“Resolvemos dar início – de fato – ao projeto em 2013, um pouco
antes das manifestações de junho. E a peça estreia agora neste estranho
2015, ano no qual uma onda conservadora assola o país e a mídia, a ponto
de vermos pessoas indo pras ruas de uma maneira leviana e estapafúrdia
pedindo a volta da ditadura militar.”
O texto é do diretor de
teatro Felipe Vidal, nas primeiras páginas do catálogo da peça musical Contra o vento (um musicaos), concebida por ele e Daniela Pereira de
Carvalho. Durante dez anos, de 2003 a 2013, eles pensaram a ideia de
revisitar o lendário Solar da Fossa, um casarão no bairro carioca de
Botafogo, que de 1964 a 1971 abrigou boa parte de grandes da cultura
brasileira.
A música, o teatro, do cinema, a literatura, o
Tropicalismo, a ressonância do movimento antropofágico de Oswald de
Andrade, tudo que se configurava nos agitados anos 60 como resistência
pensante contra o conservadorismo e a Ditadura Militar. Resistência
pautada, sobretudo, pela alegria, pelo deboche, mas focado em mudanças.
Eram jovens que amavam e seguiam outros jovens que amavam e seguiam
Engels, Marx, Marcuse, Glauber, José Celso Martinez... Jovens que amavam
a Bossa Nova, e também os Beatles e os Rolling Stones.
A lista
dos moradores do Solar, à época não tão ilustres, é extensa: Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Paulinho da Viola, Tim Maia, Paulo
Coelho, Torquato Neto, Betty Farias, Darlene Glória, Tânia Scher,
Paulinho da Viola, Zé Keti, Abel Silva, Maria Glayds, Naná Vasconcelos,
Claudio Marzo, Ruy Castro, e muitos, muitos inquietos e criativos
artistas, que viviam no aconchego comunitário de estudantes, bancários,
prostitutas, travestis... Os que lá não moravam, lá passavam horas e
dias com a turma de pensamento pulsante.
Obras-primas do nosso
cancioneiro foram compostas naquele templo de brio e pertinácia, como Sinal fechado, de Paulinho da Viola, que pousou ao lado de um dos
portais do Solar para a capa do seu terceiro disco, de 1971. Caetano
compôs a emblemática Alegria, Alegria no seu quarto de pensão. Os
intermináveis oito anos que Leminski se dedicou ao seu alucinado livro
de prosa experimental, Catatau, foi dada a largada dos rascunhos entre
as paredes e corredores do casarão. Chico Buarque e Marieta Severo se
conheceram em uma das festas malucas nos jardins da colonial hospedaria.
E muitas outras histórias que foram impressas por não serem lendas.
Contra o vento (um musical), foi criado de forma primorosa a partir
de entrevistas dos remanescentes, de reportagens, das referências que
constam no livro Solar da Fossa, de Toninho Vaz, uma espécie de
“biografia” do corpo e alma do casarão, lançada em 2011.
A peça
tem o mérito de “revisitar” o passado sem o ranço deprê da nostalgia.
Tendo como fio condutor da narrativa um suposto diário incompleto de uma
moradora, encontrado nos escombros da demolição, em 1972, o musical une
de forma cuidadosa a memória, a reflexão, e usa o divertimento, a
alegria da dança e da música, como corpo que se formata no palco para
expor o cerne dos personagens com suas histórias, que é parte desse
latifúndio na história do país.
A concepção cênica de Felipe
Vidal e Daniela Pereira se passa no Agora. Eles na verdade trazem o
passado para o presente, e não uma simples “revisita” à casa da velha
senhora no bairro de Botafogo, hoje um mostrengo de shopping, essa
arquitetura robotizada em série mundo afora nas capitais. Há uma cena na
peça que traduz de forma inventiva e poética a conjunção de dois
personagens do passado no presente, a conjugação dos dois tempos e dois
espaços em um mesmo momento dramático, como “deja vu” e como uma visão
futura. O musical se passa no final dos anos 60 sem se deslocar do palco
presente. Tem-se a visão de retrovisor, mas há o painel na frente
mostrando o Agora. Esse é o grande barato do musical!
A “onda
conservadora” a que se refere o diretor da peça no texto acima, e que
“assola o país e a mídia”, é uma consideração pertinente no espetáculo. O
espaço físico do Solar da Fossa está situado no espírito e percurso do
país. E o espírito do Solar vem até este “estranho 2015” incidir sobre
um nacionalismo equivocado, que joga na vala comum do desdém duas
décadas de arbitrariedades, de prisões, de torturas, de mortes, de
"suicídios", de corpos sumidos jogados ao mar, de pais que não tiveram
seus filhos de volta, de filhos que não conhecem seus pais.
Dividida em três blocos narrativos, com 13 atores em afinadíssimas
atuações, duração final de duas horas, o musiCaos Contra o vento
montado pelo grupo carioca Complexo Duplo, encerrou temporada de um mês
em Brasília, com apresentações do dia 6 a 30 de agosto, no CCBB.
Sala lotada, ingressos esgotados. A repercussão da peça reverberou
pela alegria e sua clarividência, pelo riso que não está apartado nem
alienado da sensatez, pela música que exalta os tempos e seus
personagens, pelo teatro que com sua arte do efêmero no agora do palco,
celebra o eterno. Pela Arte que nos “desobriga” de simplificar a vida.
E por falar nisso, viva Cacilda Becker!
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