1976 foi um ano marcante na história brasileira. Aliás, toda aquela década em plena ditadura militar, com o AI-5 em vigor, a galope, massacrando a liberdade, corroendo as instituições, os podres poderes inventando a tristeza.
Com Geisel no poder, o governo ensaiava uma distensão para abertura política institucional, lenta, gradual e segura, diziam eles. Tudo muito raso. As perseguições, as torturas, os desparecimentos continuavam. O metalúrgico Manuel Fiel Filho é morto nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo; três dirigentes do Partido Comunista do Brasil são mortos após emboscada na capital paulista, a chamada Chacina da Lapa; o Congresso Nacional regulamenta a Lei Falcão, controlando a propaganda eleitoral no rádio e na televisão; o ex-presidente Juscelino Kubitschek morre misteriosamente num acidente de carro na Rodovia Presidente Dutra, quinze dias depois de dizer que “Estão querendo me matar, mas ainda não conseguiram”, quando desmentiu a notícia que teria morrido em sua fazenda, em Luziânia, Goiás; o também ex-presidente João Goulart é encontrado morto em sua fazenda em Corrientes, Argentina, oficialmente vitimado de ataque cardíaco, mas com suspeita que tenha sido assassinado por agentes da Operação Condor, aliança político-militar entre os diferentes regimes militares da América do Sul.
O poço continuava fundo.
Na música popular brasileira, uma resistência a todo esse cenário dantesco, criando a beleza, fazendo das tripas o coração da esperança. Foi o ano de lançamentos de discos importantíssimos, pulsantes nesse sentido: Elis Regina com Falso brilhante e o sucesso de Como os nossos pais e Velha roupa colorida, composições de Belchior, e deste, no mesmo período, o grande álbum Alucinação; o compositor Cartola, na janela de sua casa ao lado de Dona Zica na capa de seu segundo disco diz que O mundo é um moinho e por isso As rosas não falam; Raul Seixas estoura com 100 mil cópias do single pleonástico Há dez mil anos atrás bradando que viu o amor nascer e ser assassinado; João Bosco lança o sintomático Galos de briga, fortificando uma verdadeira compatibilidade de gênios com Aldir Blanc; Chico Buarque através de fitas k-7 e vinis manda notícias para o amigo teatrólogo Augusto Boal, exilado em Portugal, dizendo que "a coisa aqui tá preta".
Muitos outros discos substanciais compõem esse mostruário na história da música brasileira naquele 1976 que não acabava. Um deles, que embora tenha tido reconhecimento quando lançado, mas que não tem o merecido destaque nessa prateleira, é Cuban Soul - 18 Kilates, terceiro disco de estúdio do cantor, compositor e guitarrista Cassiano, autor de sucessos na voz de Tim Maia, como Primavera (Vai chuva) e Eu amo você, em parceria com Silvio Rochael, que abrem o lado B do disco de estreia, 1970. Além das canções, os riffs inovadores da guitarra do autor.
Mas o paraibano Genival Cassiano dos Santos, que ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro, é muito mais do que hit parade no vozeirão de Sebastião Maia. No começo dos anos 60 apaixonou-se pela batida da Bossa Nova, e participou da formação do Bossa Trio, mesclagem rítmica de samba-jazz que derivou no quarteto Os Diagonais. Lançaram um disco, em 1969, visivelmente influenciado pela soul music e o rythm and blues. E aí se apresenta toda a potência de Cassiano, juntando o valimento dessas origens de forma sua, autêntica. As nove belíssimas faixas de Cuban Soul expressam as pedras preciosas, os 18 kilates obtidos da mistura de 75% de ouro puro de harmonias com 25% de ligas brancas no paládio dos timbres vocais do cantor. Uma beleza para se tocar nos sulcos da vitrola várias vezes! Parece que estamos ouvindo em uma configuração inusitada um cruzamento de Ortis Redding com Steve Wonder. Obra-prima!
Cassiano gravou o último dos seus quatro discos autorais em 1991, “Cedo ou tarde”. Com o desinteresse do mercado cruel das gravadoras, sua existência passou a ser pontuada por regravações de suas músicas por outros cantores e um disco tributo frustrante lançado em 2000. O artista se recolheu tristemente em seu anonimato num pequeno apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. Adoeceu, perdeu parte do pulmão direito.
Depois de três décadas totalmente esquecido, Cassiano voltou ao noticiário no começo da noite de ontem, não necessariamente pela sua extrema relevância na história da nossa música, mas por ser mais um número na fatídica estatística de mais de 400 mil mortos por Covid-19 neste país à deriva, sob um desgoverno genocida com uma alma sebosa na presidência, que debocha dos acometidos pelo vírus, imitando a falta de ar, o afogamento no seco. Parece uma reedição excruciante daqueles anos de chumbo da década de 70.
Aos 77 anos, entubado num leito de um hospital público no bairro de Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro, Cassiano morreu também de Brasil.
A lua e eu, a mais conhecida do disco Cuban Soul, é a última faixa do lado B. Os versos iniciais preconizaram o final de carreira do grande artista Cassiano, a condenação sumária ao esquecimento: “Mais um ano se passou / e nem sequer ouvi falar seu nome...”
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