sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Solar da resistência

Foto: Agência Jornal do Brasil

A música, o teatro, o cinema, a literatura, o Tropicalismo, a ressonância do movimento antropofágico de Oswald de Andrade, tudo que se configurava nos agitados anos 60 como resistência pensante contra o conservadorismo e a Ditadura Militar, esteve representado no lendário Solar da Fossa, um casarão neoclássico do século 19 no bairro carioca de Botafogo, que de 1964 a 1971 abrigou boa parte de grandes nomes da cultura brasileira, e foi demolido para a construção do Shopping RioSul.

Resistência pautada, sobretudo, pela alegria, pelo deboche, mas focado em mudanças. Eram jovens que amavam e seguiam outros jovens que amavam e seguiam Engels, Marx, Marcuse, Glauber, José Celso Martinez... Jovens que amavam a Bossa Nova e também os Beatles e os Rolling Stones.
A lista dos moradores do Solar é extensa: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Paulinho da Viola, Tim Maia, Paulo Coelho, Torquato Neto, Luiz Carlos Lacerda, Betty Farias, Darlene Glória, Tânia Scher, José Wilker, Paulinho da Viola, Zé Keti, Abel Silva, Neville d'Almeida, Maria Glayds, Naná Vasconcelos, Zé Rodrix, Guarabira, Claudio Marzo, Ruy Castro e, entre tantos, o carnavalesco e cenógrafo Fernando Pamplona, que batizou o local quando foi morar depois que se separou da esposa. Mas não conseguiu se manter arrasado por muito tempo, tamanha a energia de muitos inquietos e criativos artistas, que conviviam no aconchego comunitário com estudantes, bancários, prostitutas, travestis... Os que lá não moravam, por lá passavam horas e dias com a turma de pensamento pulsante.
Obras-primas do nosso cancioneiro foram compostas naquele templo de brio e pertinácia, como Sinal fechado, de Paulinho da Viola, que posou ao lado de um dos portais do Solar para a capa do seu terceiro disco, de 1971. Caetano compôs a emblemática Alegria, Alegria no seu quarto de pensão. Os intermináveis oito anos que Leminski se dedicou ao seu alucinado livro de prosa experimental, Catatau, foi dada a largada dos rascunhos entre os corredores do casarão. Chico Buarque e Marieta Severo se conheceram em uma das festas malucas nos jardins da colonial hospedaria. E muitas outras histórias que foram impressas por não serem lendas.
Uma vez quando eu estava no Rio de Janeiro, passei algumas horas no Shopping imaginando as paredes que ali foram. Não conheci o Solar. Abstraí-me como pude do barulho do vaivém consumista para, “entre fotos e nomes” ver os “olhos cheios de cores”, daquela turma e ouvir a algazarra deles com "o peito cheio de amores vãos".
Era, sim, um sol de quase dezembro quando lá estive. De volta ao futuro, o sol do presente nas bancas de revista me encheu de alegria por ser, um pouco mais novo, da geração dos solares moradores. E por coincidência e arrumação que o universo apronta, cruzei com o cineasta Neville d'Almeida na rua. O quimérico e o concreto na mesma calçada.
Parte importante desse latifúndio cultural de resistência está muito bem revisitado, refletido e incentivado no livro Solar da Fossa: Um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias, de Toninho Vaz (Editora Casa da Palavra, 2011). Uma biografia de corpo e alma do casarão.

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