sábado, 4 de novembro de 2023

a casa de dona Rachel

Foto: acervo pessoal, 2015
De 2014 a 2017, a cada 15 dias do mês, dei aula de Roteiro na Escola de Cinema do Sertão, em Quixadá, Ceará. As salas ficavam no primeiro andar do Centro Cultural, e da varanda via-se o Chalé de Pedra, construção histórica da década de 1920, em estilo Art Nouveau, erguida sobre um monólito na praça.
Desde 2010 o local abriga o Memorial Rachel de Queiroz. Estão expostos livros, troféus, medalhas, diplomas, objetos pessoais e fotografias que mostram a vida da escritora em diversas fases. Sempre que eu podia, subia as estreitas escadas e ficava um bom tempo admirando o acervo.
Cearense de Fortaleza, a escritora viveu muito de seus 92 anos na fazenda Não Me Deixes, na região quixadaense. O pequeno museu tem a extensão afetiva de sua casa sobre aquela pedra, sob aquelas nuvens. Ergue-se mirando os monólitos em volta, a capital distante, o passado mais adiante. Há a delicadeza da simplicidade em cada peça em simetria com a largura histórica, e parece que a qualquer momento dona Rachel surgirá de uma porta para um café em xícara de porcelana, adoçado com o amplo sorriso, saboreado com o olhar contemplativo por trás dos óculos.
Um exemplar de O Quinze me remete aos bastidores da escrita dos 26 capítulos. Rachel de Queiroz tinha 19 anos, em 1929, quando contraiu uma séria congestão pulmonar, quase tuberculose, e o médico recomendou repouso absoluto. Sob medicação, à noite e às escondidas, começa a escrever o romance. A densidade da trama no fluxo linear de dois planos narrativos – as agruras do vaqueiro Chico Bento e sua família e a relação afetiva do rude fazendeiro Vicente com sua prima Conceição – não é fruto de delírio febril da moça adoentada. Rachel inspirou-se na grande seca que presenciou no sertão cearense em 1915 e fez a família mudar-se para o Rio de Janeiro. O êxodo de vidas secas noutro viés.
Publicado em 1930, a obra estreante inaugura ao lado de A bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, de 1928, o chamado Ciclo do Nordeste que renovou a literatura brasileira, onde as questões sociais, a realidade do retrato rural, o exame psicológico dos personagens, são elementos de um neorrealismo de introspecção e liberdade linguística, semelhantes ao do realismo urbano antecedido por Machado de Assis.
Sempre que eu descia as escadas, prometia que voltaria para outra visita à casa cristalizada na rocha e no tempo.
Hoje, sem atender ao pedido de sua fazenda, 20 anos que dona Rachel nos deixou.

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