor. Era também uma forma de treinar e estudar as condições da corrida. Noutro carro seguiam um amigo coordenador de dublê e um fotógrafo da revista Collier's.
Às 17h45, quando o sol amarelava no poente das colinas, James Dean não conseguiu frear a tempo e bateu violentamente na lateral de um Ford Tudor que fazia o retorno num cruzamento. O mecânico foi arremessado para longe e o ator ficou preso às ferragens. Várias testemunhas assistiram a sua última fatal quimera.
James Dean se não disse a frase do personagem de John Derek, incorporou literalmente o sentido fora das telas, pois vivia intensamente na velocidade dos dias. Seu coração selvagem tinha pressa de viver. Morreu jovem numa curva do caminho quando seu Porsche 440 a 135 quilômetros por hora completou o seu destino.
O mecânico que acompanhava James Dean, mesmo com ferimentos graves, sobreviveu, depois de seis meses hospitalizado, passando por várias cirurgias. Sua vida no país de origem tinha um passado comprometedor. Rolf Wütherich trabalhou para a Luftwaffe, ramo aéreo das Forças Armadas Unificadas da Alemanha Nazista. Logo após a Segunda Guerra entrou para a fábrica Porsche no departamento de corridas da companhia, destacando-se como um dos mais experientes profissionais. Por conta disso foi enviado para os Estados Unidos como engenheiro de campo, acompanhar e dar manutenção aos carros que foram vendidos para competições em Los Angeles. Um desses primeiros veículos estava endereçado a James Dean. A amizade se fez entre os dois, e Wütherich passou a trabalhar quase exclusivamente para o ator.
Após o acidente, o alemão passou a ter distúrbios psicológicos, acusado de causar a morte de um dos mais famosos atores em ascensão de Hollywood, pois incentivara James Dean à viagem a Salinas. Afundou-se no alcoolismo e voltou para a Alemanha para trabalhar num departamento de teste da Porsche.
Com comportamento cada vez mais agressivo, Rolf teve quatro casamentos complicados, e no último, com alucinações, esfaqueou a esposa enquanto dormia e tentou se matar. Foi internado numa clínica psiquiátrica, quando saiu, anos depois, conseguiu trabalhar fazendo pequenos serviços em montadoras de carro.
Depremido, aparentemente bêbado e drogado, numa noite de julho de 1981 saiu dirigindo a toda velocidade pelas ruas de Kupferzell, cidade onde morava, numa competição com seus fantasmas. Wütherich perdeu o controle do Honda Civic e bateu no muro de uma residência num cruzamento, falecendo na hora, aos 51 anos.
A velocidade como ponto final.
Acima, uma das últimas fotos do ator e o mecânico antes da última corrida.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

"os adjetivos passam, e os substantivos ficam"


Desde jovem Machado de Assis colaborava com seus textos ácidos e bem-humorados em vários periódicos da imprensa carioca, e isso lhe abriu caminhos para a carreira literária. Durante os anos de 1883 a 1886, publicou uma série de ditos e aforismos no jornal Gazeta de Notícias. Assinava com o pseudônimo de Lélio.

Intitulada Balas de Estalo, a série, com a afinada ironia do grande escritor, refletia com humor a política imperial no final do século XIX, discorrendo sobre o comportamento e as mudanças urbanas, o abolicionismo, os princípios e medidas adotadas para extinguir a escravidão, analisando dessa forma o declínio das principais instituições do país, mais exatamente a monarquia e a igreja.
São frases curtas, cortantes, (como essa do título da postagem), com a inteligência do implacável, eloquente e elegante “bruxo do Cosme Velho”, epíteto cunhado por Carlos Drummond de Andrade no poema a ele dedicado, A um bruxo, com amor, publicado no livro A vida passada a limpo, de 1959, uma afetuosa alusão ao morador da casa número 18 da rua que tem o mesmo nome no bairro carioca.
A historiadora paulista Ana Flávia Cernic Ramos tem mestrado e doutorado sobre a série de textos, respectivamente, Política e Humor nos últimos anos da monarquia: a série Balas de Estalo e As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas Balas de Estalo de Machado de Assis, este publicado em livro em 2016.
Machado, que trabalhava como diretor-geral do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas e participava ativamente das sessões da Academia Brasileira de Letras, por ele presidida, entra em licença para cuidar da saúde no começo de julho de 1908. Para crises de epilepsia e outras enfermidades, decidiu-se pelo tratamento homeopático, em casa.
Durante esse período, o escritor recebia visitas diárias dos amigos da Academia e de personalidades, como o diplomata Barão do Rio Branco. Machado lê jornais e críticas ao seu último livro, Memorial de Aires. “O livro é derradeiro; já não estou em idade de folias literárias nem outras”, escreveu em uma carta em resposta ao crítico José Veríssimo. Mostrando lucidez em seu leito, escreveu calmamente seu testamento. Viúvo há quatro anos de sua amada Carolina Augusta Xavier, e sem filhos, deixou todos seus bens para “a menina Laura”, de quem tanto gostava, filha de sua sobrinha Sara Gomes.
Às 3h20m de 29 de setembro de 1908 Machado de Assis falece aos 69 anos, abatido por uma úlcera cancerosa na boca.
O publicitário de formação, bancário de profissão e pesquisador literário independente Felipe Pereira Rissato, há mais de 20 anos dedica-se a procurar e revelar raridades da vida e obra de Euclides da Cunha e Machado de Assis, e vem se notabilizando por achados iconográficos e textos inéditos desses escritores.
Como disse em uma entrevista à revista digital Voz da Literatura, de Brasília, em setembro do 2019, Felipe viaja para vários locais do Brasil e exterior, pois nem todo acervo de hemerotecas digitais de bibliotecas, como a Nacional no Rio de Janeiro, está disponível, forçando-o a pesquisar “em microfilmes e materiais originais, o que eu particularmente prefiro, embora o que dificulte sejam os custos de deslocamento e hospedagens, todos orçados por essa minha paixão!”
E foi numa dessas viagens de paixão pela literatura brasileira que Felipe encontrou em 2018, provavelmente a última foto de Machado de Assis (abaixo), publicada na edição da revista semanal argentina Caras y Caretas, de 25 de janeiro de 1908, encontrada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España. A foto estampa uma breve matéria sobre "Homens ilustres do Brasil".
Hoje, 112 anos que Machado de Assis não morreu. Um substantivo para sempre.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

começo de semana com Rosa - o balão colorido


No começo da década de 60, o grande escritor Guimarães Rosa trabalhava no Itamaraty, como diretor do Serviço de Demarcação de Fronteiras.

Entre protocolos bilaterais de países, sinos dos cilindros de máquinas de escrever descendo os papeis, e conversas sobre inspeção de marcos, Rosa sentiu aproximar-se um sopro pela sala, uma aragem cordisburguense banhando-lhe os sentidos, um fluido tirando-lhe daquele ambiente e levando-o para outras margens. Não teve dúvida, era uma inspiração, vinha-lhe um conto! Vestiu o paletó, saiu às pressas, desceu e pegou o bonde para casa, nas imediações do Posto Seis, em Copacabana.

Otto Lara Resende em seu livro de crônicas O príncipe e o sabiá*, diz que “durante a viagem, o conto delineou-se e surgiu inteiro, irretocável. Rosa o conduzia com o maior cuidado, para que não fugisse, nem se evaporasse. Levava-o – a imagem é dele – com a cautela de uma criança que leva um balão colorido que pode arrebentar.”

E assim surgiu o belíssimo A terceira margem do rio, incluído em Primeiras estórias, publicado em 1962, seis anos depois de Grande Sertão: Veredas. A beleza dessa imagem que Guimarães Rosa deu ao momento de inspiração, a força que tem quando vem para ficar e a fragilidade que tem para ir embora, é de uma beleza impressionante. Rosa é grandioso nas veredas e nas margens de todos os sertões da literatura brasileira.

*Publicado postumamente em 1994, o livro foi organizado pela escritora 
Ana Miranda
, e reúne textos que Otto Lara Resende escreveu sobre vários nomes da literatura, e alguns da política, publicados em jornais.


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domingo, 27 de setembro de 2020

final de domingo com Rosa

foto Acervo Museu Casa Guimarães Rosa

“Eu estou só. O gato está só. As árvores estão sós. Mas não o só da solidão: o só solistência.”

- Guimarães Rosa em Ave, palavra, capítulo “Do diário em Paris”, página 64.
Publicado postumamente em 1970, com organização do tradutor e crítico Paulo Rónai, o livro reúne notas de viagens, reportagens, páginas de diários, contos, poemas, meditações, que o escritor mineiro, de forma descontínua e esporádica, escreveu para revistas e jornais no período de 1947 até pouco antes de sua morte, em 1967.

sábado, 26 de setembro de 2020

asas

 

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim
tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim
- poema do meu livro Poesia Provisória, publicado pela
Editora Radiadora
, Fortaleza, 2019
- musicado e interpretado por
Rubi
, São Paulo, 2020

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

todo sobre mi madre


Durante a invasão moura na Espanha, por volta de 1218, e por extensão a dominação maometana na Península Ibérica, os cristãos eram perseguidos e escravizados. Reza a lenda – e o verbo aqui é adequadíssimo – que a Virgem Maria, vendo que muitos estavam perdendo a fé em Deus e a inocência perante a vida, na madrugada do início de agosto daquele ano apareceu simultaneamente nos sonhos de três garbosos, Pedro, um militar francês de origem fidalga, Raimundo, um grande teólogo da época, e o monarca Jaime I, de Aragão. Nossa Senhora disse-lhes que fundassem uma ordem religiosa com a sagrada missão de devolver a fé para os cristãos e libertá-los.

Quando souberam do sincronismo da mensagem celestial, não tiveram dúvidas em atender ao pedido da Santa Mãe. O bispo de Barcelona, Dom Pedro de Centelles, apressou-se em ministrar uma cerimônia para consagrar a tarefa aos três dadivosos designados e mais treze cavaleiros, e formaram a Ordem Real e Militar Nossa Senhora das Mercês, um título atribuído pela Igreja à madre misericordiosa. Oficialmente passaram a se dedicar à redenção dos cristãos que corriam perigo sob o jugo dos mouros.
Honório III, o papa de então, com seu grande prestígio espiritual, mais animado que o bispo de Barcelona, aprovou a Ordem e espalhou de imediato a congregação pela Europa. Com a descoberta e colonização da América a devoção tomou proporções literalmente continentais. Por conta do viés militar da secular Ordem redentora, das Mercês é padroeira até das Forças Armadas em vários países. Aqui ao lado, no Peru, é consagrada padroeira de Lima, capital.
No Brasil, especificamente em pleno ciclo do ouro em Minas Gerais, a Ordem se estabeleceu em Diamantina, Ouro Preto, São João Del Rei, Mariana, Sabará e Santa Bárbara. Mas se estendeu por várias outras regiões do Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Ceará, onde em Itapipoca, do dia 14 a 24 deste mês há no calendário celebrações pela Diocese da conhecida cidade dos três climas, por haver em seu território praias, serras e sertão.
A festa maior mesmo é em Barcelona, a cada 24 de setembro, primeira cidade onde das Mercês foi proferida padroeira. Neste ano esquisito as comemorações foram canceladas por conta da pandemia, principalmente agora quando é alertado pela OMS um novo surto do vírus na Espanha e Reino Unido.
Dois dos visitados em sonho pela Virgem tiveram suas patentes com codinomes deificados ao longo do tempo, São Pedro Nolasco e São Raimundo Peñaforte, tamanho empenho dos soldados de Maria pela causa.
Sete séculos depois da aparição de Mare de Déu de La Mercè, como assim se evoca na Espanha, no mesmo dia 24 de setembro nasceu o cineasta Pedro Almodóvar, na comunidade autônoma Castilla-La Mancha. Em Volver, de 2006, para escrever o roteiro, o diretor se inspirou na naturalidade com que seus conterrâneos religiosos tratam a morte, cultivam a memória e passam a vida inteira cuidando numa boa de sepulturas. O filme conta a história de três gerações de mulheres que representam essa comunidade onde se fala muito, se oculta muito, se escuta muito, e, para ser uma comédia, chora-se muito. Uma avó volta do além para resolver uns assuntos que esquecera. Mortos e vivos convivem sem nenhum espanto. O fantástico e o real no mesmo enquadramento.
Almodóvar foi batizado Pedro em homenagem a São Pedro Nolasco, por graça e devoção de sua mãe, Francisca Caballero, a simpática senhora que aparece em pequenos e brilhantes papeis em quatro filmes do filho, a parente do dentista em O que fiz para merecer isto?, a locutora de Mulheres à beira de um ataque de nervos, a mãe de uma atriz de filmes pornográficos em Ata-me e a impagável entrevistadora de um programa de televisão em Kika.
O cineasta comemora hoje 71 anos de idade, sob as benções de dona Francisca que faleceu em 1999, e está lá ao lado das Mercês, rogando por nós que recorremos a vós neste ano em que vivemos em perigo.
- do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

ontem como hoje


Colbert - Para arranjar dinheiro, há um momento em que enganar o contribuinte já não é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é possível continuar a gastar quando já se está endividado até o pescoço.

Mazarino - Um simples mortal, claro, quando está coberto de dívidas e não consegue honrá-las, vai parar na prisão. Mas o Estado é diferente! Não se pode mandar o Estado para a prisão. Então, ele continua a endividar-se. Todos os Estados o fazem!
Colbert - Ah, sim? Mas como faremos isso, se já criamos todos os impostos imagináveis?
Mazarino - Criando outros.
Colbert - Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.
Mazarino - Sim, é impossível.
Colbert - E sobre os ricos?
Mazarino - E os ricos também não. Eles parariam de gastar. E um rico que gasta, faz viver centenas de pobres.
Colbert - Então, como faremos?
Mazarino - Colbert! Tu pensas como um queijo, um penico de doente! Há uma quantidade enorme de pessoas entre os ricos e os pobres: as que trabalham sonhando enriquecer e temendo empobrecer. É sobre essas que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Quanto mais lhes tirarmos, mais elas trabalharão para compensar o que lhes tiramos. Formam um reservatório inesgotável... É a classe média!
Diálogo da peça Le diable rouge, escrita em 2008 pelo francês Antoine Rault, um dos mais importantes dramaturgos do teatro contemporâneo.
Ambientada no reinado de Luís XIV, em meados do século XVIII, a peça é de uma atualidade impressionante. Incômoda, oportuna, reflexiva.
Qualquer semelhança com estes tempos aqui e alhures, não é mera coincidência. A vida não imita a arte: a arte reflete a vida.
Acima, The Money Changers/Los cambistas, 1548, óleo sobre tela do holandês Marinus van Reymerswaele, exposto no Bilbao Fine Arts Museum, Espanha.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

o filho de Odaléia


Gonzaguinha tinha dois meses de idade quando foi retirado dos braços da mãe, Odaléia dos Santos, e entregue aos padrinhos, um casal amigo de Gonzagão, Dina e Henrique, que moravam no Morro de São Carlos, no Estácio, Rio de Janeiro.

O propósito era preservar a saúde do bebê: a mãe contraíra tuberculose, a chamada “peste branca” naqueles anos 40, doença contagiosa, fatal, uma sentença. Até os dois anos de idade, Gonzaguinha via a mãe em rápidas visitas. E o pai também pouco encontrava, no começo de carreira, fazendo shows, já antecipando “minha vida é andar por esse país...”

Odaléia era compositora e cantora da noite, de dancings, não abria mão de sua arte, tinha posturas determinadas e avançadas para a época, recusava-se a ficar em casa, bela e recatada, como queria Gonzagão. Depois de meses e meses internada em sanatórios em Petrópolis e Santos Dumont, Minas Gerais, Odaléia não resistiu à doença. Tinha apenas 22 anos.

Apesar de muito criança, Gonzaguinha nunca esqueceu a mãe biológica. As lembranças ficaram no tato das retinas, no terreno do peito que tossia: o cantor contraiu tuberculose já adulto, como o sangue materno ainda correndo nos afluentes do tempo, como uma genética afetiva que os ligava.

Em 1978 Gonzaguinha gravou em seu LP Recado, a canção Odaléia, Noites Brasileiras, uma das mais belas homenagens de um filho para a mãe que nunca partiu em suas noites, continuou a “estrela guia”, “o retrato guardado em meu quarto”.

“Saiba Odaléia pequena / te ouço / te vivo / te amo”, finaliza a canção do filho que hoje faria 75 anos.

domingo, 20 de setembro de 2020

final de domingo com Clarice


"Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus."

A revolta, de Clarice Lispector, do livro A descoberta do mundo, página 193, publicação póstuma, Ed. Rocco, 1999, onde reúne textos publicados 1969 a 1972 no Caderno B do Jornal do Brasil.

Acima, Clarice fotografada por Bluma Wainer em Paris,1946

sábado, 19 de setembro de 2020

a última cidade


Em cidades invisíveis, obra máxima de Italo Calvino, o personagem Marco Polo, jovem veneziano viajante, relata ao Imperador Kublain Khan suas impressões sobre as mais de cinquenta cidades que visitou.

Publicado em 1972, o romance em metanarrativa constitui-se em um conjunto de metáforas que traduzem bem a relação das pessoas com os lugares, o que esse encontro do desenho urbano com a geografia afetiva reflete nas condições e inquietações humanas, como memória, crenças, esperança, velhice, morte.

O próprio Calvino, de certa forma, está organicamente conduzido nessa narrativa, pela sua história, pelo diagrama que as cidades inventadas traduzem sua visão de mundo. O escritor nasceu em Cuba quando seus pais, cientistas italianos, moraram na ilha no começo dos anos 20. Cresceu e viveu na Itália, onde lutou na resistência contra o fascismo durante a Segunda Guerra.

As cidades de Calvino são personagens em sua arquitetura, memória e desejo. Nelas parece que morou um pouco de cada um de nós. Ou que gostaríamos de ter morado. O que sonhamos um dia morar. Mesmo que “o último porto só pode ser a cidade infernal”, como diz Kublain Khan a Marco Polo no final do livro, ao que ele rebate: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui.”

No distante ano de 832, um humilde sapateiro chamado Beato Sorore, na província de Siena, a 50 quilômetros de Florença, colocou sua casa à disposição dos peregrinos que por ali passavam, famintos e cansados, e dos enfermos que habitavam o local e não tinham como se tratar. A casa expandiu as edificações e se tornou hospital, orfanato, capela, igreja e museu, atravessando história, a Idade Média, as pestes, as guerras, até chegar a Idade Moderna. Hoje é o extenso Santa Maria della Scala, mantendo todo o complexo que se formou ao longo de mais de um século.

A quantidade de prédios, de construções primitivas, recuperadas e novas, soma em torno de 12.000 m². Um túnel construído entre os séculos 13 e 15, e que era usado para entregar alimentos e materiais de construção, se estende serpenteando sob três andares onde estão os museus e centenas de quadros e peças valiosas, incluindo o Museo Archeologico Nazionale onde repousam sarcófagos, as capelas e igrejas com vistosos oratórios e atraentes imagens sacras, e o hospital, o Policlinico Santa Maria le Scotte, com dezenas de enfermarias, laboratórios e farmácia.

Num dos leitos do hospital faleceu no dia 19 de setembro de 1985, aos 61 anos, Italo Calvino, que estava internado vítima de aneurisma cerebral. Os edifícios com seus afrescos, relevos, jugos de colunas imensas, compõem e se elevam como uma grande cidade no meio da província de Siena. E como o viajante Marco Polo de seu livro, Italo Calvino, enfermo, e traduzindo a metáfora da relação das pessoas com os lugares, foi acolhido na antiga hospedaria do sapateiro Beato Sorore.

Foi seu último porto na sua última cidade visível.

ler e ser

“Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”

Admirável pensamento do mestre Paulo Freire, no raciocínio da simplicidade de uma fábula, em A Educação na cidade, 1991, coletânea com entrevistas após ter assumido a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, de 1989 a 1990.

O sociólogo e pedagogo, patrono da Educação brasileira, ameaçado nestes tempos sombrios de fascismo, nos mostrou as uvas e que não estariam verdes.

Acima, Painel Paulo Freire, autoria de Luiz Carlos Cappellano, 2009, exposto no Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Prof. Milton de Almeida Santos, SME, Campinas, SP.

Hoje 99 anos de seu nascimento.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

um curumim amazonense


“Em ‘De Senectude’, Norberto Bobbio, aos 87 anos diz: ‘Nunca imaginei viver tanto’, nem eu, digo aos noventa e seis. Sempre pensei que morreria aos 47 anos, depois aos 57. Não morri. Também não lembro a razão dessas suspeitas”, escreveu Alberto Soeiro em seu blog no dia 18 de setembro de 2016.

Em agosto do ano passado, eu lançava o meu livro Poesia provisória na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Logo quando começo a apresentação, vejo Alberto chegando, saudável, lindo e faceiro. Há uns três anos não o via pessoalmente. Sentou-se para ouvir-me, veio para me prestigiar, foi para ficar cada vez mais em mim.

E quem é Alberto Soeiro? Um advogado que ao se aposentar aos 58 anos passou a ler cada vez mais, a ver cinema, teatro e exposições cada vez mais, a viajar cada vez mais, a fotografar cada vez mais. Passou a viver o “ócio remunerado”, como costumava dizer. O manauara que chegou ao Rio de Janeiro em 1948, foi morar em Fortaleza, onde tem laços familiares, em 1978, quando o conheci através de seu primo Arthur Jorge. Pediu a um parente que alugasse uma casa, pequena, confortável e se possível com quintal. Estava farto de apartamento. E logo estaria numa rua ainda sem asfalto no bairro Parquelândia, num imóvel como queria, três quartos, pois levara a mãe e a tia, sala de refeições com uma toalha de linho branco na mesa, cozinha com armários bege, quarto de empregada sem empregada, e uma lavanderia lá fora, debaixo de uma latada.

Alberto poderia ter sido um escritor famoso, um diretor de teatro, ou mesmo um cineasta, de tanto que entende de tudo isso e muito mais. E foi nesses lugares que nos aproximamos nos eventos em Fortaleza e passei a frequentar sua casa, em longos papos vespertinos no fim de semana, ao sabor de bolo de milho e café com pouco açúcar, enquanto mãe e tia viam baixinho televisão na sala. Eu o ouvia e o admirava até quando discordava de alguma posição contrária a minha. Ele me admirava e me ouvia mesmo quando defendia um filme que ele não gostara. Alberto nunca casou, não teve filhos, mas plantou árvores frutíferas e roseiras no quintal da Parquelândia, e escreveu livros, mesmo dizendo que assim não são as publicações artesanais editadas pela Universidade Sem Fronteiras, versando os mais diversos assuntos, memórias, relatos de viagens, poemas e receitas da cozinha amazonense.

Desprendido, sua vasta biblioteca era, e é ainda, “itinerante”. Compra muitos livros, lê e os doa, sucessivamente, aos amigos, às bibliotecas. Até meados dos anos 80, antes de vir morar em Brasília, fui beneficiado com essas doações, de livros recentes a preciosidades, edições raras como Poesia e prosa, em papel-bíblia, de Manuel Bandeira, de 1958, Epigramas Irônicos e Sentimentais, de 1922, e Imagens do México, de 1929, ambos em papel de Linho do Prado, de Ronald de Carvalho, as primeiras publicações de Solombra, de Cecília Meireles, 1963, e Poema Sujo, de Ferreira Gullar, 1976, além da bibliografia completa de Thomas Mann.

Eu sem muitas condições financeiras para fazer “farra” em livrarias e sebos, Alberto ajudou-me com sua afetividade a manter minha biblioteca atualizada à época. Hoje quando vejo meus-livros-dele sublinhados e com anotações laterais com sua caligrafia drummondiana, daqui da Asa Norte do cerrado à avenida João Pessoa nas asas do bairro Damas, onde hoje mora, encontro-me e converso com ele em cada página. “É por isso que gosto de dar livros lidos às pessoas a quem prezo muito. Os sublinhados são pedaços de mim mesmo. Uma espécie de eucaristia”, escreveu uma vez em seu blog.

E quem é Alberto Soeiro mesmo? Um famoso dentro de mim, que um dia me assustou com uma delicadeza: em 2010 esteve em Brasília, de passagem para o Pantanal, em uma dessas suas viagens em grupos de terceira idade. Ligou-me dias antes avisando, queria muito me ver, que eu fosse ao hotel, trazia algo para mim, para eu “guardar de volta”. Quando desceu, Alberto trazia um envelope grande, volumoso. No meio da conversa, entregou-me, com um sorriso leve. Abri e me surpreendi: estavam ali o meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros, de 1981, e vários publicações minhas de revistas, folhas com poemas, tudo que a ele dei na época em Fortaleza. Diante o meu espanto e o meu olhar em silêncio como pergunta, disse que já entrava nos noventa, não tinha mais muito tempo, e aquele material meu-dele era muito valoroso, estando comigo continuaria com ele quando fosse. De volta para casa, me peguei com furtivas lágrimas quando olhei pelo retrovisor.

Hoje cedo liguei para ele para parabenizá-lo pelos 100 anos de idade, e contei sobre aquele dia. Ainda bem que tinha me enganado. E eu queria mesmo era atravessar os ares da pandemia até Fortaleza e abraçar um século de vida, disse-lhe. A sua voz jovialmente lúcida espalhou-se em meu coração nos longos minutos matinais desta sexta-feira natalícia. O Alberto que ano passado apareceu faceiro no lançamento do meu livro, chegou novamente airoso como um pássaro pelas ondas do Smartphone no lançamento de sua nova velha idade.

Há uns quatro anos escreveu que se tivesse que escolher uma figura para representar sua longevidade, escolheria a linha reta. Nada relacionado a moral, retidão, caráter, mas a uma vida sem lances heroicos ou dramáticos. Vida, vivida na hora certa. E assim, me encho de esperanças, minha linha procura rimar com a dele, pois, parafraseando um dos seus dizeres espirituosos, tudo que há de bom em ti, recolhi como acervo em mim.

Meu coração abraça o seu, Alberto. Te amo, meu caro amigo, com minha “ternura mais funda e mais cotidiana.”

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

com sangue nas veias


Em meados dos anos 30 um franzino rapaz gaúcho, que gostava de compor umas marchinhas de carnaval, era noivo da bela mulata Inah. Mesmo apaixonadíssimo, tendo loucura por aquela mulher, hesitava em trocar a despreocupação da boemia pela certidão de casamento. Inah esperou por três anos para que ele decidisse, já que tanto repetia que por aquele amor ele podia “quase” morrer. Ela ainda guardava o poema que ele escreveu quando se conheceram no salão do Clube União Familiar, “Enquanto existirem estrelas no céu para brilhar, só tu serás o meu amor”, dizia um trecho escrito em papel perfumado. O pai, vendo que o filho tinha conhecido uma “moça decente”, arranjou-lhe logo um emprego de bedel na Faculdade de Direito quando ele deu baixa no Exército.

Mas quando se convenceu que o rapaz não tomaria uma atitude, Inah desmanchou o noivado, devolveu-lhe o poema de amor eterno, o perfume secou mesmo, e partiu para viver a vida dela. Afinal, ao contrário do que diria décadas depois um outro compositor com ar de moço bom, “quase” não seria apenas mais um detalhe naquela situação. Inah, firme em seus propósitos, que não ia ficar pendente a um advérbio.

Mesmo também dolorida com a separação, Inah foi rápida. O tempo é sempre favorável aos decididos. Dias depois o rapaz a viu na Rua da Praia, histórica via que nasceu às margens do Guaíba, na capital Porto Alegre. Faceira e com a consciência tranquila, Inah passeava pendurada no braço de um guapo que nem um pedaço do nubente “quase” marido podia ser.

O rapaz desesperou-se, teve ganas de matar ou morrer, principalmente depois quando a moça contraiu matrimônio com aquele que não era um tipo qualquer. Mas acalmou-se. Passando o que ele passou, talvez lhe viesse qualquer outra reação mais proveitosa. Não sabia mais o que trazia no peito, e fez do ciúme, despeito, amizade ou horror, um samba-canção.

O rapaz de menos de vinte anos, como deu para perceber pelo spoiler do texto, era Lupicínio Rodrigues, aquele moreno de rosto arredondado, bigodinho aparado e sorriso triste nos olhos amendoados. Assim surgiu a inspiração para os versos de Nervos de aço, a composição que narra a sua primeira grande desilusão amorosa, o seu desejo de morte ou de dor.

A música ficou guardada por um tempo, quieta em banho-maria de lágrimas para destilar o desgosto em aprendizado. Somente em 1947 foi gravada, na voz de barítono de Francisco Alves. O cantor tinha a marca de ser pioneiro em tudo, foi dele a primeira gravação de disco elétrico feita no Brasil, o primeiro a cantar e consagrar sambas como "Amélia", de Ataulfo Alves e Mário Lago, e Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Chico Alves foi até "rei", no caso, da voz, antes de Roberto Carlos, no descaso, da juventude. Com Nervos de aço não foi diferente, e a confissão axiomática que começa logo perguntando se você sabe o que é ter um amor, meu senhor, tornou-se um clássico no repertório não somente do autor, como também na história da música brasileira.

Lupicínio Rodrigues construiu sua obra com sangue nas veias em mais de 150 canções, como Vingança, Ela disse-me assim, Felicidade, Se acaso você chegasse, Esses moços, pobres moços, Volta, sempre relatando paixões, abandonos, casos e desapontamentos, seus na maioria, mas também dos amigos da boemia, como um cronista musical dos desencantos amorosos. Mesmo triste, nunca deixou sua Porto Alegre, no máximo foi ao Rio de Janeiro, conheceu Wilson Batista, Ataulfo Alves, Germano Augusto, e varavam as noites no Café Nice e atravessavam as madrugadas pelos bares da Lapa. Voltou depois de seis meses, munido de mais desencantos com uns namoros rápidos e dilacerantes para compor mais canções amarguradas.

Lupicínio criou o termo “dor-de-cotovelo”, patenteando o tipo de música que define os amantes bebendo suas dores com os braços apoiados em um balcão de bar. E para não alugar mais os ouvidos dos garçons e ter seu próprio tampo de mesa pra chorar, foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes onde a música estivesse sempre presente, era uma forma de juntar no mesmo espaço e noites o trabalho e a boemia. “Essas casas não eram só para ganhar dinheiro. Eram principalmente para reunir os amigos”, disse em uma entrevista poucos antes de falecer em 1974, de infarto, aos 59 anos.

Há várias ótimas interpretações da emblemática Nervos de aço, anteriores e depois da versão de Paulinho da Viola, no disco homônimo de 1973, que praticamente apresentou a canção para as novas gerações. Dois anos antes, Jamelão, a quem Lupicínio considerava o intérprete que dava o seu recado integralmente, gravou no disco todo a ele dedicado, Jamelão interpreta Lupicínio Rodrigues.

Hoje é aniversário de nascimento de Lupicínio, 106 anos de cotovelos resistentes no imaginário do cancioneiro brasileiro.

Acima, o mestre pelo traço de outro mestre, o cartunista e jornalista paraense J.Bosco.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

música do Brasil e mais


A revista digital Música do Brasil e Mais, criada e dirigida pela espanhola
 Julia Torres, editada em Saragoza, apresenta artigos e ensaios sobre nossa música e de outros países.

Disponibilizada gratuitamente como parte do projeto Música do Brasil hoje foi lançada a edição de número 6.

O nosso poetinha maior Vinicius de Moraes ganha 16 páginas como matéria de capa sobre sua vida e obra. Ary Barroso, Luiz Melodia, Aldir Blanc, Ismael Silva, Marina Lima, Tim Maia e um ensaio sobre canto bifônico são os demais “contenidos”.

Como colaborador convidado desde o número anterior, nessa edição participo da parte Mais: “Y puestos a viajar, qué mejor que ir a la preciosa África de la mano de Nirton y sus palabras delicadas al genial Salif Keïta”, assim a editora Julia Torres apresenta o meu texto sobre o músico maliano que completou 71 anos em 25 de agosto.

Gracias, Julia, pela oportunidade de estar na equipe de articulistas da revista, e, principalmente, por seu trabalho e dedicação à história da música brasileira.

viagem ao fim da tarde


Um casal de idosos resolve ir a Tóquio visitar os filhos. A viagem não foi em um momento oportuno, nem nunca será: os filhos, absorvidos pelo trabalho, não dão a atenção devida aos pais, nem sequer se sensibilizam por terem vindo de tão longe para vê-los. Mais do que caminhar em passos lentos do quarto à sala, atravessaram ruas e embarcaram em trens.

Há um sentimento de indiferença e ingratidão, de um lado. E de sublime resignação, do outro: os velhos retornam a sua casa e ao seu passado com a nobreza da compreensão. Eles sabem que pararam "na beira do cais / onde a estrada chegou ao fim".*

Esse é o resumo de um dos belos filmes da história do Cinema, Viagem à Tóquio, também intitulado Era uma vez em Tóquio, originalmente, Tôkyô monogatari, de Yasujiro Ozu, de quem mais do que admirador, sou devoto.

Produção japonesa de 1953, o filme desmonta as relações familiares com muita serenidade e sutileza, como deve ser para o entendimento e a reflexão de todos nós, seres imperfeitos metidos a sabidos. Realizado no pós-guerra, depois que "uma bomba sobre o Japão / fez nascer o Japão na paz",* Ozu estabelece uma estrutura narrativa neorrealista, confrontando o velho e o novo país, muito bem definido no envelhecimento e na modernidade, nos filhos e nos pais, nas cidades e nos costumes, no efêmero que somos, no eterno que pretendemos.

Minimalista na composição de suas imagens, o cineasta do cotidiano, dos laços e desenlaces familiares, disseca sentimentos que mexem com todos. Criador dos planos com tripé baixo, sua câmera-tatame está sempre na altura dos corações dos personagens, dos que ficam, dos que partem e que voltam para casa.

Hoje se comemora no Japão o Dia do Idoso. Viagem à Tóquio é uma bela homenagem ao tempo quando o fim da tarde de nossas vidas for lilás.

* versos de A paz, de Gilberto Gil e João Donato, 1986. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

transversal do tempo


Amy bebê e sua mãe, Janis Winehouse.

Amy Winehouse e sua mãe, Janis.

Amy reabilitada pelo afeto de outra mãe nos pontos de crochê da artista Peta Lima Venâncio, minha irmã.

Hoje, 37 anos de nascimento da cantora.

O tempo atravessando o coração de cada uma.

9 anos sem uma na saudade de outra. She died a hundred times.

No aniversário da ídola, o presente é para o irmão fã, eu que distante sempre amei Amy, we only said goodbye with words em suas canções.

carta de recomendação

foto Walter Firmo, 1975

Ô Antonico,

vou lhe pedir um favor
que só depende da sua boa vontade:

É necessário uma viração pro Nestor
que está vivendo em grande dificuldade.
Ele está mesmo dançando na corda bamba
ele é aquele que na escola de samba
toca cuíca, toca surdo e tamborim
faça por ele como se fosse por mim.
Até muamba já fizeram pro rapaz
porque no samba ninguém faz o que ele faz
mas hei de vê-lo bem feliz, se Deus quiser
e agradeço pelo que você fizer.

- Samba Antonico, de Ismael Silva, 1950.

O compositor niteroiense, criado no bairro Estácio de Sá, Rio de Janeiro, sempre desconversou quando lhe perguntavam se a letra era autobiográfica.

Ismael, que faleceu em 1978 aos 72 anos, passou sérias dificuldades financeiras por quase vinte anos, quietinho, sem falar para ninguém, no anonimato de aceitação e constrangimento. Até 1930, vivia bem, vendia seus sambas para Francisco Alves e Mário Reis, várias parcerias com Noel Rosa, além de ser gravado por Silvio Caldas, Carmen Miranda e Aurora Miranda. Criou, a partir de um bloco carnavalesco no Estácio, a primeira escola de samba carioca, a Deixa Falar, em 1928. O rompimento com Chico Alves, a morte de dois grandes amigos parceiros de boemia e composições, desilusões amorosas, a prisão em flagrante, por três anos, por tentativa de homicídio, deixaram Ismael pra baixo. Ao sair da cadeia, vai morar de favor na casa da irmã e se isola da vida artística.

Somente em 1950 Ismael levanta-se, procura os antigos companheiros de música. Antonico é a primeira composição dessa fase de retorno. Por isso, nos versos os contornos de uma situação à procura de trabalho. Muitos historiadores registram que Pixinguinha, por volta de 1939, ao ver o estado de penúria do colega, escreve uma carta ao amigo musicólogo Mozart de Araújo, relata as qualidades como sambista e finaliza dizendo “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.”

O autor grava a música em 1953, mas foi graças à interpretação do cantor Alcides Gerardi, dois anos antes, que Antonico estoura nas rádios e vende milhares de discos. E seguem dezenas de outras composições do sempre elegante Ismael, nos anos 50 e 60, nas vozes de famosos como Dolores Duran, Ataulfo Alves, Donga, Aracy de Almeida, no violão de Baden Powel, na flauta do carinhoso missivista solidário Pixinguinha.

Ismael regrava sua emblemática composição em 1973. Foi nessa década que cantores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Elza Soares, o grupo MPB-4, reverenciaram o compositor em shows, cantando seus sambas. É de Gal Costa uma das gravações mais conhecidas de Antonico, no show Fa-tal - Gal a todo vapor, em 1971, no Teatro Ruth Escobar, São Paulo, que praticamente apresentou Ismael para as novas gerações.

Parte de nossa rica música brasileira faz aniversário hoje: 115 anos de nascimento de Ismael Silva. Com ou sem o alter ego "Nestor" da letra, ou a boa vontade de "Antonico" na pessoa de Mozart de Araújo, o compositor deu a volta por cima, porque desde que o samba é samba, ninguém faz o que ele fez.