Parafraseando os versos do
clássico poema de Drummond, remeto-me ao começo de 2011 quando o Centro
Cultural Banco do Brasil iniciou o projeto Anjos Tortos – A MPB Gauche na
Vida, em que homenageava vários cantores e compositores da música brasileira
que têm como característica, e não necessariamente “rótulo”, a originalidade
movida pela liberdade em suas criações, sem sucumbir aos ditames da indústria
fonográfica para fazer “sucesso”.
Entre esses anjos enviesados
merecidamente glorificados pelo projeto, Sergio Sampaio foi surpreendentemente
celebrado na voz de Eugênio Avelino, o conhecido Xangai. Qualquer estranheza inicial
causada com a relação distinta no estilo, comportamento e proposta musical
entre os dois artistas, foi desfeita em uma hora e meia de show. Tinham tudo a
ver e ouvir.
Xangai com a afinadíssima viola e
sozinho no palco, com sua belíssima e singular voz de canário, conquistou a
plateia, na sala do CCBB em Brasília, cantando as canções do amigo. Padrinho do
filho de Sergio Sampaio, João, Xangai contou “causos” quando os dois moraram
juntos no Rio de Janeiro, no começo da carreira, quando um se preparava para
colocar o bloco na rua e o outro nem imaginava um grande encontro com Elomar,
Geraldo Azevedo e Vital Farias.
A relação de saudável compadrio
através da sensibilidade que os uniu ao longo do tempo, foi exposta e ilustrada
em melodias e histórias naquele show. Na voz de Xangai a essência e o
significado da música que Sérgio Sampaio imprimiu no cancioneiro brasileiro. O
canto agreste do baiano soube muito bem incorporar a fúria modernista do compositor
capixaba.
Sérgio Sampaio, de certa forma, foi ofuscado pelo próprio sucesso de “Eu quero é botar o meu bloco na rua”, involuntariamente lançada como uma moderna marcha-rancho de carnaval, em 1973, e por outro lado, sem muito interesse da mídia que o via como um magrelo esquisito, largado na vala comum dos malditos em plena ditadura militar, mais condescendente ao romantismo nem bossa nova nem rock-and-roll do epônico rei da juventude.
De 1982, quando lançou seu último
disco de estúdio, Sinceramente, até os anos 90, o cantor viveu totalmente
afastado da mídia, em autoexílio reflexivo, quieto em suas perplexidades,
morando nesse período crepuscular entre Brasília, Bahia, Espírito Santo e Rio
de Janeiro. Uma de suas mais belas composições, Ninguém vive por mim,
penúltima faixa do lado B do seu segundo disco, Tem que acontecer, de 1976, é
uma espécie de manifesto íntimo, uma cartografia de seu perfil, um mapeamento do
coração como artista neste país sempre ameaçado pelo memoricídio.
Em 1993 Sérgio Sampaio realizou
um dos seus últimos shows no palco do Cine Metropolis da Universidade Federal
do Espírito Santo. Sozinho, num banquinho e violão, acompanhado em três músicas
pelo amigo Zé Moreira, o cantor apresentou dezessete canções de seu rico
repertório. Gravado em mídia VHS pelo cinegrafista Talmom Jr., é um dos mais
importantes registros de Sérgio Sampaio.
Animado com uma certa repercussão
de seu trabalho, regravações por outros cantores, preparava o retorno com um
disco de canções inéditas, que seria gravado pela paulista Baratos Afins, em
1994. Mas no dia 15 de maio daquele ano, com a saúde agravada por pancreatite,
o cantor faleceu aos 47 anos.
Abaixo, um trecho
do show. O “boêmio cantor da lua / doido que não se situa” e a sintomática
canção que citei. “Fui procurar viver além de mim”, diz em um dos versos.
Íntegro, não se entregou. Foi o melhor dos nossos temporais.
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