quarta-feira, 18 de agosto de 2021

o luxo da aldeia

O repertório do seminal disco “Pessoal do Ceará – Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem”, de 1973, traz na apresentação sequencial o que podemos entender como uma espécie de manifesto do que aquele grupo de compositores tinha para dizer e cantar nas vozes de Ednardo, Rodger e Teti.

O álbum abre com Ingazeiras, do sertão um galope operístico com os “sonhos descendo ladeiras / varando cancelas, abrindo porteiras”, anuncia na canção Terral o chão de dunas brancas onde o pessoal da aldeia aldeota queria ficar sob o céu pleno de paz que o protege, parte em seguida montado em um Cavalo ferro em buscas daqueles sonhos ingazeiros “em terras tropicamericanas”, sabendo dos perigos, que no “planalto central / se divide o bem e o mal”, e aponta na projeção cosmopolita de um Curta-metragem que é preciso “primeiro, uma atitude / segundo, algo que mude / terceiro, ação / ação de mudar”, pois se a morte vier ao encontro do pessoal, ela sabe que todos estão entre amigos, bebendo num bar, Falando da vida, e isso não quebrará o encanto de viver, até porque na confluência do campo e da cidade, quando se é Dono dos teus olhos, de olhar eles “querem ver o que há” no lado B do disco.
Vira-se o bolachão e se vê que “o desassossego / ronda a nossa aldeia” quando nela os “sons, megatons” / de uns versos obscenos” de “canções radioativas” estimulam Palmas para dar IBOPE, e assim, vivendo “som, velocidade”, mesmo com a noite “igual a todas as demais”, os pés de quem ama pisa aquela areia das dunas brancas na Beira-mar da “forte praia” de “minha cidade”, e só sorrisos respondem quando o poeta perde-se da musa “entre as luzes que lhe escondem”, isso provoca um Susto, ele sente “febre a noite inteira”, e sabe que é melhor “que se brinque na areia da praia” e não se “retorne ao planalto central” naquele cavalo ferro, pois o meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, do Bar do Anísio ao estúdio da Continental, o pessoal trouxe A mala com “os olhos cansados de ver o mundo”, “molhados de viver no mundo”, “parados no meio do mundo”, “no nicho, no luxo, no lixo” da aldeia aldeota batendo na porta pra lhe aperrear de tanta saudade, no Ceará de onde eu sou e a vida o vendo espalhou.
No repertório tão rico com as composições de Ednardo, Rodger, Dedé Evangelista, Humberto Teixeira, Tânia Araújo, Ricardo Bezerra, Fagner e Augusto Pontes, o disco faz o percurso poético do sertão de Ingazeiras que virou mar na beira de Fortaleza.
Esses meus apontamentos, de livre e espontânea inspiração, falei, de forma resumida, para Ednardo quando o entrevistei sábado passado para o documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B. Ele sorriu com os olhos e visivelmente emocionado elogiou minha análise poética, parabenizou “pelo filme arrojado que você está fazendo”. E reproduzo aqui sua reação e palavras, não por jactância, sem cair na armadilha da soberbia, mas para expressar a minha “ternura mais funda e mais cotidiana”, como diria Manuel Bandeira, de gratidão pelo abraço de reconhecimento, através de Ednardo, pelos dez anos persistindo, atravessando e contornando as dificuldades para realizar esse filme, debruçando-me apaixonadamente em pesquisas, leituras e audições da história da música criada em nosso chão sagrado, nesse recorte a partir do que se denominou Pessoal do Ceará.
Essa foi a segunda entrevista com o autor de Longarinas, e tantas canções que souberam tão bem mapear a geografia afetiva de nossa cidade. No primeiro encontro, em 2016, fomos ao Bar do Anísio moldados por uma holografia de lembranças, e ele falou sobre a gênese do Pessoal do Ceará. Dessa vez focamos a conversa na Massafeira, e não à toa, a locação foi o Theatro José de Alencar, onde aconteceu o evento de quatro dias em março de 1979, criado por ele e Augusto Pontes, a partir de uma ideia de seus irmãos, os cantores e compositores Rogério Soares e Regis Soares. Nesse período da primeira entrevista para cá, Ednardo sempre perguntava como andava o projeto, defendia publicamente a importância em uma e outra apresentações, se indignava em não haver interesse de financiamento nas minhas tentativas em editais e iniciativa privada. E celebrou comigo quando o projeto foi finalmente contemplado pela Lei Aldir Blanc de Audiovisual da Secult-CE.
Pessoal do Ceará – Lado A Lado B é um documentário que louva a grandeza da música feita no Ceará a partir da década de 70 e seus diversos, múltiplos e muitos deles pouco conhecidos criadores. Por conta disso, é necessariamente um filme analítico, de contemplação crítica, que mostra o lado B da história para se entender melhor o lado A do que se contou.

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