segunda-feira, 20 de novembro de 2023

de los cambalaches se ha mezclao la vida


Foto: Annemarie Heinrich, 1940

O compositor argentino Enrique Santos Discépolo (1901-1951) dizia que o tango é um pensamento triste, embora se possa dançar. É considerado um dos mais versáteis autores de letras para esse gênero musical binário. Suas criações são marcadas com doses de sarcasmos, para estear angústia, questionar injustiças e justificar dúvidas.
Entre muitas que apresentam essas características, a mais conhecida é Cambalhache, de 1934, feita sob encomenda do produtor de cinema Ángel Mentasti para o filme musical El alma de bandoneón. Dirigido por Mario Soffici, o enredo é sobre um rapaz rico e uma cantora pobre que se apaixonam, e passam por sacrifícios e renúncias diante uma sociedade hipócrita e moralista.
Cambalache foi além do filme, lançado em 1935. Impulsionado pela interpretação de Carlos Gardel, em uma de suas últimas gravações, o tango com sua letra discursiva atravessou o tempo, adequando-se na história.
Citando o golpista financeiro francês Alexander Stavisky, o fundador da Congregação Salesiana Dom Bosco, o chefe da máfia argentina Don Chico, o imperador e líder militar Napoleão Bonaparte, o boxeador italiano campeão mundial Primo Carnera, o herói da libertação de vários países sul-americanos San Martin, o autor, com amargura e deboche crítico, expõe as desventuras da humanidade com figuras contrastantes e famosas até anos 30, mas atualizáveis para todos os tempos. “Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei. / Em 506 e no ano 2000 também”, sentencia Discépolo logo no início.
Raul Seixas, em sua versão para o disco Uah-bap-lu-bap-lah-béin-bum!, de 1987, acrescenta Beethoven, Ringo Star, papa Pio IX, Dom João e John Lennon, justificando o desígnio original da composição que diz num verso: “Vivemos misturados em um merengue / E na mesma lama todos manuseados”. A ironia como forma de redenção para não sucumbir na desesperança.
Enrique Discépolo de certa forma vaticinou o período cruel da ditadura militar na sua Argentina. Assim como Raul fez, pode-se incluir nessa remixagem infeliz o louco ultradireitista Javier Milei, eleito ontem presidente.
Um tango triste para dançar.

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