sábado, 15 de maio de 2021

o melhor dos temporais aduba o jardim


Quando ele nasceu, um anjo torto, desses que viviam entre as serras do seu pequeno Cachoeiro, disse, “vai, Sérgio, ser gauche na vida”.

Parafraseando os versos do clássico poema de Drummond, remeto-me ao começo de 2011 quando o Centro Cultural Banco do Brasil iniciou o projeto Anjos Tortos – A MPB Gauche na Vida, em que homenageava vários cantores e compositores da música brasileira que têm como característica, e não necessariamente “rótulo”, a originalidade movida pela liberdade em suas criações, sem sucumbir aos ditames da indústria fonográfica para fazer “sucesso”.

Entre esses anjos enviesados merecidamente glorificados pelo projeto, Sergio Sampaio foi surpreendentemente celebrado na voz de Eugênio Avelino, o conhecido Xangai. Qualquer estranheza inicial causada com a relação distinta no estilo, comportamento e proposta musical entre os dois artistas, foi desfeita em uma hora e meia de show. Tinham tudo a ver e ouvir.

Xangai com a afinadíssima viola e sozinho no palco, com sua belíssima e singular voz de canário, conquistou a plateia, na sala do CCBB em Brasília, cantando as canções do amigo. Padrinho do filho de Sergio Sampaio, João, Xangai contou “causos” quando os dois moraram juntos no Rio de Janeiro, no começo da carreira, quando um se preparava para colocar o bloco na rua e o outro nem imaginava um grande encontro com Elomar, Geraldo Azevedo e Vital Farias.

A relação de saudável compadrio através da sensibilidade que os uniu ao longo do tempo, foi exposta e ilustrada em melodias e histórias naquele show. Na voz de Xangai a essência e o significado da música que Sérgio Sampaio imprimiu no cancioneiro brasileiro. O canto agreste do baiano soube muito bem incorporar a fúria modernista do compositor capixaba.

Sérgio Sampaio, de certa forma, foi ofuscado pelo próprio sucesso de “Eu quero é botar o meu bloco na rua”, involuntariamente lançada como uma moderna marcha-rancho de carnaval, em 1973, e por outro lado, sem muito interesse da mídia que o via como um magrelo esquisito, largado na vala comum dos malditos em plena ditadura militar, mais condescendente ao romantismo nem bossa nova nem rock-and-roll do epônico rei da juventude. 

De 1982, quando lançou seu último disco de estúdio, Sinceramente, até os anos 90, o cantor viveu totalmente afastado da mídia, em autoexílio reflexivo, quieto em suas perplexidades, morando nesse período crepuscular entre Brasília, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Uma de suas mais belas composições, Ninguém vive por mim, penúltima faixa do lado B do seu segundo disco, Tem que acontecer, de 1976, é uma espécie de manifesto íntimo, uma cartografia de seu perfil, um mapeamento do coração como artista neste país sempre ameaçado pelo memoricídio.

Em 1993 Sérgio Sampaio realizou um dos seus últimos shows no palco do Cine Metropolis da Universidade Federal do Espírito Santo. Sozinho, num banquinho e violão, acompanhado em três músicas pelo amigo Zé Moreira, o cantor apresentou dezessete canções de seu rico repertório. Gravado em mídia VHS pelo cinegrafista Talmom Jr., é um dos mais importantes registros de Sérgio Sampaio.

Animado com uma certa repercussão de seu trabalho, regravações por outros cantores, preparava o retorno com um disco de canções inéditas, que seria gravado pela paulista Baratos Afins, em 1994. Mas no dia 15 de maio daquele ano, com a saúde agravada por pancreatite, o cantor faleceu aos 47 anos.  

Abaixo, um trecho do show. O “boêmio cantor da lua / doido que não se situa” e a sintomática canção que citei. “Fui procurar viver além de mim”, diz em um dos versos.

Íntegro, não se entregou. Foi o melhor dos nossos temporais.

 

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