domingo, 15 de agosto de 2021

as filhas do Anísio

fotos Rubens Venancio

Risos, choro, gargalhadas, silêncios... Durante a tarde do bom agouro dia 13 de sexta-feira, a equipe do documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B fez uma viagem no tempo e conseguiu ir à calçada do Bar do Anísio, no final dos anos 60, começo dos 70. Fora eu, todos nem sequer tinham nascidos naqueles verdes anos da música cearense no que veio a se denominar Pessoal do Ceará.

E quem proporcionou essa viagem e simetria no tempo foram Nízia Muniz e Graça Muniz, filhas de Anísio Muniz de Sousa e Maria Augusta Pessoa Muniz, o casal que mais do que proprietários daquele bar no início da avenida Beira-mar, em Fortaleza, eram como pais de toda a turma de cantores, compositores, poetas, estudantes de música, arquitetura, física, medicina, direito...
Nízia e Graça riram ao lembrar de seu pai dizendo para algum daqueles frequentadores que “você pode beber, mas não vai pra casa não”, e apontava uma rede para ele no corredor. Choraram quando recordaram de como eram boas as manhãs em frente ao mar, as tardes preparando o bar, e as noites com as mesas cheias de alegria: “Nossa casa era uma grande família, mais do que nós filhos, papai era pai de todos”. Gargalharam quando contaram histórias como uma vez que sua mãe “pegou a chave do carro de um freguês que exagerou na bebida, escondeu e não deixou sair de jeito nenhum.”
Diferente de outros bares que aquela turma frequentava antes de chegar na deserta avenida Beira-mar no meio da noite, o Bar do Anísio era a extensão da casa de cada um deles, tinha o aconchego dos que guardam o outro com afeto. “Não eram fregueses, era uma grande família”, frisava e repetia Nizia, a mais falante. Aliás, Graça, que me adiantou por telefone que não falaria nada na entrevista, que era muito tímida e até tinha “fama de antipática mesmo”, em vários momentos passou a falar mais do que a irmã. Não escondeu e deixou escorrerem uns afluentes de lágrimas pelo rosto maquiado quando rememorou alguns fatos, “viu, olha, você me fez chorar”, disse secando com as costas das mãos, colocando a “culpa” em mim por expressar o que de tão natural veio de seu coração. Mas logo em seguida piscou-me o olho com um sorriso, como me agradecendo por tê-las levado de volta às meninas que nelas continuam. Por isso se emocionaram. Por isso colocaram os melhores vestidos, se perfumaram, arrumaram a casa, e nos serviram vatapá com arroz ao final das filmagens.
Lindas, Nizia parece um encontro de dona Clementina de Jesus com Ella Fitzgerald, Graça é uma cópia perfeita de sua mãe. E eu as olhava como estivesse diante um holograma, uma imagem sacra, um efeito anímico de Anísio e dona Augusta.
Numa cena em que olham o LP Pessoal do Ceará – Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, Graça passa o disco para Nízia. Ela abre a capa dupla como um pássaro aberto em leque, espalma a mão sobre as fotos como pela areia da praia ali em frente... e diz, cada palavra uma onda se estendendo:
"Ednardo... Rodger... Teti... mas o Pessoal do Ceará é muito mais... cadê o resto? Pessoal do Ceará é Flávio Torres... Claudio Pereira... Fausto Nilo... Jorge Mello... Ieda... Isabel Lustosa... Xica... Fagner, Belchior, tanta gente...”
Um silêncio depois dessa “cobrança”, e sempre esparramando as mãos sobre as fotos e capa, ela olha pra mim, sorrir e franze a testa num “pois é”.
“Corta!”, finalizo para a equipe de fotografia e som. Nízia endossou, validou o propósito desse documentário, desde quando, há dez anos, comecei a pesquisar e escrever o roteiro. Pessoal do Ceará é muito mais. É também o Anísio, dona Augusta, é Nizia, é Graça.

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