terça-feira, 30 de junho de 2020

quem abre os braços

Belchior ao lado de seu amigo Galba Gomes, no alto do Corcovado, RJ, 1970.
Três anos e dois meses hoje de como é perversa a saudade no meu coração.

coreografia da ama

A bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch partiu para outros palcos em 2009, 30 de junho. Dois anos depois o cineasta Wim Wenders lançou uma merecida homenagem, o documentário Pina. Duas horas de fascinação na tela.
O filme estava sendo rodado quando a bailarina foi diagnosticada com câncer. O cineasta tocado pela partida repentina, continuou o documentário de forma ainda mais belamente surpreendente: manteve muitas das imagens da coreógrafa enquanto novas cenas são captadas, em espetáculos, entrevistas, silêncios...
Para dar essa composição sensorial, Wenders filmou em 3D, e assim reproduz uma sublime sensação de imaterialidade, como se a bailarina continuasse com sua presença no mesmo instante, em diálogo coreográfico de uma dimensão palpável com o abstrato, do tablado com o metafísico, do sonho dentro da realidade. Nunca no cinema o recurso tecnológico da tridimensionalidade foi tão bem e corretamente usado, ao contrário do que se vê em produções hollywoodianas.
Pina é um dos mais criativos documentários do cinema moderno, assim também como fez a cineasta belga Chantal Akerman em 1983, com Un jour Pina m'a demande, registro de viés conceitual de uma turnê da companhia da bailarina pela Europa, produzido para televisão.
Da mesma maneira como a dança desenha e esculpe no espaço a respiração da alma, Wim Wenders consegue consubstanciar o onírico em seu filme. E quando se trata de Pina Bausch a proporção do olhar reverbera infinitamente.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

a vez de Pedro, a voz de Paulo

Na liturgia católica, Pedro e Paulo são considerados como exemplos de apóstolos fiéis a Cristo.
Hoje é celebrada a festa em homenagem aos dois santos. A escolha da data é muito remota, não se sabe se foi marcada pelo dia da morte de um deles, ou se pelo traslado de seus restos de um local para outro mais seguro.
Na tradição do Cristianismo, a remoção dos restos mortais e dos objetos pertencentes aos santos, era um ritual que se estendia por horas, com procissões e vigílias madrugada a dentro.
E nesta data no calendário do Vaticano, o papa entrega aos bispos e arcebispos o símbolo primário do cargo. Pedro foi o primeiro a ocupar o trono onde está o argentino Francisco, e ficou com a tiara de Sumo Pontífice por 37 anos.
Nas Igrejas Ortodoxas o dia é também lembrado e festejado com a celebração de Jejum dos Apóstolos.
Ao longo dos séculos esses movimentos ecumênicos foram marcados por alterações, adaptações, o que faz o mundo moderno confundir religião com fé.
No Brasil seguimos o costume de comemorar com festas, bandeirinhas, comidas típicas, danças. E, sobretudo, com as chamadas "simpatias", como casar ou até mesmo pedidos de graças mais difíceis, como a vacina para a Convid-19 e a saída do pandemônio e sua familícia do planalto central do país.
Durante este mais um mês de isolamento apelou-se para Santo Antônio e São João, com prudentes fogueirinhas de papel celofane no display de 40 polegadas, e lives cantando na sala "olha pro céu, meu amor!". Agora é com Pedro. A ele Cristo outorgou poderes com as chaves do Reino dos Céus. São Paulo de Tarso continua na dele, autor secularmente insigne do Novo Testamento. É o biógrafo do Cristianismo.
A reprodução da imagem abaixo é um grafite do século IV, encontrado em uma catacumba romana onde supostamente estavam os dois santos.

domingo, 28 de junho de 2020

somewhere over the rainbow

No começo da madrugada de 28 de junho de 1969, oito policiais, alguns deles à paisana, entraram no bar The Stonewall Inn, em Nova Iorque, e aos gritos anunciaram que estavam tomando o lugar, ocupando o território, com a violência característica da arbitrariedade e preconceito. Predominante gay, o local era constantemente alvo de batidas policiais.
O ataque daquela noite, porém, teve repercussão inesperada e histórica. Motins reverberaram seguidamente entre os frequentadores, como reação às represálias, à discriminação e cerceamento da liberdade.
Os protestos desencadeados culminaram com a marcha ocorrida no dia 1º de julho de 1970. O evento tornou-se precursor das atuais Paradas do Orgulho LGBT.
Renato Russo lançou em 1994 o seu primeiro disco solo, intitulado The Stonewall Celebration Concert, LP e CD, em comemoração aos 25 anos dos motins. Com 21 belíssimas canções em inglês, de clássicos de Irvin Berlin e Leonard Berstein ao pop-folk da alemã-britânica Tanita Tikaram, passando por Bob Dylan, Madonna e Billy Joe, o disco é precioso pelo repertório e pontuação ao histórico acontecimento.
A bela capa do álbum é uma referência ao sexto e último disco de John Lennon, Rock n' Roll, de 1975, onde interpreta 13 clássicos do gênero do final da década de 50 e início dos 60, que ele mais ouvia quando adolescente. Um curiosidade: a foto de Lennon é de 1961, feita pelo alemão Jürgen Vollmer, numa rua em Hamburgo, Alemanha, durante uma turnê da banda. As pessoas que aparecem desfocadas no lado direito são George Harrison, Paul McCartney e Stu Sutcliffe, primeiro baixista do grupo, falecido no ano seguinte, e, segundo consta, autor, juntamente com Lennon, do nome Beatles, a partir da palavra “beat”.
Renato Russo fez a foto em frente ao prédio onde morava, na rua Nascimento e Silva, em Ipanema.
O cantor doou parte dos rendimentos dos direitos autorais do disco para a campanha Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criada por Herbert de Souza, o Betinho, falecido em 1997, um ano depois de Renato.
Há dias que a vida é um arco-íris de esperança no coração de tanta gente bonita.

maluquinho

O engenheiro Raul Varella Seixas e a professora Maria Eugênia Pereira dos Santos com o filho Raul Santos Seixas, aos três meses.
Hoje ele faria 75 anos.

sábado, 27 de junho de 2020

cores de Kieślowski

O cineasta polonês Krzysztof Kieślowski, que hoje faria 79 anos, teve uma vida curta, uma morte precoce, aos 54. Mesmo assim, deixou uma significativa filmografia com 28 títulos.
Como o compatriota e contemporâneo Roman Polanski, sua carreira dividiu-se entre a terra natal e França, onde a partir de 1990 começou a dirigir filmes que tiveram uma visibilidade maior em termos de mercado.
Dessa fase, é famosa a chamada Trilogia das Cores, com os ótimos A liberdade é azul (Trois couleurs: Bleu), A igualdade é branca (Trois couleurs: Blanc) e A fraternidade é vermelha (Trois couleurs: Rouge), realizados em 1993 e 94.
Com referência às cores da bandeira da França e menção ao lema da Revolução Francesa, os filmes abordam tramas e dramas atuais tendo como fundo a unificação da Europa, os conflitos de imigração, os laços de amizade.
A trilogia foi seu último trabalho. Dois anos depois do lançamento de A fraternidade é vermelha, o rouge do coração de Kieślowski parou após complicações de uma cirurgia.

quando o dia clarear

“A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada, de tudo prostei. Ao que veio uma ânsia. Agora eu queria levar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo que eu era, para entrar num destino melhor.”
- O trecho é uma fala de Riobaldo, em Grandes Sertões: Veredas, página 296, de Guimarães Rosa, 1956. O personagem, isolado entre os jagunços, não se sente um deles. Está lá pelo amor que Diadorim lhe despertou. Riobaldo sente desconforto no bando. Sente falta do lado lá de fora, de música, das pessoas, de festas. “Eu queria era um divertimento de alívio”, diz dele para ele no isolamento. Riobaldo sofreia os ímpetos e espera. “Esperei a escuridão passar. Mas quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal”.

Nesses três meses de isolamento, pelo amor que a vida desperta em mim, espero a escuridão passar. Quero levar meu corpo para debaixo da cachoeira. Quero vestir um terno novo e passear. Quero o lado de fora das pessoas no abraço das festas. Sair de toda essa pandemia sanitária e se livrar do pandemônio do planalto central país. Entrar num destino melhor diante do buritizal.
Releio Guimarães hoje em seus 112 anos de nascimento: fico mais perto do Rosa para o dia clarear.
Dance comigo, Diadorim.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

meu caminho pelo mundo

No dia 26 de junho de 1968 mais de 100 mil pessoas marcharam na Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, em protesto contra a ditadura militar, sob o comando do general Costa e Silva.
A manifestação, inicialmente estudantil, foi incorporada por vários segmentos da sociedade civil. Políticos, intelectuais, artistas, aderiram à passeata tornando uma das mais significativas expressões populares do Brasil.
Muitos fotógrafos cobriram o acontecimento. Mas as imagens que ficaram marcadas foram as de Evandro Teixeira, à época do Jornal do Brasil. Entre tantos nomes famosos na multidão, o cantor e compositor Gilberto Gil, que hoje completa 78 anos, naquele dia comemorava na avenida seu aniversário de 26 anos.
Ao lado esquerdo de Gil, a cantora Nana Caymmi, com quem era casado, na ponta esquerda da foto, Torquato Neto.

a estrela de uma cineasta



Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Essa é uma declaração/pergunta de um dos diálogos mais surpreendentes, insólitos e ternos da literatura brasileira, dita por Macabéa, a personagem principal de A hora da estrela, de Clarice Lispector, escrito em 1977, levado ao cinema por Suzana Amaral em 1985.
Inevitável não associar a cineasta ao seu filme de estreia, que deu a ela o Urso de Prata no Festival de Berlim, e a Marcélia Cartaxo o Urso de Ouro como melhor atriz. A hora da estrela foi também o grande vencedor do Festival de Brasília (diretor, atriz, ator, fotografia, edição, filme) e no Festival de Havana o Prêmio Coral de melhor diretora.
Suzana Amaral, que faleceu ontem aos 88 anos, dirigiu mais dois filmes baseados em obras da nossa literatura, Uma vida em segredo, 2001, do romance homônimo de Autran Dourado, publicado em 1964, e Hotel Atlântico, 2009, suspense de João Gilberto Noll, 1989. Mas o livro de Clarice Lispector teve uma impactante transposição de linguagem pouco vista na história do cinema brasileiro desde Vidas secas, filme de Nelson Pereira dos Santos, 1963, do clássico de Graciliano Ramos, 1938.
A configuração dos conflitos existenciais dos personagens claricianos, Macabéa e Olímpico de Jesus, ganha na narrativa cinematográfica uma fusão fluente narrador-personagem-autor, sem caracterizar uma representação, e sim um diálogo entre uma obra e outra, entre escritora e cineasta, tornando esta igualmente criadora no entrelaçamento dos gêneros artísticos.
Macabéa é uma personagem tão emblemática da nossa rica literatura quanto Macunaíma. Assim como Grande Otelo deu corpo e alma ao anti-herói de Mário de Andrade, no filme de Joaquim Pedro, Marcélia Cartaxo deu definitivamente cara, perfil e essência à criação de Clarice, sob a forma como Suzana Amaral esculpiu, com sua sensível direção, o tempo e a alma da invisibilidade social da personagem.
A estrela de Suzana Amaral brilha na constelação do cinema brasileiro com esse filme.

as barras de cada dia

"A sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. Uma das formas de causar esse efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido alçados ao universo dos desejos do consumidor. O que começa como necessidade deve terminar como compulsão ou vício. E isso implica velocidade, excesso e desperdício."
  • Trecho da resenha do sociólogo carioca Luiz Guilherme Beaurepaire, em sua página https://www.bonslivrosparaler.com.br, 30/7/2019, sobre o livro Vida líquida, 2005, do polonês Zygmunt Bauman.
E nada mais icônico que possa ilustrar a compulsão do mundo contemporâneo do que o código de barras, essa representação gráfica de dados alfanuméricos, escaneados por maquininhas com raios vermelhos, decodificando o consumismo desenfreado de cada dia.
Oficialmente a primeira vez que o código foi lido comercialmente ocorreu em um supermercado em Ohio, EUA, em 26 de junho de 1974. O produto escaneado foi um simples tablete de chicletes Wrigley's, não tão à toa um produto tipicamente de costume norte-americano, descartável, insatisfatório, impermanente...

quinta-feira, 25 de junho de 2020

podres poderes

“O mundo nos abraça, entra em nosso corpo, e nós o devolvemos com as imagens que conseguimos fazer. Essa experiência de influência, de contaminação, de infecção do mundo ao redor faz parte da vida e não é possível escapar dela, sob o risco de se trancar num manicômio ou se fechar em seu próprio quarto sem nunca mais sair.”
- Marco Bellocchio, cineasta italiano, em entrevista à revista CULT, edição 179, 2013.
Pode parecer um presságio sobre os tempos em que estamos vivemos, mas ele se referia à realidade que inspira a criação de seus filmes, em particular Vincere (foto), que lançara quatro anos antes.
O filme conta a história de Ida Irene Dalser, que morreu sozinha tentando convencer que foi esposa de Benito Mussolini, com quem teve um filho, em 1915. O então soldado reconhece a paternidade, mas não dá assistência e parte para a guerra contra o império austro-húngaro. Quando volta está casado com outra. Ida Irene se desespera, é perseguida pelo partido fascista que se firmava, e a internam em hospitais psiquiátricos. Perde a guarda da criança e enlouquece.
Ao analisar a relação pessoal da personagem com o líder fascista, Bellocchio aborda a relação da Igreja com o Estado na Itália, discute e critica as promiscuidades institucionais entre católicos e políticos.
De certa forma, a fala do cineasta na entrevista é sobre a infecção dos vermes que exercem seus podres poderes no mundo ao redor, em todos os tempos.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

aqui, agora e sempre

foto Eduardo Longoni, 2007
"Não há outra forma de se alcançar a eternidade senão afundando no instante, nem outra forma de chegar à universalidade senão através da própria circunstância: o aqui e agora. A tarefa do escritor seria a de entrever os valores eternos que estão implícitos no drama social e político de seu tempo e lugar"
A citação está no livro O escritor e seus fantasmas, página 51, item O compromisso, do argentino Ernesto Sábato.
Lançado em 1963, é um excelente ensaio sobre o que literalmente diz o título, sobre o que provoca o escritor, sobre a razão dos seus livros, sobre a concepção geral da literatura e da existência. Imprescindível para quem escreve e para quem lê. De quase vinte títulos que compõem a obra de Sábato, o livro tem a importância de um biblicismo literário.
O romancista, ensaísta, artista plástico e físico argentino Ernesto Sábato faleceu em 2011, dois meses antes de completar um século por aqui. Hoje, agora, seu aniversário de nascimento.
Ler espanta os fantasmas, sempre.

São João, Xangô Menino



Na fé cristã hoje se celebra o nascimento de João Batista, aquele que não somente previu o advento do Messias na pessoa de Jesus, como teve a prerrogativa de batizá-Lo. Pelas Escrituras, Batista nasceu apenas seis meses antes de Cristo.
Juntamente com Antonio e Pedro, João compõe a tríade dos Santos Populares, comemorando a festa neste pandêmico mês de junho, com prudentes fogueirinhas de papel celofane no display 40 polegadas com uma playlist do Spotify.
O título da postagem é da música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, gravada no disco Doces Bárbaros – ao Vivo, 1976.
Os autores, de maneira livre, alegre e criativa, incorporam na letra o imaginário religioso, em combinação sincrética do local à transcendência da religiosidade cristã e o mito africano. Uma saudável manifestação de panteísmo múltiplo, com suas simbologias e expressões culturais.
Acima, reprodução do belíssimo quadro Nascimento de São João Batista, do pintor italiano Tintoretto, 1578. A obra encontra-se no Museu Hermitage, em São Petersburgo.

terça-feira, 23 de junho de 2020

crônica de flores anunciadas

Na crônica Os urubus, de João do Rio, publicada no livro A alma encantadora das ruas, de 1910, o autor narra situações rotineiras e bem específicas de vendedores que ofereciam serviços funerários para enlutados que passavam a caminho do necrotério. O título da crônica, originalmente publicada no jornal Gazeta de Notícias, denomina de forma conotativa a natureza mórbida desses trabalhadores.
Nos parágrafos finais do texto (páginas 83, 84 da edição de 1997, Companhia das Letras), João do Rio disserta sobre o perfil daqueles fâmulos de rua, que mesmo com a frieza de anotar “os nomes e residências das pessoas mortas" na secretaria do necrotério Santa Casa e "só copiarem os que renderiam mais de 100$", que disputavam entre eles vendedores “quem faz o luto em vinte e quatro horas mais em conta”, o autor via que aqueles pobres rapazes “impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito”. “Por que urubus?”, perguntava-se complacente.

João do Rio refletia sobre esses personagens quando, pela primeira vez, depois de saltar do bonde no centro do cidade carioca, teve a visão na mesma perspectiva da localização geográfica, a vizinhança do que seria o céu no desenho ondulante da então Praia de Santa Luzia, e o que se suponha como inferno na paisagem soturna do necrotério ao lado.
Depois de um tempo conversando com um dos vendedores, satisfeito em sua curiosidade de historiógrafo da vida urbana, decide ir embora. Já estava até incomodado. Um dos “urubus” pergunta-lhe se o colega teria “contado coisas a nosso respeito”. João do Rio diz que “não, absolutamente.”
O vendedor o segue oferecendo seus serviços, “Quando quiser uma coroa...”
- Deus queira que não! – diz assustado.
E corre para o bonde que passava, livrando-se do agouro.
Onze anos depois, no dia 23 de junho, o cronista sentiu-se mal dentro de um táxi. Pediu ao motorista que parasse e fosse buscar um copo de água em algum local. Ao voltar encontrou o cronista morto, um infarto fulminante o deixou estirado no banco.
O cortejo de seu funeral foi um dos mais lotados na história do Rio de Janeiro, depois de Getúlio Vargas e Carmen Miranda. Estima-se que 100 mil acompanharam João do Rio até o seu enterro no São João Batista.
A biografia João do Rio: vida, paixão e obra, de João Carlos Rodrigues, 2010, é imprescindível para se conhecer sua história. Morreu precocemente, aos 39 anos, deixou uma vasta obra como escritor, jornalista, teatrólogo e tradutor, foi o primeiro imortal a tomar posse vestido com o característico fardão da Academia, assumiu sua homossexualidade com firmeza e discrição.
Naquele dia 23 muitas coroas foram vendidas pelas aves catartiformes que o escritor eternizou em sua crônica.
Acima, foto publicada no semanário Fon-Fon, 1909.

três maneiras

"Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta" 
- Mário Cesariny, poeta e pintor português.
Falecido em 2004, aos 83 anos, é o maior representante do surrealismo português, com 19 livros publicados. No final da década de 40, depois de estudar na escola de arte Académie de la Grande Chaumière, e de uma convivência com o escritor e teórico André Breton, Cesariny funda o Grupo Surrealista de Lisboa, reunindo os grandes pensadores do movimento em terras lusitanas.
Da década de 50 ao final dos anos 60, durante o regime fascista de Antonio Salazar, e de 1968 à 1974, no governo de Marcello Caetano, uma continuação dos moldes salazaristas, o poeta foi perseguido, humilhado em interrogatórios por suas posições políticas contrárias e por sua assumida homossexualidade.
Nos anos 2000 Mário Cesariny, adoentado, passa a viver na casa da irmã, em um amplo quarto com as paredes repletas de pinturas e livros por todos os lados. Nesse período, o poeta recebia amigos, jornalistas, cineastas, pesquisadores, estudantes, sempre sentado na cama, de chapéu, fumando e desenhando fumaça no ar. O fotógrafo Duarte Belo por vários meses registrou imagens desse universo íntimo, como a foto abaixo, que fez parte da exposição Cesariny – em casas como aquela, referência ao endereço número 6 da Basílio Teles, conhecida rua em Lisboa.
Em 2004, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes (diretor de José e Pilar, 2011), realizou o documentário Autografia, título de um dos mais conhecidos e belos poemas de Cesariny, do livro Pena capital, 1957, que serve de mote para a narrativa das entrevistas, da conversa com o poeta, que inicialmente resistiu à ideia do filme. O resultado é um saudável percurso guiado pelo próprio personagem aos espaços da sua vida, aos labirintos de sua individualidade e à cumplicidade de seu pensamento, como a frase-título desta postagem, quando ele em um momento explica seu jeito de se condicionar a este mundo.
Trocando a conjunção alternativa pela de ligação, Mário Cesariny viveu as três opções: foi um bêbado de poesia apaixonado pela vida.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

a garota da Armênia

Está sendo replicado ad nauseam no Facebook um vídeo da "filha" da atriz Julia Roberts cantando Garota de Ipanema.
Mais uma dessas falsas atribuições das redes sociais.
Na gravação é a cantora armena Arpi Petrosyan. A filha de Julia Roberts, Hazel Moder, tem 16 anos e é loira.

presença de Anita


Ao contrário do que o título possa sugerir, o filme Os homens preferem as loiras”(Gentlemen prefer blondes), dirigido por Howard Hawks em 1953, não coloca as atrizes Marilyn Monroe e Jane Russel nos papéis de duas coristas inimigas, nem concorrentes que disputam a atenção dos homens pelo lusco-fusco da pele de uma em detrimento da pigmentação diáfana de outra.
Rebobinando a fita lá para começo da história:
- a comédia musical de Hawks é baseada num grande sucesso da Broadway de 1949, que por sua vez partiu do romance homônimo da irreverente escritora norte-americana Anita Loos, de 1925. E o livro foi publicado originalmente em capítulos na revista Harper’s Bazaar, onde Loos escrevia regularmente. A escritora, morena, inspirou-se para os relatos, críticos e analíticos, quando uma vez, viajando de trem de Nova York para Los Angeles, uma loiríssima jovem que a acompanhava despertava mais atenção dos homens em cada gesto que fizesse na cabine. O livro se estende e esmiúça o comportamento da sociedade guiada pelos valores do capitalismo. Há um trecho em que a personagem blonde diz: “Acho mesmo que os americanos são os melhores cavalheiros porque se alguém beijar sua mão é muito-muito agradável. Mas uma pulseira de diamantes e safiras é para sempre”.
Anita mais esperta que vingativa publicou na sequência, em 1928, Mas os homens se casam com as morenas, e para ambos deu o sintomático e certeiro subtítulo O revelador diário de uma dama profissional. Assim como primeiro, foi adaptado para o cinema em 1955, por Richard Sale, na continuação do sucesso do anterior, mas sem a mesma repercussão. Com Jane Russell, claro.
Ainda na era do cinema mudo, Os homens preferem as loiras foi levado ao cinema, com direção de Mal St. Clair. Negativos e cópias sumiram, e na história de Hollywood esse filme nunca existiu. Sabe-se lá o que aconteceu, quais os motivos. Ou podemos supor.
Voltando a fita para anos 50 e dando uma pausa:
- Na clássica versão com Monroe e Russell, pode-se imaginar o rebuliço que o livro revelador de Anita Loos e o lendário filme desaparecido causaram nos padrões conservadores da sociedade daquele começo de século. No enredo, enquanto a morena é atraída por homens de boa forma, atléticos, sem maiores exigências econômicas, a loira tem gosto declarado pelos diamantes, e consequentemente por homens que possam lhe favorecer os anseios de um casamento seguro.
Dando um play na fita:
- As atuações de Marilyn Monroe e Jane Russell são pontuações definitivas de perfis dentro da tecedura da história. Mesmo narrado em situações divertidas, com o humor típico das comédias dos anos 50 pós-guerra, o filme faz uma crítica sobre o caráter de seres mesquinhos, somíticos personagens de uma elite asséptica, dá uma sacudida nas posturas desacertadas de uma sociedade torpe, que ludibria os valores humanos.
Apertando o Fast Forward:
- E como preceitua a cartilha da cinematografia industrial hollywoodiana, tudo acaba bem, no clássico happy end: as personagens de Marilyn e Russell têm suas reflexões, o estratégico discurso sobre a objetivação do ser humano, da mulher como mercadoria, produto, artigo etc., etc., etc....
Convertendo o VHS em Blu-ray:
- No filme de Howard Hawks tudo coloridamente emoldurado com a sequência final do duplo casamento, ambas com seus respectivos amados, não deixando nenhuma suspeita de uma classe imperante e machista por trás da cordialidade da espuma de champanhe. Algo bobo e justificativo no subtexto como “os homens preferem loiras e morenas”.
Uma reflexão vintage em 4K:
- A postura transgressora da vida das atrizes Marilyn Monroe e Jane Russell, dentro da máquina hollywoodiana dominante e dopante, tem mais presença e sintonia com a conduta audaciosa da escritora Anita Loos do que com as personagens que interpretaram.

domingo, 21 de junho de 2020

"Os adjetivos passam, e os substantivos ficam"


Durante os anos de 1883 a 1886, Machado de Assis publicou uma série de textos, ditos e aforismos no jornal Gazeta de Notícias. Assinava com o pseudônimo Lélio.
Intitulada Balas de Estalo, a série, com a afinada ironia do grande escritor, refletia com humor a política imperial no final do século XIX, discorrendo sobre o comportamento e as mudanças urbanas, o abolicionismo, os princípios e medidas adotadas para extinguir a escravidão, analisando dessa forma o declínio das principais instituições do país, mais exatamente a monarquia e a igreja.
São frases curtas, cortantes, (como essa do título da postagem), com a inteligência do implacável, eloquente e elegante “bruxo do Cosme Velho”, epíteto cunhado por Carlos Drummond de Andrade no poema a ele dedicado, A um bruxo, com amor, publicado no livro A vida passada a limpo, de 1959, uma afetuosa alusão ao morador da casa número 18 da rua que tem o mesmo nome no bairro carioca.
A historiadora paulista Ana Flávia Cernic Ramos tem mestrado e doutorado sobre a série de textos, respectivamente, Política e Humor nos últimos anos da monarquia: a série Balas de Estalo e As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas Balas de Estalo de Machado de Assis, este publicado em livro em 2016.
181 anos hoje de nascimento de Machado, um substantivo para sempre.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

122 anos na tela

Em 19 de junho de 1898 o italiano Afonso Segreto registra as primeiras imagens em movimento do território brasileiro: a entrada da baía de Guanabara, a bordo do navio francês Brésil.
Comemora-se hoje o Dia do Cinema Brasileiro, apesar dos canalhas da distopia.
Cinema guerreiro contra o dragão da maldade no Brasil em transe.

evoé, jovem artista!

Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, faixa dois do lado A do disco Chico Buarque, de 1978, em dueto com Milton Nascimento, foi composta em 1973, nos últimos anos da ditadura Médici, e tornou-se um clássico da canção de resistência ao regime militar.
As metáforas dos versos que passavam o recado e denúncia de um governo autoritário, repressor, violento em todos os sentidos, vão além da figura de linguagem.
O recurso da citação da Paixão de Cristo, a partir do título, para fazer uma analogia com a repressão que passava o país naquele momento, é de uma preciosidade poética marcante na história da música brasileira. Chico Buarque, além de recorrer ao imaginário bíblico na narrativa sobre o terror que vivíamos, pontua, por exemplo, com citações de lendas como “monstro da lagoa” quando se refere aos corpos “sumidos” que por vezes emergiam de águas de rios.
A análise de toda a letra é longa, é uma canção cheia de lucidez humana e política na grandiosidade lírica de cada verso.
Em 2011 o rapper paulistano Criolo postou em sua conta no YouTube, uma versão de Cálice, aparentemente despretensiosa, mas com necessário e preciso incremento de uma realidade social pulsante nas favelas, na abordagem denunciante do preconceito com nordestinos, negros, pobres... Nesse diálogo entre o original e a releitura “atualizando o aplicativo”, o jovem cantor, que dizia que não existe amor em SP, apresenta-se e diz que “a ditadura segue, meu amigo Milton / a repressão segue, meu amigo Chico / me chamam Criolo e o meu berço é o rap”.
Chico Buarque ouviu, gostou e reverenciou Criolo em um já histórico show naquele mesmo ano, em Belo Horizonte, citando trechos da versão, cantando mais um desdobramento da composição no ritmo discursivo do rap.
Completando hoje 76 anos de idade, o jovem Chico Buarque de todos os tempos.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

a última madrugada

"Cada coisa chegará no tempo próprio, não é por muito ter madrugado que se há de morrer mais cedo. (...) Vivi desde aqui até aqui.
- Fragmento de um parágrafo de Ensaio sobre a cegueira, página 169, de José Saramago, 1995.

Possivelmente o livro do escritor que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro. A obra foi um dos principais motivos para o Nobel de Literatura, em 1998, o primeiro autor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio.
Numa tarde de setembro de 1991 Saramago sofreu um deslocamento da retina, e a aquela dolorosa experiência o acompanhou como uma luz de inspiração. Dias depois, enquanto aguardava o almoço no restaurante Varina da Madragoa, no centro de Lisboa, o escritor “como sempre, pensava em coisas vagas. De repente, surgiu-me o título ‘Ensaio sobre a cegueira’...”, disse em entrevista ao Jornal Lusitano, na edição de 27 de novembro de 1995.
O diário registra também o trecho de seu discurso de apresentação na noite do lançamento. Saramago afirmou que “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
Esse desejo do autor é uma consequência inevitável que a narrativa provoca, pelo incômodo e reflexão, a abstinência moral humana, a urgência de resgatar o afeto diante do caos e escuridão.
Adaptado para o cinema em 2008, por Fernando Meirelles, o romance distópico é a atualíssima imagem aterradora destes tempos sombrios.
Na foto de Pedro Walter, o escritor na ilha espanhola Lanzarote, onde viveu até madrugar em 18 de junho de 2010, aos 87 anos.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

lá fora dentro de nós

Entre a sala e a janela, entre a lembrança e a vontade, entre o que foi e o que seremos, a arte nos guarda, nos resguarda e nos aguarda depois que tudo isso passar.
A canção abolerando um xote Vontade de tu, do cantor e compositor cearense Orlângelo Leal, expressa esse sentimento. Do sertão serrano e praiano de sua Itapipoca, ele lança o clipe feito com a beleza da simplicidade das coisas, com a cumplicidade afetiva do desejo e esperança das imagens captadas por Joélia Braga, com o desenho da coreografia de suave erotismo lírico de Rafaela Lima.
Outros cúmplices dessas vontades: Yago Fernando (arranjos, sintetizador, programações eletrônicas e baixo), Alan Kardec Filho (bandolim), Netinho Sá (mixagem e masterização), Letícia dos Passos (arte).
Vontade de sempre ouvir mais.

terça-feira, 16 de junho de 2020

o outro lado da montanha

foto ilustrativa de Christian Coiny
"Há uma forma de literatura em que o 'eu' não existe. Onde estamos mergulhados no desconhecido, do outro lado da montanha. Gostaríamos de poder voltar para casa e dizer 'eu'. Ou mesmo 'nós', porque uma mulher espera lá, por nós. Vamos chamá-la de Penélope.

A viagem é longa, talvez sem fim, continuamente perigosa. Cruzamos com todos os tipos de criaturas. Inclusive sereias.

Vocês reconheceram Ulisses e a Odisseia? Para voltar para casa Ulisses navega de ilha para ilha, em um mundo perigoso e incerto.

O preceito de James Joyce para escrever com sucesso foi: 'silêncio', 'exílio' e 'astúcia'.

- E o amor, onde fica? – pergunta um aluno.

- O amor não tinha sido inventado ainda."

Trecho de Incidences, 2010, romance de Phillppe Djian, através do personagem Marc, professor de Literatura.

Ulisses, de 1922, é reconhecidamente a obra mais importante do irlandês James Joyce. Sua literatura se estende no princípio do modernismo poético. O romance, ambientado em 1904, faz uma série de analogias, através de 18 episódios, do personagem Leopold Bloom ao narrar durante 19 horas seguidas acontecimentos de sua vida, com o personagem Ulisses do clássico poema épico de Ilíada e Odisseia, de Homero, século 8 a.C.

A menção dos dois autores de séculos tão distantes no livro do contemporâneo escritor francês Phillippe Djian, é interessante pela contextualização que faz do fluxo de consciência dos personagens, a concepção de múltiplos aspectos do ser humano, a força e a fraqueza de toda a humanidade. Leopold Bloom é o Ulisses moderno, herói e covarde, prudente e impetuoso.

No livro de Joyce, Bloom faz seus relatos no dia 16 de junho. Por conta disso é comemorado hoje na Irlanda o Bloomsday. Amantes da literatura promovem diversos eventos em Dublin, muitos caracterizados com as roupas do personagem, em desfile pelas ruas, encontros nas livrarias e clubes de leituras.

Essa curiosa celebração a um personagem da literatura acontece desde os anos 50, embora alguns estudiosos afirmem que iniciou após a morte de Joyce, em 1941, ou até bem antes, logo depois da publicação do livro.

Pelas limitações causadas pela pandemia, é a primeira vez que as homenagens estão canceladas. Provavelmente farão em Lives, não sei, para não deixar Leopold Bloom em exílio do outro lado da montanha. O amor precisa sempre ser reinventado.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

trajetória de uma dama

No começo dos anos 1920, a pequena Ella Jane, de três anos, vivia em um lar conturbado, em Newport News, Virginia. O pai sumiu com a amante e deixou a filha chorando com a mãe, que se mudou para Nova York atrás de trabalho. Na grande cidade, a menina ganhou um padrasto, um imigrante português que se apaixonou pela mãe. Logo ganhou também uma irmã. Quando tudo parecia se configurar uma constelação familiar, o novo pai se revelou um cretino, humilhando e batendo na esposa.
Aos quinze anos Jane perdeu a mãe, morta por um infarto. O que já estava ruim, piorou: desempenho baixo das meninas na escola, preconceito por serem negras e agressões em casa. Ainda menor de idade, Ella Jane foi estuprada pelo padastro. Pegou a irmã, fugiu para a casa de uma tia e denunciou o crime. Com o pai preso, as meninas ficaram sob os cuidados da tia que as tratava como empregadas. Por conta das brigas constantes, Ella foi colocada num colégio interno, de onde fugiu e se tornou moradora de rua.
Numa tarde quando pedia esmola na porta de um bar, Ella Jane conseguiu um emprego de vigia. Na verdade, o local era bordel e cassino, e seu trabalho era de informante: as atividades ilegais eram controladas pela máfia novaiorquina, e a garota ficava de olho quando a polícia se aproximava. Não durou muito e uma batida fechou o estabelecimento, Ella foi descoberta como menor de idade e encaminhada para um reformatório, de onde fugiu e voltou a viver nas ruas.
Para ganhar uns trocados, cantava e sapateava nas calçadas. Alguns restaurantes permitiam que se apresentasse em frente, o que atraía fregueses pelo fascínio que a garota despertava. Em troca ofereciam comida e dormida nos fundos do comércio. Ella sentia-se gratificada, tinha um local para descansar à noite. Mas novamente foi flagrada pelos policiais na rua e levada a um asilo de órfãos no Bronx, onde viveu por dois anos.
Tinha 17 anos quando saiu e foi atrás de uma professora de piano que conhecera num daqueles restaurantes. Queria ser cantora e dançarina. A professora a acolheu, deu-lhe aulas e um quarto, e vendo o talento tão precoce, a inscreveu num concurso de cantoras amadoras num teatro no Harlem. Ella ganhou e começou a conseguir trabalhos em apresentações de dança e canto.
Tempos depois, com a vida se organizando, pagou uns detetives e reencontrou sua irmã. Soube também que o padrasto morrera na prisão.
Em meados dos anos 30, a cantora tinha várias composições, alguns shows, e já se firmava com o nome artístico de Ella Fitzgerald. Cantando e encantando a todos com sua voz de meio-soprano, dominando o swing do jazz, do blues e soul, apresentou-se daquela década em diante com Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Count Basie, Joe Pass, Oscar Peterson, Ellis Larkins, e tantos outros monstros.
Paralelamente a sua consagrada carreira artística, Ella Fitzgerald viu a vida pessoal repetir o sofrimento da mãe. No seu primeiro casamento, o marido, que lhe batia, foi descoberto como traficante. Ella divorciou-se com ele na prisão. No segundo matrimônio, com o baixista Ray Brown, não conseguia engravidar e passou a criar a filhinha da irmã, que morava ainda com a tia. Quando esta morreu, a irmã, temendo se tornar tia da própria filha, pegou a criança de volta. Ella consegue engravidar, mas separa-se poucos anos depois.
No final dos anos 50, conhece um belo e misterioso norueguês. Apaixonam-se e casam-se em segredo, evitando manchetes de jornais. E fez bem! Em poucos meses, ainda em clima de lua-de-mel, Ella Fitzgerald descobriu que o rapaz aprontou na Suécia, esteve preso por ter roubado tudo de uma garota com quem se envolvera. Já com um bom patrimônio e nome na galeria do jazz, Ella Fitzgerald deu um tranco no esbelto viking saqueador de dotes. O dinheiro dela, não! Divorciada, dedicou-se cada vez mais a cantar, cantar, cantar, e namorar. A carreira solo em todos os sentidos.
Nos anos 80, Ella Fitzgerald teve um infarto, colocou marcapasso, e a saúde ficou agravada por diabetes. Com a visão comprometida, diminuiu o número de shows, e em 1993 teve as duas pernas amputadas. Afundou na depressão e passou a ser cuidada por enfermeiras. Recebia nos fins de semana a visita da irmã e da sobrinha que a chamava de “mãezinha”. Três anos depois, na madrugada de 15 de junho, faleceu enquanto dormia, aos 79.
Uma vez, numa entrevista, perguntaram a Ella sobre sua trajetória, como foi sua vida, como chegou a ser a grande cantora que lotava teatros.
- Desculpe-me, não tenho palavras. Talvez se eu cantar, você entenda – respondeu, disfarçando uma lágrima.
Ouvindo suas canções e também lendo a biografia Ella Fitzgerald - a primeira dama do jazz, de Geoffrey Mark Fidelman, 2001, entendemos tudo que passou e não tinha palavras para dizer.
Acima, a elegância da cantora fotografada por Phil Stern em um hotel em Nova York, década de 50.

domingo, 14 de junho de 2020

dois lados da mesma viagem

Em novembro de 2010 o cineasta Carlos Reinchebach foi homenageado no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Na noite de abertura foi exibido seu primeiro longa-metragem, em cópia restaurada, Lilian M: Confissões Amorosas (Relatório Confidencial).
Rodado em 1974, durante o governo Geisel, o filme foi considerado subversivo pelos censores e teve 20 minutos de cenas cortadas. Com uma narrativa não linear em flashback, o enredo gira em torno de uma mulher que muda de identidade e parte em busca de sua liberação sexual.
Antes da apresentação no Teatro Nacional Cláudio Santoro, Reinchebach deu uma rápida entrevista ao jornalista Fábio Tito, do portal G1, e uma das perguntas foi sobre seu problema de saúde, acometido por catarata nuclear, que o impedia de ficar por muito tempo dentro de uma sala de cinema. É um horror!, disse Carlão.
- Existem planos de se aposentar? – perguntou o repórter.
Carlão expressou um “não” em silêncio, olhou mais fixamente para o jornalista através de suas enormes lentes e sentenciou: “Vou até morrer filmando! Seria a morte ideal, né? Morrer trabalhando!”
Reichebach faleceu dois anos depois, não pelo problema nos olhos, mas de parada cardiorrespiratória, curiosamente no mesmo 14 de junho quando chegou a este mundão em 1945.
Na foto acima seu último trabalho, em Avanti Popolo, de Michael Wahrmann, finalizado cinco meses depois de sua partida.
O cineasta deixou os sets de vez não filmando, mas à frente das câmeras, como ator, interpretando um pai que há 30 anos espera o filho desaparecido pela ditadura militar.

enredo de uma cidade partida

Em 1996 o grande letrista da música brasileira Paulo César Pinheiro escreveu O dia em que o morro descer e não for carnaval, musicada e gravada pelo saudoso Wilson das Neves, falecido em 2017 aos 81 anos.
No vídeo abaixo, trecho do programa Samba na Gamboa, TV Brasil, 14/06/2015, dirigido por Belisário França, apresentação de Diogo Nogueira. O encontro de duas gerações, que se espelham e reverberam o talento de nossa música em todos os gêneros: das Neves, que hoje faria 84 anos, e o rapper Emicida, dividindo na mesma cadência o compasso do samba e do coração, dissecando a geografia da letra que alerta para o dia em que o morro descer e não for carnaval.
Melhor é o poder devolver a esse povo a alegria, lembra.

sábado, 13 de junho de 2020

Pessoa sem fingimento

O poeta Fernando Pessoa levantava-se diariamente de sua mesa de trabalho na Editora Olisipo, pegava o chapéu, ajeitava os óculos e seguia em passos cadenciados até o Abel, tradicional casa comercial produtora e distribuidora das melhores bebidas à margem do rio Tejo. Lá tomava lentamente um cálice de aguardente e saía pelas ruas de sua Lisboa. Esse hábito Pessoa manteve por um longo tempo em seus curtos e intensos 47 anos de vida.
Em uma dessas tardes de bebericar seu veneno antimonotonia, em 1929, o poeta pediu que lhe fizesse uma foto saboreando a bebida. Dias depois pegou uma cópia, escreveu atrás a dedicatória "Fernando Pessoa em flagrante 'delitro'" e enviou para sua amada Ophelia Queiroz, com quem reatara depois de nove anos de rompimento e muitos poemas e muitas cartas ridículas - ou não seriam cartas de amor, preconizava. Mas o namoro com o ainda donzelo e múltiplo poeta terminou novamente em 1931. As caminhadas ao Abel continuaram, claro.
A moça, professora de Instrução (algo como o Primário), ficou na história como o único amor do reservado Fernando Pessoa, ou de seus heterônimos - ela já não sabia mais quem namorava. O poeta não fingia, seu coração, sabia, um comboio que gira, mas não entretinha sua razão e nunca frequentou a casa de Ophelia, resistia a conhecer a família. Como bem observou o ensaísta moçambicano José Gil, Pessoa revelou incapacidade de amar Ophelia à maneira de Ophelia, de aceitar a máscara correspondente a um homem “comum”. Pois é, lembremos que em Lisbon Revisited, poema de 1925, o poeta já questionava, na pele de Álvaro de Campos, também sem fingimentos, o que deveras sentia: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?” Nem a Ofélia de Shakespeare, em Hamlet, aguentaria essas esquisitices de poeta.
No final de 1935 Fernando Pessoa é internado diagnosticado com cólica hepática e falece. Um ano antes publicara Mensagem, o derradeiro livro onde no poema Mar português leem-se os conhecidos versos-espólio: “Quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? / Tudo vale a pena / se a alma não é pequena.”
132 anos hoje de nascimento de uma alma que vale a pena na literatura.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

ciudad porteña de mi unico querer

A música
"Mi Buenos Aires querido / cuando yo te vuelva a ver / no habrá más penas ni olvido..."
- Versos de Mi Buenos Aires querido, clássico tango escrito por Alfredo Le Pera em 1934, musicado e imortalizado por Carlos Gardel, assim como outra emblemática composição, El día que me quieras.
A letra fala sobre a formosura da capital portenha, que hoje comemora 440 anos de fundação. A canção com narrativa bela e dolente do tango, na queixa de um bandoneon, compara a cidade ao amor, e retornar a ela é a forma de se livrar das dores, da nostalgia, o "te extraño" - o termo saudade.
O autor
O compositor do tango de enorme significado afetivo para os argentinos é brasileiro de nascimento. Em 1900 seus pais, italianos, viajavam pela América do Sul com intenções de morarem em Buenos Aires. Em passagem por São Paulo, a mãe com um barrigão de nove meses deu à luz um niño, em pleno bairro Bixiga, que se tornaria tradicional reduto do samba paulistano. A família Le Pera seguiu viagem para Uruguai com o bebê de dois anos, e de lá para Argentina. Alfredo morreu jovem, aos 35 anos. Estava no avião que caiu em Medellin, Colômbia, juntamente com seu grande amigo e parceiro Gardel.
A estampa
As icônicas estampas sobre Buenos Aires têm a assinatura do pintor Martiniano Arce, expoente do estilo filetagem, surgido ali pelo final do século 19, e que se caracteriza como uma pintura muito além do que apressadamente se possa definir como decorativa, como apenas um ‘recuerdo’ que os turistas compram na Caminito Parrilla. As fortes cores, os desenhos em espirais, os ângulos simétricos, as sombras tridimensionais, dão às peças uma originalidade historicamente portenha, expressam elementos emocionais e filosóficos dos imigrantes europeus, trazem os traços góticos e a herança crioula da colonização europeia.
O pintor
Martiniano Arce com seu trabalho traduz com propriedade essa arte pictórica do povo argentino, incluindo no repertório das estampas, os animais, as flores, a música, os artistas e até frases poéticas, aforismos humorísticos, referências que se viam nas carroças dos imigrados, nas laterais dos primeiros ônibus e veículos de transportes - detalhes que vemos também nos para-choques dos caminhões nas estradas brasileiras. Em 2015 a UNESCO declarou a filetagem Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Martiniano é tão querido pelos compatriotas por ter se dedicado a essa arte característica dos portenhos, que um de seus trabalhos é capa do disco Fabulosos Calavera, 1998, da banda de rock Los Fabulosos Cadillacs, criou a garrafa estilizada de Coca-Cola de dois metros de altura para as Olimpíadas de 1996 em Atlanta, é personagem do tango Don Martiniano, de Hamlet Lima Quintana e Emilio de la Peña, e La milonga pa’ Martiniano, de Oscar Sbarra Mitre, e tantas outras homenagens e distinções, como Ciudadano Ilustre de Buenos Aires, Huésped de Honor em Bariloche, além de murais em paróquias, exposições por todo o país e no exterior.
O pintor publicou dois livros que registram sua história, Palabras sobre ruedas, 1994, onde compila as frases nos caminhões e ônibus de Buenos Aires, em El Arte del Filete, 2006, que reproduz 140 de seus trabalhos.
Aos 80 anos, Martiniano Arce, na sua lucidez e prudência, celebra quieto em sua casa em San Telmo, o aniversário de sua Buenos Aires querida.