domingo, 31 de dezembro de 2023

a festa é sua

 


Foto: Guilherme Samora, 2016

Rita Lee, com sua graça e irreverência características, dizia que nascer no dia 31 de dezembro “é sacanagem”, pois levava um ano inteiro literalmente nas costas para no dia do aniversário ficar ouvindo logo cedo “Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier”. Para compensar se consolava repetindo o ditado “Os últimos serão os primeiros”. Consolo que logo se desfazia quando um primo chato dizia: “Sim, os primeiros a chegar por último!”.
Um dos seus maiores desejos quando criança era se encontrar com Peter Pan. Queria que o rapazinho que se recusava a crescer viesse lhe buscar, assumi-la e sumirem, tirá-la daquela vidinha sossegada ainda nada mutante.
E eis que em uma noite, do terraço do casarão onde morava em São Paulo, a ovelhinha negrinha da família avistou Peter no céu! A menina gritava eufórica. O pai apareceu esbaforido, preocupado:
- Rita, o que está acontecendo?
- Peter Pan! Peter Pan! Eu vi o Peter Pan!
- Onde?
- Logo ali no céu, pai!
- Me conta como era.
- Três luzinhas.
- Ok. De que cor?
- Coloridas.
- O que elas faziam?
- Uma dancinha.
- Ok. Como era essa dancinha?
- Mudavam de lugar uma com a outra.
- O que aconteceu depois?
- Sumiram de repente. Juro que eu vi, pai. Não é mentira!
- Rita, eu acredito em você e vou lhe contar uma verdade: Papai Noel, coelho da Páscoa, Deus e o diabo, céu e inferno, essas bobagens não existem, quem compra os presentes é sua mãe. O que você viu não foi o Peter Pan. Você viu um disco voador, minha filha!
Hoje seriam 76 dezembros. Mas lá dos céus do seu terraço, nos discos voadores piscam as três luzinhas coloridas com seu Peter Pan.

sábado, 30 de dezembro de 2023

aquela estrela é a dele



Em 2007 eu estava no Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, viajando para Brasília. Quando subia a escada rolante para a sala de embarque, ouvi um grito da escada que descia:

- Nirton Venancio!
- Augusto! – Saudei, levantando também o braço, espalmando a mão.
De imediato fiz sinal que ia ao seu encontro. Augusto Pontes, jornalista, publicitário, letrista, foi o grande pensador e articulador da cultura cearense. O que se conhece como Pessoal do Ceará, muito a ele devemos.
Acelerei os últimos degraus e peguei a escada descendo. Ele me esperava embaixo com um sorriso por trás da barbicha. Demos um abraço caloroso e antes que começasse a conversar e perguntar – como sempre fazia, com curiosidade afetuosa sobre a vida dos amigos -, disse-lhe que não poderia perder aquela oportunidade para lembrar de um fato análogo, simétrico no tempo.
Conta o professor Frederico Lustosa da Costa que uma vez, em companhia de Augusto, do jornalista Paulo Linhares e do publicitário Fernando Costa, foram almoçar no Shopping Iguatemi, em Fortaleza. Ao terminarem, quando desciam a escada, do outro lado o então senador Tasso Jereissati com a esposa.
- Com vão, turma boa? – Cumprimentou o político.
- Como sempre, senador. O senhor subindo, a gente descendo – respondeu Augusto, com sua admirável rapidez de tornar uma casual fala em aforismo, axioma, dito espirituoso.
Comentei então que não cairia no descuido de fazer mesmo. “Até porque você sempre descendo também como eu”, disse-me, com uma gargalhada.
Conversamos por alguns minutos tolerantes para o meu horário de embarque. Abraçamo-nos outra vez, ele desejou boa viagem completando com “volte pra cá, precisamos de você”, sabendo que eu estava morando em Brasília.
Lá do alto olhei rapidamente para ele. Com seu andar quixotesco, brilhava feito vida, vento e vela no mar de transeuntes que chegavam e partiam.
Foi a última vez que o vi.
Hoje 88 anos de nascimento do amigo genial de muitos.
Acima, fotograma do documentário Vivência #1 – Augusto Pontes, de Felipe Barroso, 2009.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

ainda sou uma garotinha


Em 1999, o baterista João Barone, do Paralamas do Sucesso, idealizou e organizou o projeto Submarino Verde e Amarelo, para arrecadar fundos para a Associação dos Amigos do Instituto Nacional do Câncer – AMINCA.
O show, realizado em 14 de julho, no Teatro da Lagoa, Rio de Janeiro, reuniu várias cantoras e cantores brasileiros interpretando canções emblemáticas dos Beatles: Zélia Duncan, Flávio Venturini, Zizi Possi, Beto Guedes, Zé Ramalho, Fernanda Takai, Frejat, Samuel Rosa... A participação de Cássia Eller foi um dos destaques. A eterna garotinha cantou Golden slumbers, Carry that weight e The end, as três penúltimas faixas (a última é Her Majesty) do lado B do álbum Abbey Road, que em setembro daquele ano comemorou três décadas do lançamento.
Acompanhando Cássia, Barone, Vinícius Sá no baixo, Marçalzinho na percussão, Luizinho Avellar no piano, Cyro Telles nos teclados, Fernando Vidal na guitarra, Filipe Freire no violão e guitarra e Cecília Spyer, Suzana Bello e Matias Corrêa nos vocais. O evento foi lançado em CD e DVD em 2000.
22 anos hoje que Cássia não morreu. 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

a voz das palavras


Foto: Edward Kaprov, 2015

Acusado de “traidor” por Israel, o escritor Amós Oz mantinha-se contra invadir territórios e bombardear civis em nome do que o país chama de “seu Deus”. Dizia que sua qualificação para discutir política era ter ouvido para as palavras, e que “ergo minha voz e grito sempre para combater uma linguagem corrompida.” Foi um dos criadores do Movimento Paz Agora, em que advogava pela solução de dois estados, Israelense-Palestino.

Seus livros são apaixonantes, como os de ensaios sobre questões políticas, In the land of Israel (1986) e Israel, Palestine and peace: Essays (1995); os romances A caixa preta (1987), Pantera no porão (1999), o último, de 2014, Judas, onde através do amor entre um jovem estudante e uma bela e misteriosa garota, questiona as guerras e a fundação de Israel.
Na autobiografia Um conto de amor e trevas (2003), em mais de 600 páginas 120 anos de memória de sua família, com suas dores, vitórias e paradoxos que se alinham à turbulenta história de seu país. Considero a que tem a densidade mais definida e reflexiva de toda sua obra. Em 2005 a atriz Natalie Portman estreou na direção com De amor e trevas, adaptando e admiravelmente surpreendendo com imagens a literalidade narrativa do compromisso do autor com as palavras. Livro e filme traduzem bem o sobrenome que o escritor adotou (ao deixar o de batismo, Klausner): força e coragem, o significado de Oz em hebraico.
Amós faleceu na manhã de 28 de dezembro de 2018, aos 79 anos. Enfrentava outra luta, contra um câncer.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

salve a batina do bispo Tutu


Foto: Hassan Ammar / AP

Na festa de abertura da Copa do Mundo de 2010, em Johanesburgo, o que surpreendeu e superou todas as apresentações foi o discurso do arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu, Nobel da Paz em 1984. "Bem-vindos ao solo sagrado da África do Sul!", saudou, vestido com a camisa da seleção da casa e um cachecol dos Bafana Bafana.

Desmond foi o primeiro negro a ocupar o cargo de arcebispo da Cidade do Cabo, e também o Primaz de sua igreja por dez anos, a partir de 1986. Junto com Nelson Mandela, foi uma das figuras centrais do movimento contra o Apartheid, liderando protestos em locais públicos contra o governo. Soube muito bem vestir-se com indumentárias de altas posições no clero para lutar contra a segregação racial em seu país e no mundo.
Dizia que a fé e compreensão bíblica sem trabalho e coragem é uma crença morta. Nas últimas décadas Desmond Tutu assumiu abertamente pautas atuais e falava sobre a ocupação do território palestino por Israel, os direitos da população LGBTQIA+, as mudanças climáticas e tantos outros temas urgentes.
Desmond Tutu faleceu na manhã de 26 de dezembro de 2021, aos 90 anos, depois de um longo tratamento contra câncer na próstata.
Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã / zelai por nossa negra flor pagã / salve a batina do bispo Tutu”, como louvava Gilberto Gil em Oração pela libertação da África do Sul, disco Dia Dorim Noite Neon, 1985. 

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

o espírito natalino de Fellini

Foto: Paul Ronald

“Acredito em Jesus: que ele não é apenas o maior personagem da humanidade, mas que continua a sobreviver no ser que se sacrifica por seu próximo. Sou ignorante a respeito dos dogmas católicos. Talvez seja herético. Meu cristianismo é bruto. Não pratico os sacramentos, mas penso que a prece poderia ser considerada como uma ginástica que nos levaria cada vez mais perto do sobrenatural.”
- Federico Fellini em sua biografia Fellini por Fellini (L&PM Editores, 1983).
Acima, Marcello Mastroianni em uma cena de Oito e meio (8½), 1963. O ator interpreta um diretor de cinema em crise, Guido Alsemi, sem inspiração para o próximo filme, pressionado pelo produtor, esposa, amigos e quem olhar para ele.
Misturando ficção com realidade, passado com presente, o que foi com o que poderia ter sido, Fellini usa o exercício de metalinguagem para contar o que ele mesmo estava passando naquele momento, depois de ter dirigido apenas um episódio no longa “Boccaccio 70”, após a pulsação criativa de La dolce vita, de 1960. Alsemi é alter ego de Fellini.
Na cena o cineasta-personagem, como Noel vindo de uma atmosfera onírica típica de seus filmes, chega a sua casa trazendo presentes e pingos de neve sobre a roupa. Em seu “cristianismo bruto”, o simbolismo é uma prece que o leva cada vez mais perto do Jesus que acredita.



 

domingo, 24 de dezembro de 2023

e o que você fez?



Em 1971 John Lennon lançou Happy Xmas (War is over) como single do grupo conceitual de rock e de avant-garde formado por ele e Yoko Ono, em 1969, antes da dissolução dos Beatles.
Com a participação do coral de crianças do Harlem, é uma canção de protesto contra a guerra do Vietnã, e usa o Natal como uma representação de final de ano, quando todos se mostram alegres e cordatos (o tal "espírito natalino"!), mas fica a pergunta que não quer calar em um dos versos, "and what have you done?".
Formata-se o aspecto comercial, molda-se um adestramento religioso, mas não a essência da mensagem de resistência pacífica daquele Cristianismo com o qual John, mesmo sendo ateu, se identificava.
O sucesso da música, juntamente com Give peace a chance (1969), fez com que Richard Nixon articulasse com o senador Strom Thurmond a deportação de Lennon. O presidente republicano considerava que as manifestações antiguerra do ativista poderiam lhe custar a reeleição, e o banimento seria uma contramedida estratégica. O Serviço de Imigração entrou com o processo, alegando porte de maconha de Lennon três anos antes, em Londres, o que o tornava “persona non grata” nos Estados Unidos. A insustentável argumentação se estendeu em audiências até 1975, quando o tribunal barrou o caso, um ano depois de Nixon renunciar ao cargo com o escândalo Watergate.
Em 1995 Simone gravou o CD 25 de dezembro, doze faixas com temas natalinos. É um disco com clássicos como White Christmas, de Irvin Berlin, e Silent Nights, de F. Gruber, respectivamente Natal branco e Noite feliz, além de Jesus Cristo, de Roberto e Erasmo Carlos, e Boas Festas, do grande Assis Valente. O título do álbum, além de reverenciar o homenageado que nasceu há mais de dois mil anos, a cada dezembro é um presente da cantora para ela mesma: amanhã completará 74 anos.
E o que ficaria mesmo marcada desse repertório é a indefectível versão de Happy xamas/Was is over, por Cláudio Rabello, rebatizada com o primeiro verso do original, Então é Natal, trilha sonora ad nauseam de supermercados e shoppings com presépios piscando lampadinhas LED.

sábado, 23 de dezembro de 2023

em Minas com o poeta


Em 23 de dezembro 2012 eu estava em Araxá, interior de Minas Gerais, quando li a notícia da morte do poeta alagoano Lêdo Ivo, aos 88 anos. Ousei um trocadilho infame desejando que fosse um ledo engano. E saí para andar e fotografar pelo verde da Estância do Barreiro, nas redondezas do Grande Hotel Termas.

Na caminhada silenciosa pela mata me deparei com as ruínas do Hotel Rádio. Na década de 1930 o prédio sofreu um incêndio. Consta que uma hóspede, em lua de mel, depois de encontrar o marido com a camareira, indignada e enfurecida, suicidou-se tocando fogo no quarto. Com a repercussão negativa, o hotel perdeu clientela e encerrou as atividades. O local voltou tempos depois como uma clínica de reabilitação e em 1960 definitivamente abandonado.
A vegetação tomou conta de todo o hotel. Raízes e troncos serpenteando nos corredores, alcançando as paredes, ocupando os quartos. Passei pela recepção, subi sob riscos para achar o local onde o fogo começara. O silêncio do tempo em volume reflexivo. Desci e fiquei a admirar e fotografar a estranha beleza mumificada em verde que se renovava no orvalho de cada manhã.
Numa holografia da imaginação, vi os hóspedes que chegavam e saíam; o porteiro sorridente que dava passagem; o rapaz atencioso que carregava malas; o marido adúltero com o olhar oblíquo; a camareira enaltecida que disfarçava; a esposa traída riscando o fósforo.
Depois de fotografar alguns ângulos das ruínas, lembrei de um poema-prosa de Lêdo Ivo, A escada, publicado no livro Mar Oceano. Os versos analógicos tracejavam na minha cabeça como legenda para a foto digital. De volta ao quarto no Termas, procurei na Internet o poema. Cabia como epígrafe para minha visita ao fogo passional do passado, aos cômodos retorcidos do presente:
“Desde o início aboli a possibilidade de estar sendo conduzido para o Inferno ou o Paraíso, essas fictícias paragens finais que, não pertencendo à geografia terrestre, não se incluem entre os sítios prometidos aos meus passos futuros.”
Lêdo Ivo me acompanhou naquele dia. E não foi engano.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Joe e a tempestade

 


No começo de 1969 o cantor e compositor Joe Cocker e sua The Grease Band viajaram da Inglaterra para os Estados Unidos para divulgar o primeiro disco lançado. Com a repercussão nos circuitos de pequenos festivais, de imediato o produtor Artie Kornfeld o convidou para o Woodstock Music & Art Fair, de 15 a 18 de agosto daquele ano, na região de uma distante e extensa fazenda de gado leiteiro, na cidade de Bethel, estado de Nova York.
Agendou a apresentação de Cocker para o último dia, um domingo, abrindo a programação, que fecharia com Jimi Hendrix, o maior cachê do evento, 18.000 dólares. O cantor inglês e sua banda receberam 1.375.
Joe Cocker começou seu repertório cantando faixas do disco e alguns covers de Bob Dylan, Pete Dello e Ray Charles. A plateia aplaudia sem muito entusiasmo, ainda ressacada do dia e noite anteriores, que teve Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Santana, Jefferson Airplane... “É hora de mudar isso”, deve ter pensado Joe Cocker antes de falar sobre a próxima e última música do setlist de 13: With a little help from my friends, faixa-título do disco de estreia, composta por John Lennon e Paul McCartney, do álbum dos Beatles de 1967, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, na voz de Ringo Star. “Simplesmente alucinante, transformou totalmente em um hino do soul, fiquei eternamente grato a ele”, disse Paul ao ouvir a gravação no disco, que tem a guitarra e arranjo de Jimmy Page.
A apresentação naquela tarde no palco do Woodstock foi ainda mais alucinante. Durante oito minutos Joe Cocker magnetizou a multidão com sua voz gutural, seus movimentos espasmódicos, sua performance energética. A personalíssima versão da canção superou a de Richie Havens, que abriu o Festival dois dias antes.
Cocker agradeceu o público extasiado e retirou-se. Não houve tempo de gritarem por sua volta. Uma grande tempestade começou nos contornos da fazenda. Em poucos minutos ventos fortes trouxeram muita chuva, inundando e encharcando de lama o chão de Woodstock. Ninguém se feriu, as enormes torres de iluminação oscilaram e resistiram, muitos curtiram, outros, ainda assustados, foram embora.
A partir daquele dia Joe Cocker não parou. Gravou quase 30 discos e fez shows pelo mundo todo. Esteve no Brasil em 1977, em 1991 no Rock in Rio, 2012 em Sâo Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre. Com sua postura tônica no palco e sua voz grave, era doce na mesma proporção quando falava das origens das canções, de sua infância de família operária na Inglaterra, e como conseguiu superar os problemas com álcool e drogas nos anos 70.
Morava com a esposa em um rancho perto de montanhas no Colorado, Estados Unidos, quando faleceu aos 70 anos na manhã de 22 de dezembro de 2014. Não resistiu à tempestade de um câncer no pulmão.
Acima, fotograma do documentário Woodstock, de Michael Wadleigh, 1970.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

quem é você para derramar meu mungunzá?


Almério e Juliana Linhares são referências do imenso talento da nova geração de compositores e intérpretes da música brasileira. Ele pernambucano, com três discos, ela potiguar, com o álbum Nordeste ficção. Em 2022 gravaram um show no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, dentro do programa Cultura em Casa.

Disponível no YouTube, a apresentação magnetiza pela sintonia alquímica, sem artifícios cênicos, sem aparato de extensa condução instrumental, somente o acompanhamento elementar da guitarra de Juliano Holanda, preciso em uma trilha minimalista que segue os afluentes que os dois fazem no cancioneiro nordestino.
O repertório é uma cartografia afetiva da riqueza musical do Nordeste. Destaco as personalíssimas versões de dois forrós: Tareco e Mariola, de Petrúcio Amorim, de 1995, gravada pelo autor e por diversos sanfoneiros, e Rabo do jumento, de Elino Julião e Dílson Doria., sucesso na voz de Coronel Ludugero, em 1968.
A composição de Amorim trata de uma situação desagradável que passou no início da carreira. Tentando participar de um show promovido pela Fundação Cultural de Recife, o responsável do órgão recusou alegando a programação fechada, quando não era.
Julião narra uma tristeza em sua vida de compositor morando na roça: o dono de umas terras cortou a cauda de seu animal por ter entrado na plantação e comido um pezinho de coentro. Poetas da canção manifestando indignação com quem detém o poder, mesmo o pequeno poder de quarteirão e várzea.
No recorte que faço, minha leitura do trabalho da postura de dois artistas como Almério e Juliana, que com lucidez e encanto avançam na contramão do que a mercantilista idade mídia vende como talento e lota estádios em pirotécnicos shows milionários.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

um por todos, todos por um


 “Isto é Comboio. Outras coisas serão igualmente Comboio, se igualmente forem concebidas no âmago da arte, atentas à prática da vida. Não a arte modular conceitual, nem à vida essencial e exposta, mas as duas, vida e arte, ambas e totalmente ilimitadas como a própria concepção artística. Isto é Comboio. E outras coisas poderão ser Comboio se, em si, não encerrarem um sentido limitado e por assim ser confirmarem o anseio dos que, nesse instante histórico, preveem o desejo nacional da libertação da palavra e a quebra das grades que encarceram o pensamento.”

- Editorial do número experimental de Comboio Vida & Arte, revista coletiva literária, lançada em Fortaleza, no congestionado e esperançoso 1982.
O coletivo de jovens poetas, artistas plásticos, fotógrafos, e tantos mais resistentes sonhadores, nos reuníamos onde podíamos, das salas dos diretórios da universidade às calçadas e mesas de bares para traçar planos de voos. E assim, nos dividíamos em tarefas num só abraço: conselho editorial, arte-finalistas, finanças, divulgação. Ninguém soltava a mão de ninguém.
O escritor e professor de literatura Kelsen Bravos está fazendo escavações desse período instigante da literatura produzida no Ceará. Uma arqueologia afetiva e necessária.
No vídeo abaixo, o meu poema Armadura, que foi muito tempo depois publicado no livro Poesia provisória (Editora Radiadora).
 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

traços do arquiteto


 Foto: Acervo Fundação Oscar Niemeyer

Na manhã de 6 de dezembro de 2012, a antropóloga carioca Yvonne Maggie seguia em um táxi para o Instituto de Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro. No rádio, o noticiário repercutia a morte de Oscar Niemeyer no dia anterior.
Entre muitos depoimentos de personalidades sobre a importância do arquiteto, Yvonne se emocionou com o relato de um repórter. Ele estava na fila de uma padaria e ouviu a conversa de uma menina, de sete ou oito anos, com a mãe. A garota disse que se sentia muito triste porque Oscar Niemeyer morreu. E arrematou: “Ele foi um grande escritor que escrevia casas e edifícios”. A mãe, curiosa, perguntou onde ela aprendeu aquilo. “Na escola”, afirmou.
Assim como Yvonne, imaginei que essa menina poderia ser aluna de um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep), criação de Darcy Ribeiro quando foi secretário de Educação no governo Brizola, e desenhado por Niemeyer. E lembrei quando li o livro de memórias do arquiteto, As curvas do tempo, lançado em 1998.
Niemeyer começou os textos no final dos anos 70. Mas tinha dúvidas da qualidade literária. Foi seu grande amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, historiador, que o incentivou: “Vai escrevendo, Oscar, vai escrevendo. Corrige depois”.
Publicado pela Editora Revan, o livro cativa pela simplicidade narrativa, como estivéssemos numa sala ouvindo o autor contar onde nasceu; sua infância no bairro Laranjeiras; as idiossincrasias dos parentes; a quantidade de escritores que leu; as farras com os amigos; o medo de viajar de avião; o despertar pela arquitetura e a relação afetiva com Le Corbusier; sua militância no partido comunista e amizade com Prestes; seu primeiro projeto individual, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha; os bastidores da construção de Brasília e as longas conversas com Juscelino; a resistência de não se entregar à velhice e o incômodo com a implacável certeza da morte.
O escritor italiano Alberto Moraria dizia que a literatura se engrandece quando se aproxima da linguagem oral, máxima que se aplica ao despojamento da autobiografia de Niemeyer. Sem ter necessariamente uma sequência cronológica nos capítulos, a imagem que faço são folhas de croquis literários espalhadas sobre uma enorme prancheta e o autor pegando uma para ler, depois outra para reler, abaixando-se para pegar uma que caiu com o vento que entrou pelo janelão de seu escritório em Copacabana, onde trabalhou até cinco dias antes de falecer, aos 104 anos.
Para a edição do livro, Niemeyer criou desenhos, colocados no final das páginas, como rodapés na sala ilustrando trechos de uma casa.
Hoje, 116 anos de nascimento do arquiteto que teve seus traços lidos pela menina da fila da padaria.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

o nome do menino


Em novembro de 1945 o jovem paraibano de 15 anos Severino Dias de Oliveira foi fazer um teste para se apresentar no programa de calouros da Rádio Clube de Pernambuco. O rapaz que impressionava desde os 8 anos com sua habilidade na sanfona, saíra de Itabaiana para tentar a vida artística em João Pessoa, não deu certo e seguiu para Recife, onde morava um primo.
“Quer tocar uma coisinha pra mim agora?”, perguntou o compositor Nelson Ferreira, diretor musical da rádio. “Quero”, atendeu, já começando um xote. Ao término, Ferreira, também pianista e regente, arregalou os olhos, deslumbrado com o que ouviu. Não o colocaria nos calouros, seria logo contratado.
Entusiasmado com a descoberta, pegou o telefone: “Ô, Maria, vem ver uma coisa! Vem ver esse menino que chegou!”. Minutos depois entra o compositor e cronista Antônio Maria, redator do programa. Quando pediram para tocar novamente, o rapaz surpreendeu com Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Maravilhados e incrédulos, pediram mais uma. E ouviram a valsa Silêncio, do próprio Nelson Ferreira, que emocionado abraçou o prodígio.
- Você que fazer um programa aqui amanhã?
- Faço, oxe, faço tudo! – Respondeu, sem tirar o instrumento pesado do colo.
No dia seguinte, com uma roupa bem engomada e sapato lustrado, Severino chegou merecidamente feliz para o primeiro dia como músico profissional. Ferreira vendo-o colocar a sanfona, aproximou-se:
- Temos aqui um problema que precisamos resolver. O seu nome é de firma comercial de interior. Severino Dias de Oliveira não dá. Vamos simplificar e usar um nome só. Que tal Sivuca?
- Está bom, maestro, está bom – concordou, tranquilamente, como se o novo nome sempre estivera nele.
No seu fole com os acordes do choro e música clássica ao frevo e xote, do forró e baião ao blues e jazz, do auditório da Rádio Clube ao palco do Olympia de Paris, Sivuca imantava a plateia em cada apresentação.
No final da noite de 14 de dezembro de 2006, uma quinta-feira como hoje, o compositor faleceu aos 76 anos em um hospital em João Pessoa, onde estava tratando de um câncer na laringe.
Nas feiras de mangaios da música brasileira continua o sanfoneiro Sivuca fazendo floreio pra gente dançar.
Foto: Sivuca aos 9 anos. Acervo Glorinha Gadelha

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

luz dos olhos teus


Santa Luzia iluminava
a minha infância que dormia.
Nas manhãs quentes do interior:
o facho de luz vindo da telha quebrada
(o menino na rede,
a parede azulada
a cenografia do quarto
:
o enquadramento que me guardava
no passado
que vi do futuro).
A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira
protegia meus olhos que acordavam
focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim.
Cada manhã abençoada
com a oferenda do par de olhos na bandeja.
Casa desfeita
parentes idos
santa nas retinas.
Na parede azulada,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso.
.................................................................
Trecho do meu livro Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
13 de dezembro, dia de Santa Luzia. 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

à altura dos corações



Yasujiro Ozu, o cineasta do cotidiano, dos laços e desenlaces familiares.
Criador dos planos com tripé baixo, sua câmera-tatame está sempre à altura dos corações dos que partem e dos que voltam.
Minimalista, com serenidade e sutileza, seu cinema disseca sentimentos, como deve ser para o entendimento e reflexão de todos nós, seres imperfeitos metidos a sabidos.
Em seus 53 filmes, principalmente os produzidos a partir da década de 40, Ozu estabelece uma estrutura neorrealista, confrontando o velho e o novo Japão, muito bem definido no envelhecimento e na modernidade, nos filhos e nos pais, nas cidades e nos costumes, no efêmero que somos, no eterno que pretendemos.
Como em conceito taoísta, o cineasta veio e se foi no mesmo dia, 12 de dezembro. Os 60 anos que se ligam entre o seu Yin em 1903 e o seu Yang em 1963 reúnem as forças da transformação contínua, da vida que surge à vida que se destina.
Foto: Ozu dirigindo Pai e filha (Bashun), 1949.
Acervo Nippon Communications Foundation

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

"sou do sereno poeta muito soturno"



Verso de Três apitos, de Noel Rosa, e o que melhor define seu perfil e sua história. Como um dândi enviesado, o compositor foi um cronista de si, atravessando a noite e curtindo a vida na contramão dos bons costumes do lugar, entre a contínua boemia e o casamento arranjado por sua mãe com Lindaura, ela com 15 anos, ele com 24.
Noel começou a compor Três apitos em 1931, inspirado em Fina, operária de uma fábrica, possivelmente a de tecidos Confiança, próximo a sua casa, em Vila Isabel. Noel teve um namorico com a moça que fazia pano, dizia ser o romance mais sincero de sua vida. Junto ao piano aprimorou os versos ao longo do ano seguinte e em 1933 considerou a canção finalizada. Mas ele não gostou do resultado, achava um mau samba, cheio de incorreções poéticas. Não quis que fosse gravada.
Somente em 1951, 14 anos após sua morte, teve o primeiro registro em disco, na voz de Aracy de Almeida, em Feitio de oração, LP só com repertório de Noel. Em uma de suas raras entrevistas, à revista A Pátria, de 1936, o compositor declarou que "Aracy de Almeida é a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo".
O jornalista e pesquisador Rafael Cosme, que prepara um livro de memórias sobre o Rio de Janeiro, estruturado em imagens fotográficas de 1900 a 1980, encontrou recentemente numa feira de antiguidades da Praça XV, um dos 3x4 de Noel Rosa usado na sua carteira de trabalho, de 1935. O compositor foi até a Praça Tiradentes, entrou no Foto Câmara e bateu uma chapa. Não se sabe que caminhos percorreu a preciosidade nessas oito décadas.
Noel Rosa viveu apenas 26 anos e cinco meses dos 113 que hoje completam do seu nascimento. Tudo nele é raro: talento, amores e tempo.
Fotos: Acervo Rafael Cosme / Acervo Arquivo Nacional

domingo, 10 de dezembro de 2023

corações selvagens

Em 1965 o diretor Fauzi Arap adaptou para o teatro Perto do coração selvagem, romance de estreia de Clarice Lispector, 1943. Mantendo o título do livro, a peça incluiu trechos de A paixão segundo GH e o de contos A Legião Estrangeira, ambos de 1964.
A montagem de Arap é um monólogo a três, marcado necessariamente pelo estilo introspectivo da personagem Joana, do primeiro livro. A origem da história era um amontoado de rascunhos, anotações, folhas com reflexões da protagonista. Foi o escritor Lúcio Cardoso quem sugeriu unir os escritos soltos em um romance, dar uma linearidade àqueles croquis literários. Foi dele também a ideia do título, retirado de uma passagem de Retrato do artista quando jovem, de James Joyce. Cardoso considerava as técnicas e estrutura de Clarice na mesma linha do romancista irlandês, como se não bastasse ela já influenciada pela literatura do autor mineiro, seu amigo, a quem carinhosamente considerava mentor.
A autonomia de Fauzi Arap na adaptação manteve um fio condutor solo narrativo correndo paralelamente entre os personagens, o que é instigante. O diretor declarou em entrevista que seu trabalho foi como o “de um montador de cinema, utilizando vasto material que dispunha” depois de ler os três livros.
Mas a estreia no Teatro Maison de France, São Paulo, não agradou aos críticos. Com exceção do jornalista Fausto Wolff, que elogiou a celebração da dimensão dos textos em formato teatral, outros questionaram a validade do original de Clarice para o tablado, argumentando que em sua obra haveria temáticas menos densas e mais representáveis. “Aquele pensamento autoanalítico e conceitual não funciona no palco”, disse o teatrólogo Yan Michalski, em sintonia com o que o dramaturgo Van Jafa escreveu apontando que o diretor “cometeu uma imprudência ao ler em cena aberta trechos de livros decididamente feitos para serem lidos na intimidade”.
Se Fauzi Arap se incomodou, Clarice não se abalou. Segura, reservada, discreta em sua beleza enigmática, desde quando autorizou a adaptação, acompanhou continuamente os ensaios, trocava ideias com o diretor e elenco, dizia-se satisfeita e representada com a transposição de sua literatura para a narrativa teatral. E ponto.
Neste mês, 80 anos do lançamento do romance. Hoje, 103 anos de nascimento da esfinge que partiu um dia antes de completar 57 dezembros.
Acima, um dos flagrantes de uma série que o fotógrafo Carlos Mockovics fez dos ensaios: Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice e Dirce Migliaccio.
Acervo Cedoc/Funarte


 

sábado, 9 de dezembro de 2023

a descoberta de Clarice



"Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus."
- Trecho de A revolta, de Clarice Lispector, do livro A descoberta do mundo, publicação póstuma, 1984, da Editora Rocco. Com colaboração de Cora Rónai na organização, reúne crônicas publicadas no Jornal do Brasil de 1967 a 1972.
Quando foi convidada para uma coluna aos sábados, Clarice sentiu o impacto de desenvolver uma escrita onde seu mundo pessoal e subjetivo seria desvendado aos poucos, ao contrário de seus romances e crônicas em que esse universo é compactuado com o leitor num outro processo de narrativa, em ritos iniciáticos, numa dimensão psíquica individual com o outro.
Numa das primeiras crônicas, de 21 de setembro de 1968, Clarice avisa que "Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna, estou de algum modo me dando a conhecer". E assim, a enigmática escritora que morava no afloramento rochoso do Leme, é igualmente grandiosa na leveza de seus textos ao se espraiar na geografia do cotidiano, com um olhar de cumplicidade afetiva com os personagens flagrados e um humor elegante no recorte dos fatos.
A escritora faleceu em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Além da coincidência da data, pelo ritual judaico, não pôde ser enterrada no dia seguinte, um sábado. Foi no domingo para o Cemitério Comunal Israelita do Caju, Rio.
Partiu para o futuro com seu grito.
Acima, Clarice fotografada por Bluma Wainer, em Paris,1946.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

dentro de mais um minuto estaremos no Galeão...

Foto: Ana Lontra Jobim, 1987

Em 1999, uma lei federal alterou a denominação do maior aeroporto do Rio de Janeiro para Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim. A ideia de homenagear o compositor foi do pesquisador e crítico musical Ricardo Cravo Albin.
A emblemática canção Samba do avião", que cita o então popularmente chamado Aeroporto do Galeão, foi composta por Tom Jobim para o filme Copacabana Palace, coprodução franco-ítalo-brasileira, dirigido por Steno, filmado em 1961, lançado no ano seguinte. Nos letreiros de abertura, sobre imagens do Rio, a interpretação em português da cantora italiana Jula de Palma. As primeiras gravações foram de Elza Laranjeiras, no LP A música de Jobim e Vinicius (1962) e de Os Cariocas, em A bossa dos Cariocas (1963). O grupo cantara na festa da estreia do filme, acompanhando o autor em um show no restaurante Au Bom Gourmet, em Copacabana.
E que ironia ter um aeroporto com seu nome: Tom Jobim tinha pavor de viajar de avião! Consta que compôs a música sem nunca ter entrado numa aeronave. Só o fizera, a muito custo, em novembro de 1962, quando foi a Nova York para o Festival de Bossa Nova no Carnegie Hall, com João Gilberto.
Apesar de citar o Galeão, o cenário visto lá de cima que a letra descreve, está mais para os céus do Aeroporto Santos Dumont. Mas os voos internacionais eram na pista da Ilha do Governador e no filme o avião chega de Roma. Jobim imaginou tudo.
A letra relata os momentos de fobia que o maestro sentiria sempre. Disfarçando o temor e a ansiedade de chegar logo em terra firme, Tom exalta as belezas da cidade maravilhosa, “estou morrendo de saudades / Rio, seu mar / praia sem fim”, e alivia-se ao ver de longe o “Cristo Redentor / braços abertos sobre a Guanabara”, enquanto o avião oscilava as asas para a aterrissagem, pensava na morena “com seu corpo todo a balançar”.
Dá para imaginar o sorriso de conforto do maestro quando ouve a aeromoça anunciar “aperte o cinto, vamos chegar”. A canção termina como a chegada de um pássaro, “água brilhando, olha a pista chegando / e vamos nós / pousar...”
Tom Jobim faleceu em 1994, no Hospital Mount Sinai Medical Center, em Nova York, onde foi se tratar de um tumor na bexiga. Eram 10h da manhã (no horário do Brasil) de 8 de dezembro quando ele sofreu uma parada cardíaca. Às 19h seguiu para o aeroporto JFK e fazer sua última aterrissagem no Galeão.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

"Eu assubo nos aros e vou brincar no vento leste"


- João, de onde você tirou esse “vento leste”?
- Ah, Luiz, de noite eu liguei o rádio na Hora do Brasil e ouvi: “Aviso aos navegantes: vento leste soprando pra sudoeste”.
O diálogo foi entre João do Vale, maranhense, e Luiz Vieira, pernambucano, autores da clássica Na asa do vento, de 1956, gravada inicialmente por Dolores Duran, anos depois por eles, por Caetano Veloso, Ednardo, Fagner, Flávia Bittencourt...
João do Vale, de origem simples e semianalfabeto, achava que tinha que colocar umas “palavras difíceis” para impressionar em suas composições. E tudo fazia sentido. Muito espirituoso em seus comentários, dizia que “Parceria com gente que já tem nome não é bom, não”, referindo-se ao seu trabalho com Vieira. Sempre ouvia os locutores das rádios anunciando: “Ouviremos na voz de Marlene, o xote ‘Estrela miúda’, de Luiz Vieira”.
No começo da década de 50, quando trabalhava como pedreiro numa obra na rua Barão de Ipanema, no Rio de Janeiro, ouviu a canção vinda de um rádio numa casa vizinha. O sorridente operário da construção e da poesia, apressou-se e falou para o colega ao lado:
- Tá ouvindo essa música?
- Tô. É a Marlene que tá cantando.
- E sabe quem é o autor? Sou eu.
- Conversa, neguinho. Você tá é delirando. Faz mais massa aí, vai!
“Até 1964 quase ninguém sabia que as minhas músicas eram minhas”, revelou numa entrevista para o encarte de um exemplar da Nova História da Música Popular Brasileira, coleção da Abril Cultural de 1977. A pontuação da data é relevante, foi quando compôs Carcará para o Show Opinião, dirigido por Augusto Boal. Zé Kéti e João do Vale integravam o musical, mas a interpretação coube à estreante Maria Bethânia, que substituiu Nara Leão. É o momento marcante do show-manifesto que estreou nove meses depois do Golpe Militar, no Teatro de Arena, Rio.
João do Vale faleceu no começo da tarde de 6 de dezembro de 1992, aos 62 anos, em São Luis, depois de cinco anos numa cadeira de rodas, com fortes sequelas de locomoção e fala, consequentes de dois derrames cerebrais.
A foto abaixo, de acervo familiar, foi utilizada na capa do livro O jovem João do Vale, ótima pesquisa do seu conterrâneo Wilson Marques, jornalista. Lançada em 2013 pela Editora Nova Alexandria, a biografia narra a trajetória do compositor com foco em sua infância e juventude no povoado Lago da Onça, em Pedreiras, até largar tudo e partir para o Brasil dos contrastes e brincar no vento leste.