quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Pessoas em Fernando

“Vivemos da memória, que é a imaginação do que morreu; da esperança, que é a visão no que não existe; do sonho, que é a figuração do que não pode existir. Nesta trindade de vácuo.”

- Trecho de “Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Bernardo Soares, uma espécie de diário íntimo poético, ou "uma autobiografia sem fatos", como ele denomina o primeiro capítulo. Fragmentado e reflexivo, curiosamente aproxima-se da prosa de um romance. Publicado em 1913, tem a atualidade das inquietações humanas.
Pessoa viveu dos sete anos de idade até a adolescência em Durban, na África do Sul. Foi para lá devido ao segundo casamento da mãe com o cônsul de Portugal. Aprendeu inglês e era visto como um rapaz esquisito. Preferiu voltar para a terra natal, morar com a avó, criar seus heterônimos e fingir que o poeta é um fingidor.
Hoje, 88 anos que Fernando e os Pessoas Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares viraram memória, esperança e sonho. Eternos no desassossego dos seus livros.
Colagem: DeviantArt (Los Angeles) sobre foto do Acervo Casa Fernando Pessoa (Portugal)


 

terça-feira, 28 de novembro de 2023

sabe aquele Lanny?


Sabe aquele disco
que o Lanny toca
- Qual?
Aquele do Caetano
- Não.
Aquele do Gil
- Não
Aquele da Gal
- Não
Aquele do Macalé
- É!
Sabe aquele Lanny?
Sabe aquele qual?
Sabe aquele Lanny qual?
Sabe aquele?
- Conversa da cantora Vange Milliet com o então pouco conhecido Chico Cesar na composição Lanny qual? , última faixa do disco Vange (Baratos Afins, 1995).
Aquele da pergunta que não quer calar, ou mais precisamente, não parar de tocar, é o guitarrista Lanny Gordin, que está em todos os discos da Tropicália, só para começar, até chegar, depois de uns interlúdios existenciais, às novas gerações da música brasileira, Zeca Baleiro, Fernanda Takai, Wanessa da Mata, Adriana Calcanhoto, Max de Castro, Rodrigo Amarante...
Lanny estava internado há um mês por causa de uma pneumonia grave, e antes de comemorar 72 anos hoje, parou de vez o coração no meio da madrugada. Há sempre uma simetria de espanto quando o arco de vir e ir da existência se fecha no mesmo dia. Como a chuva das fontes continuasse over the rainbow. E tomara que assim seja, que não sejamos apenas carcaça no final da tarde.
Qual disco de Lanny escuto agora enquanto processo mais uma perda no cenário artístico, eles tão-longe-tão-perto-de-nós? Qual, depois da faixa de Vange? Expresso 2222, do Gil, com Lanny e Gal, duas ausências no mesmo qual.
Foto: Acervo Jornal Estadão, estúdio da Rádio Eldorado, São Paulo, SP, 1972.

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

pretérito


Foto:Ismar Lemes de Abreu


Do lado fronteiriço do pai
meu avô joão
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô joão.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
Trecho do meu livro Trem da memória
Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado Viana
Disponível na 37ª Feira do Livro de Brasília
Estande Celeiro Literário Brasiliense
24/11 a 3/12

domingo, 26 de novembro de 2023

quando duas canções se encontram


Foto: Chico Gadelha

A cantora cearense Mona Gadelha tinha 17 anos quando compôs Cor de sonho, um blues incorporado nas características de ritmo melancólico e narrativa simples. Gravado no LP coletivo Massafeira (CBS, 1980), a adolescente compositora já se revelava madura na perplexidade dos amores abandonados. A letra mostra as desventuras que aos poucos entram no prumo ou sucumbimos de vez se não tivermos voz.
Se do outro lado o que a pessoa amada faz “não tem cor de sonho”, se até a dubiedade de um sorriso “me deixa assustada”, e do lado de cá peito fica confuso, saiba que também por passar “noites sem dormir”, é bom ter cuidado com a solidão de quem sofre. A poesia das perdidas ilusões se sublima na própria condição de ser.
Mona Gadelha retoma a causa na sua nova composição Tudo bem comigo, single lançado hoje nas plataformas digitais. Dos sulcos analógicos do vinil à frequência digital dos streamings, o coração é o mesmo território sitiado.
A simetria com o que dizia em Cor de sonho é um trajeto que tem ondas. O tempo que se percorre no movimento das nuvens e das dunas. A segurança de dizer que está “tudo bem” com ela e os seus botões. Se antes passava noites sem dormir, hoje “durmo tranquila e acordo cedo”; se aquele sorriso a assustava, agora “me viro sozinha / enfrento o meu medo”; se naquele tempo estava “sempre querendo fugir”, dessa vez “encaro de frente o meu conflito”, numa proposital redundância de afirmação.
Tudo bem comigo, uma balada eletro-sofrência, como a autora define, conceitua uma unicidade de pensamento e qualidade artística. Mona gravou sete discos, no arco de 1985 a 2013, na diversidade do rock, do blues, de todas as canções que banharam sua vida na praia lírica. Uma discografia com a intextualidade como compositora, dialogando com seus espantos e esperanças citadinas. "Faço minhas contas / trabalho muito", situa-se.
No meio da faixa há uma pausa, um silêncio, como se a música ali terminasse. E logo retoma, emergindo, voltando ao fôlego para repetir “Tá tudo bem / eu vou muito bem”. Esse bate-e-volta ao fundo mar ratifica a superação dos amores e seus precipícios. E esse gráfico centralizado, de elo e não de divisão, está até na foto que ilustra a capa do single.
De Cor de sonho a Tudo bem comigo, não se diz nada apenas por dizer.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

poetas do desterro


Em outubro de 2005, Belchior fez uma excursão por dez cidades catarinenses com o show Belchior – Uma Turnê Catarina. A apresentação fazia parte do projeto Cruz e Sousa – Identidade Cultural Catarinense, promovido pela Agência Luso-Brasil Cultural com apoio do governo estadual. Idealizado pelo cantor e pelo professor universitário potiguar José Gomes Neto, radicado em Florianópolis há 50 anos, o show apresentava sonetos do poeta simbolista que o cantor musicou, gravou em 1993, e continua inédito.
Amigos por muito tempo, Gomes e Belchior tiveram longos papos e som dentro das noites. Além do CD Belchior canta Cruz e Sousa, com oito faixas, elaboraram outro projeto, um livro com as letras de todo o repertório do compositor. José Gomes Neto organizou o vasto material, mas não conseguiu publicar. Só foi possível em 2018, um ano após a morte do cantor. Editado em tiragem limitada pela VitelliPublicher, Cancioneiro Belchior é uma preciosidade de 280 páginas do letrista latino-americano, sem dinheiro no banco, mas com amigos como professor Gomes e o cantor Jorge Mello, seu parceiro, que escreveu o prefácio.
Em conversa recente com José Gomes, disse-me que o arquivo original do CD está na França com um maestro que se interessou pelo projeto, financiou o trabalho de eliminação de instrumentos eletrônicos e a gravação de novos arranjos em moldes camerísticos. Novamente o impasse: para finalização, edição e prensagem do disco, falta patrocínio.
Em 30 de abril de 2017, quando o anjo do Senhor, de quem nos fala o Livro Santo, desceu do céu e Belchior fez a sua última viagem, Santa Cruz do Sul-Sobral-Fortaleza, lembrei-me de Cruz e Sousa. Esse traslado pelos céus em nuvens cinzas de saudade, me remeteu à derradeira travessia do poeta simbolista. Nascido em Nossa Senhora do Desterro, hoje a capital Florianópolis, Cruz e Sousa morou um tempo no Rio de Janeiro, e casado, mudou-se para Curral Novo, em Minas Gerais, onde faleceu aos 36 anos, de tuberculose. Seu corpo foi de trem para o Rio, num vagão destinado a transporte de cavalos. A imagem que me vem é o cinza da fumaça férrea desenhando os últimos versos onde “Cantam as aves do céu da intimidade”, como disse em O horror dos vivos, do livro póstumo Últimos sonetos, 1905.
Olhando para Belchior deitado como nunca no hall do Teatro Dragão do Mar, naquele domingo cinzento por dentro, outro verso de Cruz e Sousa passou pelo meu silêncio marejado: “Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro” na madrugada da cidade gaúcha, do poema Vida obscura, um dos que ele musicou.
Hoje, 162 anos de nascimento do Cisne Negro da poesia brasileira.
Acima, flyer da divulgação de captação de recursos para o projeto do CD, lançado em 2021.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

com a força do seu canto


Foto: Daryan Dornelles/Folhapress

Erasmo Carlos sempre esteve além das ingênuas canções das jovens tardes de domingo. Sobrevivido ao apagão natural do iê-iê-iê, construiu sua carreira paralelamente à grife da parceria Roberto-e-Erasmo, lançando bons discos nas décadas de 70 a 90. Carlos, Erasmo, de 1971, é um álbum essencial, maduro, autêntico, assim como Banda dos contentes, seis anos depois. Ele nunca quis ficar para sempre sentado à beira do caminho.

Quando Paulo César Pinheiro e Sueli Costa compuseram Cordilheira, em 1977, pensaram em Erasmo Carlos. A modulação de uma voz suave para a tensão de uma letra desconcertante. Ele gravou, mas não saiu em disco. A música foi proibida pela censura no governo Geisel. A perturbadora inversão do eu narrador, onde a vítima toma o lugar do algoz, apontava o horror em que vivíamos: "Eu quero ler o coração dos comandantes / condenando os seus soldados pela orgia dos farsantes”, e assim saber da vertigem do poder ao "ter a sensação das cordilheiras / desabando sobre as flores inocentes e rasteiras". Os autores viajaram a Brasília para tentar a liberação e não foram recebidos pelos censores de plantão.
Em 1979, com o início da distensão política no governo Figueiredo, a música foi liberada e gravada por Simone no disco Pedaços. O registro de Erasmo Carlos só foi lançado em 2002, na caixa Mesmo que seja eu, com quinze CDs comemorativos de 50 anos sua carreira.
E hoje, quando se homenageia o Dia do Músico, completa um ano que Erasmo faleceu. Naquele final de manhã do dia 22, ainda marejávamos os olhos sem a luz do sol de Gal Costa, que se foi duas semanas antes.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

de frente ao Índico


Foto: Alcance Editores, Moçambique

Felizes os homens
Que cantam o amor.
A eles a vontade do inexplicável
E a forma dúbia dos oceanos.
- Eduardo White, poeta moçambicano, um dos maiores de sua geração.
Publicado em seu primeiro livro, Amar sobre o Índico, 1984 (Editora AEMO, Maputo), o poema não tem título, está na página 64, ali no meio, navegando na imensidão de beleza poética. White, filho de português e inglesa, tinha 21 anos quando escreveu essa preciosidade.
O amor redentor, o erotismo lírico, os questionamentos existenciais, marcam a poesia desse observador dos mares, assim como os reflexos da colonização portuguesa, os conflitos políticos, a intensa guerra civil que massacrou seu país nos anos 70.
Com quase 20 livros publicados, nunca encontrei um exemplar no Brasil, desde quando existiam as livrarias, desde quando vasculho em sebos. É preciso importar, viajar, pedir a quem vem de lá depois dos oceanos. Ou navegar de outras formas, nos sites. Fazer como ele disse: “em mim não ambiciono nada em definitivo se não a magia de viajar”, do livro Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave (1999).
Eduardo White morreu precocemente, em 2014, vitimado por meningite. Hoje ele faria 60 anos de frente ao Índico, cantando a vontade inexplicável do amor.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

de los cambalaches se ha mezclao la vida


Foto: Annemarie Heinrich, 1940

O compositor argentino Enrique Santos Discépolo (1901-1951) dizia que o tango é um pensamento triste, embora se possa dançar. É considerado um dos mais versáteis autores de letras para esse gênero musical binário. Suas criações são marcadas com doses de sarcasmos, para estear angústia, questionar injustiças e justificar dúvidas.
Entre muitas que apresentam essas características, a mais conhecida é Cambalhache, de 1934, feita sob encomenda do produtor de cinema Ángel Mentasti para o filme musical El alma de bandoneón. Dirigido por Mario Soffici, o enredo é sobre um rapaz rico e uma cantora pobre que se apaixonam, e passam por sacrifícios e renúncias diante uma sociedade hipócrita e moralista.
Cambalache foi além do filme, lançado em 1935. Impulsionado pela interpretação de Carlos Gardel, em uma de suas últimas gravações, o tango com sua letra discursiva atravessou o tempo, adequando-se na história.
Citando o golpista financeiro francês Alexander Stavisky, o fundador da Congregação Salesiana Dom Bosco, o chefe da máfia argentina Don Chico, o imperador e líder militar Napoleão Bonaparte, o boxeador italiano campeão mundial Primo Carnera, o herói da libertação de vários países sul-americanos San Martin, o autor, com amargura e deboche crítico, expõe as desventuras da humanidade com figuras contrastantes e famosas até anos 30, mas atualizáveis para todos os tempos. “Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei. / Em 506 e no ano 2000 também”, sentencia Discépolo logo no início.
Raul Seixas, em sua versão para o disco Uah-bap-lu-bap-lah-béin-bum!, de 1987, acrescenta Beethoven, Ringo Star, papa Pio IX, Dom João e John Lennon, justificando o desígnio original da composição que diz num verso: “Vivemos misturados em um merengue / E na mesma lama todos manuseados”. A ironia como forma de redenção para não sucumbir na desesperança.
Enrique Discépolo de certa forma vaticinou o período cruel da ditadura militar na sua Argentina. Assim como Raul fez, pode-se incluir nessa remixagem infeliz o louco ultradireitista Javier Milei, eleito ontem presidente.
Um tango triste para dançar.

domingo, 19 de novembro de 2023

lloro por ti, Argentina


 

a imortalidade de Rosa


Foto: Arquivo Público Mineiro / Acervo DIMUS – Museus Estaduais de MG

Em 1957 Guimarães Rosa se candidatou à Academia Brasileira de Letras, mas obteve apenas 10 votos. Tentou outra vez em 1963 e foi eleito por unanimidade, ocupando a vaga do gaúcho João Neves da Fontoura. Mas o escritor não tomou posse de imediato. Tinha uns medos, umas crenças, e achava que poderia se sentir mal de tanta emoção. Adiou por quatro anos.
Quando se considerou seguro, acertou com a Academia para assumir a cadeira no dia 16 de novembro de 1967. Tinha ido ao México no começo do ano representar o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, publicou em agosto o livro de contos Tutaméia – Terceiras histórias, participou do juri do II Concurso Nacional de Romance Walmap, por iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos seria indicado ao prêmio Nobel... Estava entusiasmado! Fecharia o ano empossado na Academia.
Em seu discurso, fazendo uma referência à imortalidade que o fardão consagra, disse que "...a gente morre é para provar que viveu". Uma fala com acento aforístico que caberia numa conversa de Riobaldo com seu compadre Quelemém.
Três dias depois, na manhã de um domingo como hoje, Rosa sofre um infarto em sua casa, em Copacabana, e falece, aos 59 anos. Estava sozinho, sua esposa, dona Aracy de Carvalho, tinha ido à missa.
Como pedira aos familiares, foi enterrado com seus óculos de míope. O semblante final como "Um passarinho / sob a robusta ossatura com pinta / de boi risonho?", perguntou e definiu Drummond em um poema a ele dedicado, Um chamado João.

sábado, 18 de novembro de 2023

a estranha família Mann

“Ao chegar no hotel o choque mais grave. Um telegrama dizendo que Klaus estava numa clínica em Cannes num estado desesperador. Logo em seguida: telefonema de uma amiga sua e de Erika comunicando a sua morte. Ficamos todos juntos num amargo sofrimento. Minha compaixão interior pelo coração materno e por Erika. Ele não podia ter feito isso a elas. (...) Totalmente esgotado, por volta das duas horas, fui para cama.”

- Trecho do diário do escritor Thomas Mann quando soube da morte do filho, Klaus Mann, em plena cidade mediterrânea francesa, em 22 de maio de 1949. Ele estava em Estocolmo para uma conferência, acompanhado da mulher Katia e da filha Erika. O pai não interrompeu a viagem, assim como as duas ficaram ao seu lado.
O suicídio de Klaus Mann, aos 43 anos, também escritor, autor de Mephisto (1936) é o tema do primeiro capítulo do ótimo livro Na rede dos magos – Uma outra biografia da família Mann (1991), da socióloga Marianne Krüll, alemã, como os famosos retratados. “Como é que Klaus não podia ‘ter feito isso’ somente ao ‘coração materno’ e à irmã? O seu coração de pai não fora tocado? Ele sentia ‘compaixão apenas pela mulher e pela filha, mas não por ele, o filho, e por si mesmo, o pai?”, reflete e questiona Marianne.
Precisa e muitas vezes implacáveis em suas análises, a autora construiu, a partir da leitura de cartas, documentos, diários, relatos e fatos, uma preciosa obra de considerações psicológica e sociológica sobre os membros de uma família cheia de estranheza e que fazem parte significante da literatura mundial do século XX.
Além dos filhos Klaus, Erika (atriz), Golo (historiador), Monika (ensaísta), Michael (violinista) e Elisabeth (cientista), o psicodrama sobre a família Thomas Mann se estende também no irmão Heinrich, romancista, e nos pais, o cônsul e comerciante Johann Heinrich e a escritora brasileira Julia da Silva Bruhns. Cada um envolvido numa teia de culpas e desesperanças, permeados todos pelo sucesso e o fracasso, a autorrealização e o auto-aniquilamento, os conflitos íntimos (a homossexualidade guardada do pai e a assumida do filho suicida) e a teia de conflagrações ambientadas em épocas conturbadas de duas guerras.
“Como somos uma família estranha! Um dia ainda escreverão livros sobre nós – não somente sobre alguns de nós”, pressentiu Klaus Mann em 1936. Hoje, 117 anos do seu nascimento.

Na foto de Eduard Wasow, 1929: Thomas, Erika, Katia e Klaus Mann.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

o primeiro romance


Rachel de Queiroz tinha 19 anos, em 1929, quando contraiu uma séria congestão pulmonar, quase tuberculose. O médico recomendou repouso absoluto. Sob medicação, à noite e às escondidas, começa a escrever O Quinze, publicado no ano seguinte.

A trama do romance, com densidade no fluxo linear de dois planos narrativos – as agruras do vaqueiro Chico Bento e sua família e a relação afetiva do rude fazendeiro Vicente com sua prima Conceição – não é fruto de delírio febril da moça adoentada. Rachel inspirou-se na grande seca que presenciou no sertão cearense em 1915 e fez a família mudar-se para o Rio de Janeiro. O êxodo de vidas secas noutro viés.
A obra da estreante inaugura ao lado de A Bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, de 1928, o chamado Ciclo do Nordeste que renovou a literatura brasileira, onde as questões sociais, a realidade do retrato rural, o exame psicológico dos personagens, são elementos de um neorrealismo de introspecção e liberdade linguística, semelhantes ao do realismo urbano antecedido por Machado de Assis.
Hoje, 113 anos de seu nascimento.
Foto: autor desconhecido, publicada na revista A Noite Illustrada, Rio de Janeiro, edição de 4/02/1931. Arquivo Nirez.
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impulsos incontidos

Foto Acervo Grupo Bloch

"Se os maus poetas soubessem que quando morrem, morrem para sempre, é possível que fossem mais cautelosos em suas exteriorizações e mais contidos em seus impulsos. Nada mais aterrador do que um mau poeta inspirado."
- Joel Silveira, escritor e jornalista (1918-2007), em Guerrilha noturna, lançado pela Editora Record em 1994. O livro é uma preciosidade de aforismos, citações, reflexões sobre política, crítica social e literária, sempre com os petardos que marcaram sua escrita em mais de 20 títulos e centenas de reportagens. Manuel Bandeira dizia que "O texto do Joel é maciamente perfurante, como uma punhalada que só dói quando esfria”.
Imagino a perplexidade de Joel diante os impulsos incontidos de "maus poetas inspirados" nestes tempos de redes sociais e “lacração” em saraus temáticos. É aterrador.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

todos os nomes em Saramago

Foto Mário Cruz / Agência Lusa

“Como numa metáfora de sua própria biografia, Saramago converteu-se agora na memória recordada de 'todos os nomes' das literaturas de língua portuguesa, os nomes de todos os que foram esquecidos pelos ilustres nórdicos, até infiltrar no autor de A Jangada de Pedra a justiça literária que haviam negado à poesia de Pessoa, aos textos de Torga, aos romances de Guimarães Rosa e de Jorge Amado, e aos de Clarice Lispector, aos nomes de tantos poetas e romancistas, escritores da palavra portuguesa nesta parte do mundo peninsular; entre as ilhas da Macronésia e mais além do Atlântico, e muito mais além da imaginação geográfica, ainda mais além de Goa e Timor, quase no outro mundo que Vasco da Gama trouxe até à história e à memória do Ocidente.”
- Trecho do artigo do escritor e jornalista espanhol Juan Jesús Armas Marcelo no nº 3 da Revista Camões de Letras e Cultura Lusófona, de 9/10/1998, editada pelo Instituto Camões, Portugal. A edição, com dez preciosos textos de escritores de diversos países, foi toda dedicada a José Saramago, galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura 1998.
Hoje 101 anos de nascimento do primeiro autor de língua portuguesa a receber o grande prêmio.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

o acendedor de lampiões

Foto: autor desconhecido, anos 40, Acervo Arquivo Nacional

Em 1950 o escritor e crítico Artur Lundkvist, membro da Academia Nobel da Suécia, foi convidado por uma companhia marítima para ir à Índia. O navio fez parada de um dia no Rio de Janeiro. Logo no começo da manhã, Lundkvist atravessou as pedras pisadas do cais, na Praça Mauá, e seguiu em direção ao centro da cidade, na Cinelândia. No bolso do paletó, um endereço: Praça Floriano, nº 55, 11º andar. A sala era o consultório do médico e poeta alagoano Jorge de Lima. Intelectual consagrado, com obra relevante na segunda geração do Modernismo, mudara-se para o Rio no começo da década de 30, onde concluiu o curso de Medicina iniciado em Salvador.
Quando o sueco entrou, encontrou o inusitado. Além de bata, estetoscópio e demais material próprio de um consultório, deparou-se com um ateliê de pintura; tudo muito bem dividido no amplo espaço com janelão para o sol fluminense. Jorge de Lima foi também romancista e pintor. E político, eleito deputado estadual em Alagoas e vereador no Rio.
Lundkvist chegou muito entusiasmado para conhecer o autor de Poemas Negros, livro de 1947. Conversaram durante a manhã inteira, desceram para almoçar e voltaram a trocar ideias até o final da tarde, quando o escritor retornou ao navio.
Em Estocolmo, Lundkvist reuniu-se com acadêmicos e chegaram à conclusão que dariam o Prêmio Nobel de Literatura a Jorge de Lima em 1958, pois até o ano anterior a lista de escritores que seriam laureados já estava feita. Mas o poeta faleceu em 15 de novembro de 1953, um ano depois de publicar sua obra máxima, A Invenção de Orfeu.
O poeta tinha apenas 14 anos quando escreveu um dos mais belos poemas da nossa literatura, O Acendedor de Lampiões, publicado em seu primeiro livro, XIV Alexandrinos, 1914. O soneto impressiona pela belíssima composição de imagem que os versos imprimem em nossas retinas, logo no primeiro quarteto: “Lá vem o acendedor de lampiões da rua! / Este mesmo que vem infatigavelmente, / parodiar o sol e associar-se à lua / Quando a sombra da noite enegrece o poente!”.
Jorge de Lima parodiava o sol e associava-se à lua na literatura e nas artes plásticas cuidando da alma, na medicina tratando do corpo.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

imprima-se a beleza


Acima, reprodução de Impressão, nascer do sol, o mais célebre quadro de Claude Monet, de 1872.

O óleo sobre tela mostra o amanhecer no porto Havre, região da Alta Normandia, França.
Exposta no Museu Marmottan, em Paris, a pintura magnetiza, imanta, ou mais apropriadamente, impressiona, pela beleza da névoa cerrada sobre o estaleiro, o movimento dos barcos e a fumaça que sobe das chaminés ao fundo.
Conta-se que o crítico Louis Leroy ao ver a obra teria se espantado, dito e se arrependido da pressa:
“Ao contemplar, pensei que meus óculos estivessem sujos: o que aquela tela representava? O quadro não tinha direito nem avesso... Impressão, nascer do sol! Claro que impressiona: qualquer papel pintado em estado embrionário está mais concluído do que essa marinha.”
Do comentário deu-se o nome do quadro, criou-se o termo “impressionismo”, que passou a ser o nome do movimento, que se tornou sinônimo de Monet. Tempos depois, o próprio Leroy se vangloriava de ter contribuído de forma enviesada para a história.
Praticamente toda a obra de Monet se caracteriza por pinturas que retratam paisagens. Era sua paixão o mundo lá fora do jeito que o impressionava por dentro. E de tanto trabalhar horas e horas exposto ao sol dos verões, e em busca de claridade ao ar livre noutras estações do ano, o pintor contraiu catarata aos 67 anos. Mas não parou de pintar, passou a usar cores fortes para senti-las, como o vermelho-carne. E continuou por mais de dez anos em frente ao cavalete, as cores das paisagens dilatando enquanto a escuridão chegava. Aos 83 anos estava quase totalmente cego, sem ver por fora o que continuava mais aceso e vermelho em seu coração.
A pintura tinha um trato com Monet: manteve-se viva, direcionando as mãos com os pinceis, esculpindo em cores o tempo que chegava ao fim. Um pouco mais abaixo dos olhos, um câncer de pulmão o levou aos 86 anos. O olhar cerrado noutra dimensão continuava impressionando.
Hoje, 183 anos de nascimento do pintor que imprimiu a beleza.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

o tempo de Manoel


Em 2008 os jornalistas Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues foram a Campo Grande, Mato Grosso do Sul, entrevistar Manoel de Barros. Foi uma das raríssimas vezes em que o poeta recebeu a imprensa em sua casa. Ele não se sentia à vontade em entrevistas. Com sua timidez de passarinho e simplicidade pantaneira, Manoel preferia atender às perguntas por escrito. Até mesmo nesse encontro respondeu à máquina em sua Olivetti.

Os visitantes adentraram com muito zelo a rotina do poeta, que acordava às 5h da manhã, tomava um copinho de guaraná em pó, caminhava 25 minutos, tomava uma xícara de café com leite, subia ao seu escritório "de ser inútil”, dizia, descia ao meio-dia, tomava dois uísques, almoçava e sesteava. No resto do dia ouvia música erudita, Chico Buarque, Paulinho da Viola... E ia para o alpendre admirar o crepúsculo que “emenda com o meu crepúsculo”, arrematava.
Um dos jornalistas, querendo saber sobre o tempo, a duração da vida, cita o ator italiano Vittorio Gassman numa entrevista em que achava que a vida deveria ser duas, uma para ensaiar, outra para viver a sério, pois quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir. “Concorda com isso?”, indaga o repórter.
Manoel sorrir por trás dos óculos e do bigode, como diria seu amigo Drummond, vira-se para a máquina e datilografa:
“Concordo, sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.”
A maravilhosa e surpreendente entrevista foi publicada na revista Caros Amigos, edição 117. Uma preciosidade para se reler tanto quanto se volta ao encanto de seus livros.
Há oito anos o tempo de Manoel soltou-se do poste, não por tédio, mas em continuidade ao tratado geral das grandezas do ínfimo. “Viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui”, refletia.
O poeta tinha 98 anos de infância na alma. “Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”, epigrafou o seu tempo.
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Acima, desenho-poema do poeta, do livro Celebrações das coisas. Bonecos e poesias de Manoel de Barros, organizado por Pedro Spíndola, editado pela Fundação Manoel de Barros e Fundação Municipal de Cultura de Campo Grande, MS, 2006.

domingo, 12 de novembro de 2023

a última quimera


Foto: autor desconhecido, 1912, Acervo Biblioteca Brasiliana Guita, São Paulo

Em 1912 Augusto dos Anjos lançou Eu, seu primeiro e único livro, que reúne 58 poemas, todos em versos rimados e numa magnífica composição de decassílabos. Mas a publicação não agradou à crítica nem à classe conservadora. A literatura brasileira estava marcada pelas escolas simbolista e parnasiana.
O poeta paraibano usou a erudição como modelo formal, mas transgrediu no conteúdo, adotando uma linguagem com vocabulário científico para expor suas angústias existenciais. Sofrimento, pessimismo, tremores noturnos, podridão moral, morte, decomposição física, eram temas que não cabiam na elegância dos saraus de lirismo comedido.
Augusto dos Anjos passou por grandes dificuldades financeiras. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão, sobrevivia lecionando Literatura no Liceu Paraibano, em 1910. Quando tentou transferência para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições, o governador João Lopes Machado negou o pedido. Augusto demitiu-se e foi embora com sua esposa, Ester Fialho.
Indignado, dizia que a injustiça social era solícita em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados e avaríssima com os honestos e os sonhadores. Com a alma atormentada, sem emprego fixo, o poeta sacrificava-se dando aulas particulares. Tinha dois filhos, muitas dívidas e poucas esperanças.
Vislumbrou uma melhora de vida quando se mudou com a família para Leopoldina, em Minas Gerais. Por influência do cunhado, foi nomeado diretor de um grupo escolar. Mas cinco meses depois adoeceu, contraiu dupla pneumonia e faleceu em 14 de novembro de 1914.
“Versos íntimos”, seu poema mais conhecido, é no mesmo fôlego epígrafe e lápide de seus curtos e intensos 30 anos de vida com o coração cheio de pesares. Um soneto de insólita combinação paradoxal da finitude humana.
Poucos assistiram ao seu enterro no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, em Leopoldina. "Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável!”.
A vastidão dos prados mineiros foi sua última quimera.
Foto: autor desconhecido, 1912, Acervo Biblioteca Brasiliana Guita, São Paulo


 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

ê bumba-iê-iê boi, ano que vem, mês que foi

Foto: Acervo Família Torquato Neto

“E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.”
- Trecho do poema-imagem Pessoal intransferível, de Torquato Neto, escrito um ano antes de ele apagar a luz em 10 de novembro de 1972, um dia depois de completar 28 anos.
E na imagem-poema abaixo, Torquato na exposição A pureza é um mito, de Hélio Oiticica, em Londres, na Whitechapel Gallery, 1969, um ano depois do antológico Tropicália ou Panis et Circencis, disco que tem suas letras Mamãe Coragem e Geleia geral (de onde destaquei o verso para o título da postagem). 

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

insumos de uma canção


Quando desembarcou em Teresina em 10 de dezembro de 1978 para o show Muito, Caetano Veloso logo lembrou de Torquato Neto. Desde a morte do poeta, em 1972, que o cantor não voltava à cidade, e nem conseguira chorar.

O pai de Torquato, Heli Nunes, foi visitá-lo no hotel. Já se conheciam do tempo em que ia a Salvador ver o filho, que estudava na mesma escola de Caetano. “Quando eu o vi, chorei muito, a dureza amarga se desfez. Ele ficou me consolando e me levou à casa dele”, relembra o cantor.

Na parede da sala da antiga casa tinha muitas fotografias de Torquato. Caetano girava a cabeça e os olhos lentamente, o coração e o tempo profundamente. Seu Heli olhava o filho no olhar que se iluminava de Caetano. Um silêncio em comunhão umedeceu a ambiente: Caetano chorava, turvava a lágrima nordestina. Seu Heli passou a mão paterna em sua cabeça, “Não chore tanto”, disse, sereno.  Quase com um caminhar suspenso - ali tudo parecia ser nuvem - foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cajuína. A bebida que mandava para Torquato em Salvador. Voltou para a sala na mesma afluência de remanso entre os cômodos. Caetano viu que ele trazia dois copos. Colocou-os sobre a mesa. O líquido cristalino da garrafa dourou o silêncio. Seu Heli serviu. Beberam demoradamente, sem nada falarem, eram naquele momento olhares em intacta retina. Sugaram uma saudade a dois.

Quando terminaram, seu Heli colocou os copos outra vez sobre a mesa, levantou-se e foi até ao jardim. Caetano atravessa o olhar pela luz da porta e espera, ainda mais só. Seu Heli volta trazendo uma cor na mão e estende a Caetano. “Cada coisa que ele fazia eu chorava mais”, disse sobre aquele homem lindo que lhe dava uma rosa pequenina.

De volta ao hotel, o cantor teve a certeza que a matéria vida era tão fina no gesto de seu Heli.

E assim nasceu a canção Cajuína, gravada no disco Cinema transcendental, 1979. Mesmo quando choramos ausências, ainda existimos, sem sabermos a que será que se destina.

Hoje, 79 anos de nascimento do menino cristalino de Teresina.

Na foto, acervo da família, Torquato entre os pais, Maria Salomé e Heli, década de 60.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

nas escavações do rock


Foto: acervo pessoal

Em 11 de junho de 2008 o cantor Serguei esteve em Taguatinga, cidade-satélite na região administrativa do Distrito Federal, para fazer um show. Um show que se tornou histórico. Ele tinha 76 anos.
A paleontóloga apresentação da lenda do rock brasileiro foi num galpão customizado de pub underground, numa via com oficinas de carros, borracharias 24 horas, boates decadentes e fundos de supermercados entulhados de caixas de papelão que os sem-tetos recolhem para vender na reciclagem. A ambientação contextual na mais fiel cenografia do velho e bom rock and roll e apropriadíssima para a exibição do panssexual personagem da noite. Um pouco mais à frente do galpão, a linha do metrô para Samambaia e a vista para os prédios crescentes da “emergente” classe média alta de Águas Claras, na Capital Federal.
Assistir a um show de Serguei é sempre um show à parte. Só vendo. Mesmo que a voz rouca não tenha sido mais aquelas rouquidões todas, ele foi reverenciado, apalpado, beijado, por um seleto e eufórico grupo de fãs, como se fosse um Mick Jagger descamisado de Iggy Pop com estampa de Jim Morrison no peito feito porta da percepção. A postura outsider cada vez mais reincidente. Eu não sabia se fotografava ou se só assistia registrando para sempre com os tatos da retina.
Entre tantos covers de seu set list, com um telão ao fundo com imagens do filme Woodstock, Serguei ovacionou com a esperada Summertime, clássico jazz standard de George Gershwin e DuBose Heyward, de 1935, eternizado em 1969 pela versão blues rasgante de Janis Joplin, com quem ele assegurava ter rolado sexo, drogas e rock and roll. Mas naquela noite, meu amigo Vanderlei Costa, ator e emblemático performer de Brasília, subiu numa lateral do palco e tascou um beijo de língua no seu ídolo. Isso eu vi e não é lenda.
Hoje 90 anos de nascimento de Sergio Augusto Bustamante, o menino filho do executivo da IBM Domingos e da dona de casa Maria. Um amigo na infância passou a chamá-lo, possivelmente pela aparência caucasiana, de Serguei, seu primeiro nome em russo.
É como na infância tivesse profetizado o que diz um verso de Summertime: “Você vai exibir suas asas, criança”.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

a viagem de Cecília


Foto: Joshua Benoliel - Arquivo Municipal de Lisboa, 1911

Viagem, de Cecília Meireles, reúne sua produção de 1929 a 1937. Publicado em 1938 pela Lisboa Editorial Império, recebeu o Prêmio Olavo Bilac concedido pela Academia Brasileira de Letras.
Dedicado “aos meus amigos portugueses”, é um dos seus mais belos livros. Um passeio na plenitude do eu lírico existencial em 199 páginas, construção perfeita nas intercessões do Simbolismo ao Modernismo. Nesse período, além de suas obras, Cecília fazia traduções, viajava por vários países, e lecionava Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal, à época no Rio de Janeiro.
Em uma das viagens a Portugal, em 1935, para uma série de palestras nas universidades em Lisboa e Coimbra, Cecília agendou uma tarde para conhecer Fernando Pessoa. O poeta dos heterônimos marcou o contato em dos principais cafés da capital, como uma homenagem à visitante, A Brazileira, no bairro do Chiado. Cecília esperou, esperou, e depois de algumas horas e várias xícaras de chá, de 12 às 14h, decidiu voltar ao hotel. Encontra na portaria um exemplar autografado do livro Mensagem e um bilhete de Pessoa se desculpando: fora aconselhado por seu horóscopo daquela manhã a não ir a encontros. Não iria, não fingiria a certeza que deveras sentia. O poeta falece no ano seguinte, levando Ricardo, Álvaro, Caeiro...
O fato, narrado pela filha da poeta, a atriz Maria Fernanda (1928-2022), está em um artigo do escritor português Francisco Cota Fagundes na revista Persona, editada pelo Centro de Estudos Pessoanos, volume 5, 1981.
O livro Viagem traz entre tantos poemas consagrados, como os ótimos 13 Epigramas, um dos mais conhecidos de Cecília, Motivo. É substancial em metalinguagem, em significado e definição: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” A análise semântica que se faz de cada verso, “atravesso noites e dias / no vento”, “se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, traça um perfil elucidativo de quem tem o dom e o fado de lapidar a vida com a mais íntima manifestação da literatura: a poesia. O canto.
122 anos hoje de seu nascimento. Mais de um século de asa ritmada. Se fica ou passa, ela sabia que cantava. E a canção é tudo, está em tudo, até em desencontros num café.