domingo, 30 de maio de 2021

guarde uma frase pra mim dentro de sua canção


Em meados dos anos 90 a cantora Amelinha encontrou-se com Belchior nos bastidores de uma emissora de televisão em São Paulo. Na alegria das conversas abraçadas de conterrâneos quando se vêem, o cantor comentou que gostaria muito de ouvir na voz dela uma canção que gravou em 1987, De primeira grandeza, no disco Melodrama.

O tempo passou. Em 2000 a cantora pensou em incluir a canção no CD Ednardo, Amelinha & Belchior - Pessoal do Ceará, mas não cabia dentro da proposta do disco.
Belchior sumiu em seu exílio voluntário e voltou de uma forma que não desejávamos. “Fiquei sete dias muda, quieta, chocada e com um vazio enorme no meu peito”, disse Amelinha, expressando um sentimento de todos nós.
Em agosto de 2017, quatro meses depois da morte de Belchior, a convite do produtor Thiago Marques Luiz, Amelinha segue para a cidade Piracaia, São Paulo. No Estúdio Canto da Coruja, situado num bucólico sítio, passa quatro dias gravando o álbum De primeira grandeza – as canções de Belchior, com direção musical de Estevan Sincovitz. O disco é belíssimo, um dos melhores de Amelinha, com sua voz cada vez mais afinada e anímica. Estão lá dez canções preciosas, incluindo uma das poucas conhecidas de Belchior, Incêndios, parceria com Petrúcio Maia, gravada por Fagner no disco Romance no deserto, 1987.
Belchior estava certo na intuição: a interpretação de Amelinha em De primeira grandeza é de uma beleza e simetria impressionantes, condizendo com a letra quando o autor diz “Quando eu estou sob as luzes / não tenho medo de nada / e a face oculta da lua - que é a minha! / aparece iluminada. / Sou o que escondo - sendo uma mulher / igual a tua namorada / mas o que vês quando me mostro – estrela / de grandeza inesperada.”
Quatro anos e dois meses hoje que Belchior está sob outras luzes de primeira grandeza.

sábado, 29 de maio de 2021

o profeta do cinema


“A noite com seus sortilégios”, como dizia Manuel Bandeira, levou o cineasta Maurice Capovilla neste final de sábado. Capô, como todos carinhosamente o chamávamos, tinha 85 anos e não resistiu às complicações de uma doença pulmonar.

Capovilla tem seu nome ligado a diversos filmes significativos na história do cinema brasileiro, não somente como diretor, também como roteirista, produtor e ator.
Destaco três por ele dirigidos:
Bebel, garota propaganda, seu primeiro trabalho, de 1968, baseado no romance Bebel que a cidade comeu, de Ignácio de Loyola Brandão, um retrato sarcástico de um período de repressão política, de uma geração de jovens sonhadores e idealistas, como a garota do título, que foi afetada e engolida pelo sistema.
Em O profeta da fome, de 1970, na configuração de um circo pobre, a simbologia do país naquela virada de década sob recrudescimento da ditadura com o AI-5, o povo representado na figura de um faquir que é crucificado como parte do espetáculo, e ao ser preso descobre que seu sucesso é passar fome de verdade. E no contraponto, sob o mesmo ambiente da lona rasgada e empoeirada, o domador malvado, estigma do poder e controle. Curiosamente, interpretados por José Mojica Marins e Maurice do Vale, icônicos atores que viveram em filmes daquela década do golpe militar os personagens do mito do horror tupiniquim Zé do Caixão e o caçador de cangaceiros Antonio das Mortes, contratado por latifundiários.
O jogo da vida, de 1977, é baseado no ótimo livro Malagueta, Perus e Bacanaço, do paulistano João Antonio, reconhecido como criador do conto-reportagem no jornalismo. Escrito no sintomático ano pré-golpe, 1963, e o filme produzido no ano do governo Geisel, com os esboços de abertura política articulada por Golbery, a história mostra três personagens emblematicamente brasileiros, um sem-teto que teve seu barraco derrubado por ordem judicial, um operário de uma fábrica de cimento, insatisfeito com as condições de trabalho e em constantes brigas com a esposa, e um malandro boa vida explorador de mulheres e preso por ser atuante do jogo bicho.
No cinema de Maurice Capovilla o Brasil é o grande personagem.
Convivi com o cineasta quando no final dos anos 90 morou em Fortaleza, e junto com Orlando Senna, trabalhou no projeto original do Instituto Dragão do Mar, núcleo cinematográfico de formação criado pelo governo do estado. Na imagem daquele homem sempre atencioso, seguro e convicto de seus conhecimentos e ensinamentos como cidadão e artista, o personagem de um Brasil do tempo da delicadeza.
Abraço e gratidão, mestre Capô.

this is the end


foto Mary Ellen Mark

"Não olhe para a câmera, continue lutando!", bradava o maestro Francis Ford Coppola regendo o fim do mundo nas filmagens de Apocalipse Now, clássico do cinema contemporâneo, 1979.

Filmado em 17 semanas, em uma produção literalmente de caos, com locações fieis nas Filipinas, equipe numerosa enfrentando chuvas, tufões destruindo cenários, elenco trocado com horas de cenas rodadas, atores infartados e insubstituíveis, orçamento estourado, Apocalipse é baseado no denso e tenso romance Heart of Darkness, de Joseph Conrad, mas teve roteiro alterado, distanciando-se da obra literária.

Coppola mais do que manteve, ampliou a essência do pânico, o que o horror da guerra é capaz de provocar na mente humana. O filme denuncia a brutalidade e a supremacia norte-americana sobre o mundo. E isso não é pouco.


sexta-feira, 28 de maio de 2021

corpo e alma


foto Acervo Folhapress, 1975

"Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus."

Revolta, de Clarice Lispector, do livro póstumo Todas as crônicas, organizado pelo pesquisador e crítico Pedro Karp Vasquez, Ed. Rocco, 2004, onde reúne os textos publicados na década de 70 no Caderno Dois do Jornal do Brasil.

você me dá bandeiras


33 anos hoje sem os casarios iluminados, as janelas abertas, as bandeiras juninas, as cores ao vento do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, o poeta do abstracionismo geométrico.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

a mais alta patente do samba


foto Joaquim Corrêa, 2015

Na noite de 25 de junho de 2015 Nelson Sargento entrou no palco do Teatro da Caixa Cultural, em Brasília, após a abertura instrumental do grupo Galo Preto. Pequeno, franzino, com passos vagarosos, mas firmes, o compositor, com a elegância suprema da simplicidade, levantou a plateia em aplausos.

E começou a cantar, como cantasse em particular para o coração imantado de cada presente. E sambou em passos minimalistas, como dançasse para cada um de nós, ali com vontade de subir o palco. E contou a história de cada composição, de suas parcerias com Cartola, Guilherme de Brito, Carlos Cachaça, como nos contasse doces segredos balançando a cadeira de vime na varanda. E falou de Evonete, sua esposa e musa de muitas sambas, que apareceu no palco para lhe servir água geladinha, como falasse da pessoa que amamos e estivesse iluminada em nossa frente. E falou como conheceu Paulinho da Viola, como traduzindo o bem-querer daquele que é um rio de canções sempre passando em nossas vidas. E falou de sua Mangueira Estação Primeira, da qual foi Presidente de Honra, como que nos convidando para cantar um samba-enredo que é ele próprio. E falou de seu time, Vasco da Gama, que fez vibrar até aqueles que torcem por outras cores do outro lado do jogo.
No meio do show, Nelson agradeceu a presença de todos. Agradeceu aos músicos que o acompanhavam, ao cantor Pedro Miranda, com quem dividiu o repertório. Todos o reverenciaram com olhares que se derramaram diante aquela entidade, um Buda nagô nascido da beleza da nação negra brasileira.
Sempre simpático, cativantemente espirituoso, Nelson Sargento falou das comemorações de seu aniversário no ano anterior, e que estava firme, forte e sambando para os 91 anos naquele próximo 25 de julho.
Sincero e generoso, lembrou que o maior presente que recebeu como celebração pelas nove décadas de vida foi a produção do show Nelson Sargento, 90 Anos de Samba e a turnê que então seguia pelo país: "é muito bom receber as flores em vida", disse, fazendo a plateia novamente se levantar e aplaudir, comovida.
O sambista parafraseou de forma inversa o seu xará Nelson Cavaquinho, que lamentava na canção "Quando eu me chamar saudade", não precisar "homenagear fazendo de ouro um violão" depois que fosse embora, preferia "as flores em vida / o carinho, a mão amiga".
Diante tanta mediocridade midiática da música que assola este país, agora mais que antes afundando em desencanto, é gratificante ter visto um artista do porte, da importância de Nelson Sargento, fazendo show, lúcido, alegre, lançando livro de biografia no hall do Teatro, acessível, autografando, tirando fotos e conversando com todos, como foi naquela noite.
Nelson Sargento foi um dos primeiros a tomar a primeira dose da vacina contra Covid-19, em janeiro passado, numa cerimônica simbólica ao lado do ator Orlando Drummond, de 101 anos, e outros idosos. Brincalhão como sempre, cantarolou um trecho do seu samba após a injeção: "Agoniza mas não morre / alguém sempre te socorre / antes do suspiro derradeiro..."
Mesmo com a segunda dose no mês de fevereiro, o artista, hipertenso, foi internado semana passada com sintomas do vírus e faleceu hoje aos 96 anos.
"Entre os que receberam duas doses e passou esse tempo, ainda é possível adoecer. É uma minoria", esclareceu o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri, principalmente pelo histórico de saúde de Nelson Sargento, operado de câncer de próstata e a idade avançada.
O sambista, "negro, forte e destemido", como diz a letra de sua canção acima citada, seguiu gratificado, recebeu, antes do suspiro derradeiro, as flores em vida, o carinho, a mão amiga dos que amam a música brasileira.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

todos os acordes


foto Acervo Arquivo Nacional

Severino Dias de Oliveira, paraibano, o Sivuca, o maestro, o compositor, o cantor, o multi-instrumentista... o sanfoneiro.

No seu fole os acordes do choro e música clássica ao frevo e xote, do forró e baião ao blues e jazz...
Falecido em 2006, aos 76, 91 anos hoje do nascimento do "cabelo de milho", apelido que ele adorava tanto que colocou como título de uma cancão que compôs com Paulinho Tapajós, gravada no disco homônimo em 1980.
Abaixo, Sivuca no Festival de Vozes da TV Tupi, anos 60.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

a perfeição é uma meta


No final da canção O estrangeiro, do disco homônimo de 1989, Caetano Veloso canta "some may like a soft brazilian singer / but i've given up all attempts at perfection". Arriscando aqui uma tradução livre, algo como “alguns podem gostar de um agradável cantor brasileiro / mas estou dando tudo para alcançar a perfeição".

Sempre antenado no circuladô do mundo, o compositor baiano cita entre aspas e parênteses um trecho do texto-manifesto de um dos mais importantes discos dos anos 60, o conceitual Bringing It All Back Home, de Bob Dylan, 1965.
Exposto na contracapa do álbum, a longa apresentação do então jovem cantor, disserta sobre as composições, a estética das músicas gravadas, a introdução das guitarras, tornando um disco dividido entre o acústico e o elétrico.

Dylan, influenciado até a medula pela geração beat, é declaradamente naqueles anos compulsivos, um cantor de protesto, contra o racismo, pelos Direitos Humanos, e reforça no disco sua postura em músicas discursivas, como uma marca, um grito, um desenho sonoro que se perpetuaria.
Reconhecia suas limitações vocais, mas precisava cantar, intermediado por uma gaita, as suas inquietações naquela mistura de folk, rock e blues. Não era nenhum, dizia-se, “soft brazilian singer”: não era nenhum João Gilberto. O cantor brasileiro já conquistara o público americano em 1959 com o seminal Chega de saudade, e acabara de lançar, em 1964, o ótimo Getz/Gilberto. Dylan não era “um agradável cantor brasileiro / mas estava dando tudo para alcançar a perfeição”.
E a perfeição foi atingida por sua interpretação única, anasalada, arraigada em letras dissecadas da alma. Um álbum que tem Subterranean Homesick Blues, Mr. Tambourine Man, It's All Over Now, Baby Blue faria mesmo a história reconhecer a perfeição e Caetano citar a referência do estrangeiro ao bruxo de Juazeiro.
Hoje 80 anos de idade de Mr. Robert Allen Zimmerman.

três mães

A Lua Crescente é virginal, delicada. É donzela.
A Lua Cheia é grávida, prenhe de vida. É mãe.
A Lua Minguante é sábia, poderosa. É anciã.
Nessas três fases da Lua se configura a crença da religião matriarcal na mitologia celta. De lado, por último, para conservar o três como número sagrado, a Lua Nova significa a Rainha Fantasma, a morte para onde seguia a Minguante.
Para os celtas, assim como em todas as religiosidades, doutrinas e fé, a morte não é o fim, é um recomeço, início de um novo ciclo. As fases da lua se repetem. Os seres continuam. A força é da mulher, senhora do destino, sacerdotisa, druida, que alinha o trabalho da humanidade em seus ciclos menstruais.
Boa parte da Europa Ocidental pertencia a povos designados celtas. E por lá se comemora hoje o Dia da Tríplice Deusa.
Que a Lua em seus ciclos ilumine este planeta adoentado.

domingo, 23 de maio de 2021

cachorrinho triste numa manhã de sábado...


Da série para o projeto ©Paredes Descascadas

As pedras nas ruas parecem falar diante os seres que passam. O chão das ruas sob os pneus dos carros, as calçadas sob nossos passos, os muros que nos ladeiam. Precisam do nosso olhar para que nós mesmos nos humanizemos mais.
Numa parede de uma rua no bairro de Messejana, Fortaleza, flagrei um pequeno cachorro com um olhar triste. Ali, fossilizado pelo abandono, ou por ter se perdido de seu dono. Todo seu corpo como uma lápide na estampa derradeira. Sem coleira, na eternidade do esquecimento. Pode ser que não esteja mais lá, sumiu com o tempo que não para.
Esses flagrantes capto com a câmera do Smartphone por onde passo e às vezes fico minutos imaginando as horas que o tempo lapidou essas imagens. Acredito esse tempo-artista como o cinzel de Da Vinci, o pincel de Chico da Silva, a goiva de J. Borges.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

o primeiro espelho


Repostando para sempre lembrarmos dos grandes nomes da literatura brasileira. Este país é também inteligência, beleza, coragem. E não podemos sucumbir à barbárie institucionalizada.

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A poeta, contista, romancista e tradutora Olga Savary, que faleceu em 15 de maio do ano passado, e hoje faria 88 anos, demorou duas décadas para escrever, organizar os poemas e decidir publicar seu primeiro livro, Espelho provisório, em 1970. E só o fez por insistência dos amigos Ferreira Gullar, que prefaciou, Nélida Piñon, Ziraldo, o pintor e gravurista Carlos Scliar, que a desenhou na capa como um croqui Modigliani, Antonio Houaiss, e do cartunista Jaguar, com quem foi casada.
Eles persistiram e venceram a timidez de Olga, aos 37 anos, em “se expor”. São poemas muitos deles publicados a varejo, com o pseudônimo de Olenka, em jornais de Belém, sua terra natal, Belo Horizonte, e Rio de Janeiro, onde vivia desde 1942, vindo de Fortaleza, onde morou por seis anos. Amigos e cidades espelhadas.
Editado pela José Olympio, as páginas são em papel de delicadeza rudimentar, um pergaminho afetivo. A segunda e terceira capas (orelhas) sem nada escrito, ouvindo o silêncio de quem lê. A quarta capa toda branca, sem foto, nem, claro, o sistema de identificação dos códigos de barra com ISBN - criado em 1969, oficializado em 1972, e obrigatório em 2003 -, não há nada, só o vazio como a lembrança preenchida por um poema que se encantou. Molduras do espelho.
São 88 belos poemas divididos em duas partes, Pássaros da memória e Nada termina tudo se renova, em 124 folhas que se espraiam no tempo da autora, nas datas em que nasceram, nas cidades onde os sentimentos dos versos foram cartoriados. Rio, nov, 1951, Belém, março, 1952, Rio das Ostras, abril, 1969... assim Olga registra no final de cada poema, o que nos faz imaginar o chão de um lugar do passado em que a poeta pisou com seu coração. Luzes espelhadas.
Espelho provisório ganhou o Prêmio Jabuti 1971 na categoria Autor Revelação. Até 1998, quando publicou seu último livro, Repertório selvagem, poesia reunida, mais de 20 títulos iluminam a vida de Olga Savary, além de identificar seu pensamento nas traduções que fez de Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Cortázar, Carlos Fuentes, García Lorca, Mário Vargas Llosa, e tantos outros da literatura hispânica, e também dos mestres do haicai, Bashô, Buson e Issa. Reflexos do espelho.
Nesse seu primeiro livro há uma das mais belas dedicatórias que já li: “Para Bruno Savary, meu pai, amigo de infância”. O espelho definitivo da poeta.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

é você que ama o passado...


"Belchior", em bom português, é uma profissão, mercador de objetos velhos e usados, como bem explica o verbete do Dicionário Aurélio. Aquela pessoa que compra de tudo, que vende de tudo.

O senhor aí da foto é Joaquim da Cunha, que veio de sua terra natal em Portugal para viver em Porto Alegre, e montou essa casa de comércio, que existiu por 50 anos. Muito querido na capital gaúcha, 'seu' Joaquim faleceu em 1995, aos 100 anos, e deixou muita saudade a uma vasta freguesia.
Sua loja, que chegou a ser um local de curiosidade, vendia de soda cáustica a televisores, de veneno para ratos a pilhas para rádio, de moedas antigas a tinta para canetas... quem entrava lá ficava encantado com tantas coisas empilhadas, instrumentos musicais, bússola, pregos antigos oxidados, sinos, leque, quadros, lampiões, louças, serrotes, câmeras fotográficas...
Uns diziam que ambiente abarrotado dos mais inusitados objetos tinha desagradável odor de mofo, outros sentiam o saudável aroma dos tempos idos.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Catarina do Alentejo


Repostando para lembrarmos na história a sempre necessária luta contra o fascismo.

O texto faz parte do meu livro ©Crônicas do Olhar que será lançado pela Editora Radiadora.

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Em Alentejo, a linda região no centro-sul de Portugal, as paisagens estendem um paraíso de olivais e vinhas, alongam-se em aldeias pitorescas, prados cheios de flores e florestas que respiram beleza.

Mas um fato histórico marca com sangue esse cenário. No dia 19 de maio de 1954 foi brutalmente assassinada a jovem camponesa Catarina Eufémia, de apenas 26 anos.

Naquela década, Portugal vivia sob a ditadura de Antonio Salazar, que perdurou de 1932 a 1968, governando nos moldes do fascismo, apoiado pela doutrina social do catolicismo, exercendo o nacionalismo autoritário, orientado pelo corporativismo de Estado.

Catarina Eufémia era uma trabalhadora agrícola no Baixo Alentejo, assim denominada a região onde a capital é Beja. Ceifeira, como centenas de compatriotas, com três filhos pequenos, ajudava no sustento da casa na colheita de cereais, amendoais, ervas.

A luta por melhores condições de trabalho e salário digno vinha se intensificando desde a década de 40. Greves decorreram. As mulheres cada vez mais participativas nas reivindicações.  

Naquele dia 19, uma manhã de quarta-feira, Catarina uniu-se a treze trabalhadoras para conversar com o feitor da propriedade, obter um aumento de apenas dois escudos em suas exaustivas jornadas. A Guarda Nacional Republicana foi acionada, junto com agentes da PIDE, a polícia política salazarista, para reprimir as grevistas. Um tenente de nome Garrajola interpelou o grupo de mulheres perguntando o que elas queriam.

- Quero apenas pão e trabalho – respondeu Catarina, de imediato e destemida.

O militar considerou a resposta insolente e deu-lhe uma bofetada, jogando-a no chão. Catarina levantou-se, e altiva, disse, desafiando-o:

- Já agora mate-me.

O tenente disparou três tiros lhe espedaçando os ossos.

Há pelo menos três bons livros, A Morte no Monte - Catarina Eufémia, de Jose Miguel Tarquini, 1974, Anatomia dos Mártires, de João Tordo, 2013, e O assassino de Catarina Eufémia, de Pedro Prostes da Fonseca, 2015, que abordam de forma biográfica, romanceada e até investigativa, o que aconteceu naquele dia, o que antecedeu na vida de Catarina Eufémia e o que sucedeu na história, tornando-a símbolo da luta contra a exploração e a repressão, uma lenda da resistência antifascista pelo Partido Comunista Português, sem ter sido militante.

Conta-se que além de estar com um dos filhos no colo, de oito meses, que se machucou na queda no confronto com o tenente, Catarina estaria grávida. "Não foi uma, foram duas mortes!", gritaram os trabalhadores diante o corpo no dia do enterro. O relato da autópsia, com os detalhes dos estragos que as balas à queima-roupa fizeram é chocante. 

Poetas portugueses como Sophia de Mello Breyner, Eduardo Valente da Fonseca, Francisco Miguel Duarte, José Carlos Ary dos Santos, e tantos outros, dedicaram belos e doloridos poemas em memória de Catarina Eufémia. 

Um deles, Cantar Alentejano, de Antonio Vicente Campinas, foi musicado por Zeca Afonso em 1971, uma  bela canção réquiem gravada no disco Cantigas de maio.

 “Acalma o furor campina / que o teu pranto não findou / quem viu morrer Catarina / não perdoa a quem matou”, lembra um trecho do poema.

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Na foto de André Paxiuta, ilustrativa para esta postagem, o olhar desconhecido de uma transeunte cruza o olhar de Catarina estampado na parede da memória em sua cidade, Baleizão. Os verdejantes ventos de Alentejo 67 anos depois sopram o pão de sua história. Catarina, ceifeira, retirava o trigo do chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

o múltiplo Serjão


foto Arual Oliveira

- O que é mesmo que você vai me perguntar? - indaga o compositor e artista plástico Sérgio Pinheiro.

Digo-lhe que tenho um projeto de um documentário longa-metragem sobre um período importante na história da música cearense, um recorte que inicia no final dos anos 60, com a formação do que se denominou Pessoal do Ceará, até 1980, com o lançamento do disco duplo Massafeira. Serjão está nesse álbum com a faixa Buenos Aires (Citroen), composição dele com Stelio Valle.
Acrescento que é importante sua fala, ouvir suas histórias sobre os três dias de encontros com tantos novos artistas no Theatro José de Alencar, como foram as gravações no Rio de Janeiro etc etc etc...
Ele franze a testa e solta uma risada!
E tudo passou a ser mais alegria a bordo de suas histórias. Durante uma tarde na ampla sala de seu apartamento, Serjão falou sobre múltiplos fatos marcantes na história da música cearense, as noites de doses de canções no Bar do Anísio, as longas conversas com Belchior quando compôs Apalo seco, a inspiração para sua Citroen.
Esse encontro aconteceu em 2015, quando comecei a fazer alguns registros e guardar para o documentário Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, que será lançado no final deste ano.
Sergio Pinheiro partiu hoje, aos 72 anos, em seu Citroen para outros Cearás... foi ao encontro de seu amigo, o querido poeta Brandão, que nos deixou no começo deste mês.
Nossos corações num abraço de saudade... Franzimos a testa e choramos sua falta, querido Serjão.

sábado, 15 de maio de 2021

o melhor dos temporais aduba o jardim


Quando ele nasceu, um anjo torto, desses que viviam entre as serras do seu pequeno Cachoeiro, disse, “vai, Sérgio, ser gauche na vida”.

Parafraseando os versos do clássico poema de Drummond, remeto-me ao começo de 2011 quando o Centro Cultural Banco do Brasil iniciou o projeto Anjos Tortos – A MPB Gauche na Vida, em que homenageava vários cantores e compositores da música brasileira que têm como característica, e não necessariamente “rótulo”, a originalidade movida pela liberdade em suas criações, sem sucumbir aos ditames da indústria fonográfica para fazer “sucesso”.

Entre esses anjos enviesados merecidamente glorificados pelo projeto, Sergio Sampaio foi surpreendentemente celebrado na voz de Eugênio Avelino, o conhecido Xangai. Qualquer estranheza inicial causada com a relação distinta no estilo, comportamento e proposta musical entre os dois artistas, foi desfeita em uma hora e meia de show. Tinham tudo a ver e ouvir.

Xangai com a afinadíssima viola e sozinho no palco, com sua belíssima e singular voz de canário, conquistou a plateia, na sala do CCBB em Brasília, cantando as canções do amigo. Padrinho do filho de Sergio Sampaio, João, Xangai contou “causos” quando os dois moraram juntos no Rio de Janeiro, no começo da carreira, quando um se preparava para colocar o bloco na rua e o outro nem imaginava um grande encontro com Elomar, Geraldo Azevedo e Vital Farias.

A relação de saudável compadrio através da sensibilidade que os uniu ao longo do tempo, foi exposta e ilustrada em melodias e histórias naquele show. Na voz de Xangai a essência e o significado da música que Sérgio Sampaio imprimiu no cancioneiro brasileiro. O canto agreste do baiano soube muito bem incorporar a fúria modernista do compositor capixaba.

Sérgio Sampaio, de certa forma, foi ofuscado pelo próprio sucesso de “Eu quero é botar o meu bloco na rua”, involuntariamente lançada como uma moderna marcha-rancho de carnaval, em 1973, e por outro lado, sem muito interesse da mídia que o via como um magrelo esquisito, largado na vala comum dos malditos em plena ditadura militar, mais condescendente ao romantismo nem bossa nova nem rock-and-roll do epônico rei da juventude. 

De 1982, quando lançou seu último disco de estúdio, Sinceramente, até os anos 90, o cantor viveu totalmente afastado da mídia, em autoexílio reflexivo, quieto em suas perplexidades, morando nesse período crepuscular entre Brasília, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Uma de suas mais belas composições, Ninguém vive por mim, penúltima faixa do lado B do seu segundo disco, Tem que acontecer, de 1976, é uma espécie de manifesto íntimo, uma cartografia de seu perfil, um mapeamento do coração como artista neste país sempre ameaçado pelo memoricídio.

Em 1993 Sérgio Sampaio realizou um dos seus últimos shows no palco do Cine Metropolis da Universidade Federal do Espírito Santo. Sozinho, num banquinho e violão, acompanhado em três músicas pelo amigo Zé Moreira, o cantor apresentou dezessete canções de seu rico repertório. Gravado em mídia VHS pelo cinegrafista Talmom Jr., é um dos mais importantes registros de Sérgio Sampaio.

Animado com uma certa repercussão de seu trabalho, regravações por outros cantores, preparava o retorno com um disco de canções inéditas, que seria gravado pela paulista Baratos Afins, em 1994. Mas no dia 15 de maio daquele ano, com a saúde agravada por pancreatite, o cantor faleceu aos 47 anos.  

Abaixo, um trecho do show. O “boêmio cantor da lua / doido que não se situa” e a sintomática canção que citei. “Fui procurar viver além de mim”, diz em um dos versos.

Íntegro, não se entregou. Foi o melhor dos nossos temporais.

 

quinta-feira, 13 de maio de 2021

a madrugada de Chet Baker

foto João Pires / Estadão, 19/8/1985

Em 1985 o trompetista e cantor de jazz Chet Baker esteve no Brasil para apresentações no Free Jazz Festival, Rio de Janeiro, e no Palace, casa de shows em São Paulo, hoje extinta.

Naquele ano Baker tinha na banda dois músicos brasileiros, o baixista Sizão Machado e o pianista Rique Pantoja, com quem gravou o ótimo disco Chet Baker & The Boto Brasilian Quartet, em 1980, e o duo Chet Baker & Rique Pantoja, 1987, igualmente ótimo.
A passagem de Chet Baker pelo Brasil é, lamentavelmente, mais lembrada pelo problema que ele teve com drogas no Hotel Maksound Plaza, na capital paulista. Na madrugada do dia 21 de agosto, o doutor Walter Almeida, médico contrato pela produção, que dormia no quarto ao lado, foi chamado às pressas para socorrer o cantor, desmaiado por uma overdose. Reanimado e milagrosamente salvo, o médico teve dificuldades em contê-lo nas terríveis crises de abstinência nos horários antes do show.
A imprensa noticiou a apresentação em São Paulo como decepcionante, frustrante, o que não confere com o testemunho de muitos amantes insuspeitos do jazz, que viram o show e têm outra opinião: um momento inesquecível, impecável.
Esses relatos e muitos outros sobre a vida vertiginosa do talentoso músico, estão no livro No fundo de um sonho - A longa noite de Chet Baker, biografia definitiva escrita por James Gavin, lançada em 2002.
O que não ocorreu naquela madrugada no quarto de hotel em São Paulo, graças ao médico brasileiro, aconteceu três anos depois, na madrugada de 13 de maio, quando Chet Baker caiu-flutuou-levitou de uma janela de hotel em Amsterdan.
Uma queda misteriosa, um triste sopro no silêncio da noite, "in a romantic mist...", como diz a letra de sua canção Let’s get lost.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

"...e amores que estendem os braços..." *

  


* digo no poema Ventania, publicado no meu primeiro livro Roteiro dos pássaros, Editora Lourenço Filho, 1981.

Musicado por Ricardo Augusto, foi gravado por Mona Gadelha no disco Cidade blues rock nas ruas, Brazilbizz Music, 2013.
Com arranjos de Alexandre Fontanetti, a belíssima interpretação de Mona abre o programa Mulheres da América, produzido e apresentado por Eliana Guedes, sempre às segundas-feiras pela web Rádio Elétrica, de Porto Alegre. O trabalho do programa de rádio é um dos melhores e substanciais projetos musicais desse universo virtual de imagens e sons que vivemos de informação, arte e necessário deleite para não sucumbirmos ao caos. No ar há três anos, Eliana a cada edição apresenta compositoras e cantoras de todas as Américas, de todos os tempos, gêneros e desejos. A pauta é conduzida por um tema específico, enriquecida pelos textos que ela desenvolve, através de sua voz tão límpida, tão na essência de cada sílaba pronunciada.
Desde ano passado tenho participado da produção do programa, escrevendo textos, como foi para as edições sobre o centenário de nascimento de Eliseth Cardoso, e recentemente sobre os 30 anos da morte de Gonzaguinha.
No programa que foi ao ar segunda-feira e está desde ontem no Spotify, Eliana escolheu dez poemas do meu terceiro livro, Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019. A cada preciosíssima leitura sua, escolhi canções nas vozes de Margo Timmins, Edith Piaf, Téti Rogério, Maria Bethânia, Giana Viscardi, Emilie-Claire Barlow, Rita Benneditto, Núbia Lafayete, Mercedes Rosa. Há uma unidade de pulsação na elaboração de Eliana: os poemas, seu dizer os poemas, as letras das músicas, as vozes femininas. Amores que estendem os braços.

terça-feira, 11 de maio de 2021

all be right


Na filosofia rastafari, o corpo é um templo intocável, que não se pode alterar, modificar. Uma das características desse pensamento são as barbas crescidas e os cabelos dreadlocks.

Bob Marley sofria de câncer de pele, que se desenvolveu fortemente sob uma unha infeccionada, no final dos anos 70. Segundo os médicos à época, se amputasse o dedo do pé, as chances seriam positivas de a doença ser curada. O cantor, além de seguir fielmente a doutrina, teria se negado a perder o dedo, embora tenha muito se divulgado que ele se preocupava que a cirurgia o fizesse parar de dançar e afetasse sua carreira, no auge de popularidade e reconhecimento. Preferiu um tratamento alternativo, com um médico naturalista alemão.
Mas em 1981, a doença avançou de uma forma incontrolável. O câncer se alastrou pelo estômago, pulmões, chegando ao cérebro. Marley morreu aos 32 anos, em sua casa na Jamaica, consolando a própria mãe, dizendo-lhe "mommy, no cry. I'm going ahead to prepare a place."
A fotógrafa norte-americana Kim Gottlieb-Walker, 74 anos, notória por criar ao longo de 50 anos de carreira um rico portfólio de personalidades do mundo artístico, foi quem mais fotografou Bob Marley, em shows, bastidores, em casa.
Entre 1975 e 1976, ela e o marido Jeff Walker acompanharam e documentaram o dia a dia do cantor e de outras lendas do reggae, Bunny Wailer, Lee “Scratch” Perry e Peter Tosh.
Esse trabalho resultou nas publicações "Bob Marley: Portrait inédit en fotos" e "Bob Marley And The Golden Age Of Reggae", lançadas em 2011, em lembrança aos 30 anos de sua morte. À época do lançamento ela falou sobre o trabalho:
“Em vez de tirar fotos, o processo é de doação. A pessoa se confia a mim e, em troca, eu respeito sua privacidade e sua sensibilidade e faço o meu melhor para capturá-las da maneira mais bela e expressiva - um ato mútuo de doação. Eu me vejo como um 'anjo da gravação' que está lá para documentar o que acontece para a posteridade - um historiador mais que um artista - capturando os momentos que merecem ser preservados. ”
A foto abaixo faz parte do primeiro livro.
Hoje Marley faria 76 anos.
O wailer continua:
"my feet is my only carriage / so I've got to push on through... / but while I'm gone / I mean: everythings gonna be all right!"

segunda-feira, 10 de maio de 2021

canções permanentes para uma poesia provisória


Eliana Guedes, produtora e apresentadora do programa musical Mulheres da América, de Porto Alegre, RS, pela web Radio Elétrica, selecionou dez poemas do meu livro "Poesia Provisória", Editora Radiadora, 2019.

Lido cada poema, uma canção nas vozes de Mona Gadelha, Edith Piaf, Téti Rogério, Maria Bethânia, Margo Timmins, Giana Viscardi, Rita Benneditto, Núbia Lafayete, Mercedes Rosa.
A apresentação será hoje às 20h, www.radioeletrica.com

domingo, 9 de maio de 2021

o segundo domingo de maio


Poema da polonesa Wislawa Szymborska, escrito em 1967, publicado no livro Sto Pociech.

Inspirada pelas notícias que chegavam da bestialidade da guerra no sudeste asiático, a poeta escreve os mais belos e tocantes versos sobre o vínculo básico de amor e proteção, quando um ser sobrevive pelo outro.

sábado, 8 de maio de 2021

mais um ano


1976 foi um ano marcante na história brasileira. Aliás, toda aquela década em plena ditadura militar, com o AI-5 em vigor, a galope, massacrando a liberdade, corroendo as instituições, os podres poderes inventando a tristeza.

Com Geisel no poder, o governo ensaiava uma distensão para abertura política institucional, lenta, gradual e segura, diziam eles. Tudo muito raso. As perseguições, as torturas, os desparecimentos continuavam. O metalúrgico Manuel Fiel Filho é morto nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo; três dirigentes do Partido Comunista do Brasil são mortos após emboscada na capital paulista, a chamada Chacina da Lapa; o Congresso Nacional regulamenta a Lei Falcão, controlando a propaganda eleitoral no rádio e na televisão; o ex-presidente Juscelino Kubitschek morre misteriosamente num acidente de carro na Rodovia Presidente Dutra, quinze dias depois de dizer que “Estão querendo me matar, mas ainda não conseguiram”, quando desmentiu a notícia que teria morrido em sua fazenda, em Luziânia, Goiás; o também ex-presidente João Goulart é encontrado morto em sua fazenda em Corrientes, Argentina, oficialmente vitimado de ataque cardíaco, mas com suspeita que tenha sido assassinado por agentes da Operação Condor, aliança político-militar entre os diferentes regimes militares da América do Sul.
O poço continuava fundo.
Na música popular brasileira, uma resistência a todo esse cenário dantesco, criando a beleza, fazendo das tripas o coração da esperança. Foi o ano de lançamentos de discos importantíssimos, pulsantes nesse sentido: Elis Regina com Falso brilhante e o sucesso de Como os nossos pais e Velha roupa colorida, composições de Belchior, e deste, no mesmo período, o grande álbum Alucinação; o compositor Cartola, na janela de sua casa ao lado de Dona Zica na capa de seu segundo disco diz que O mundo é um moinho e por isso As rosas não falam; Raul Seixas estoura com 100 mil cópias do single pleonástico Há dez mil anos atrás bradando que viu o amor nascer e ser assassinado; João Bosco lança o sintomático Galos de briga, fortificando uma verdadeira compatibilidade de gênios com Aldir Blanc; Chico Buarque através de fitas k-7 e vinis manda notícias para o amigo teatrólogo Augusto Boal, exilado em Portugal, dizendo que "a coisa aqui tá preta".
Muitos outros discos substanciais compõem esse mostruário na história da música brasileira naquele 1976 que não acabava. Um deles, que embora tenha tido reconhecimento quando lançado, mas que não tem o merecido destaque nessa prateleira, é Cuban Soul - 18 Kilates, terceiro disco de estúdio do cantor, compositor e guitarrista Cassiano, autor de sucessos na voz de Tim Maia, como Primavera (Vai chuva) e Eu amo você, em parceria com Silvio Rochael, que abrem o lado B do disco de estreia, 1970. Além das canções, os riffs inovadores da guitarra do autor.
Mas o paraibano Genival Cassiano dos Santos, que ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro, é muito mais do que hit parade no vozeirão de Sebastião Maia. No começo dos anos 60 apaixonou-se pela batida da Bossa Nova, e participou da formação do Bossa Trio, mesclagem rítmica de samba-jazz que derivou no quarteto Os Diagonais. Lançaram um disco, em 1969, visivelmente influenciado pela soul music e o rythm and blues. E aí se apresenta toda a potência de Cassiano, juntando o valimento dessas origens de forma sua, autêntica. As nove belíssimas faixas de Cuban Soul expressam as pedras preciosas, os 18 kilates obtidos da mistura de 75% de ouro puro de harmonias com 25% de ligas brancas no paládio dos timbres vocais do cantor. Uma beleza para se tocar nos sulcos da vitrola várias vezes! Parece que estamos ouvindo em uma configuração inusitada um cruzamento de Ortis Redding com Steve Wonder. Obra-prima!
Cassiano gravou o último dos seus quatro discos autorais em 1991, “Cedo ou tarde”. Com o desinteresse do mercado cruel das gravadoras, sua existência passou a ser pontuada por regravações de suas músicas por outros cantores e um disco tributo frustrante lançado em 2000. O artista se recolheu tristemente em seu anonimato num pequeno apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. Adoeceu, perdeu parte do pulmão direito.
Depois de três décadas totalmente esquecido, Cassiano voltou ao noticiário no começo da noite de ontem, não necessariamente pela sua extrema relevância na história da nossa música, mas por ser mais um número na fatídica estatística de mais de 400 mil mortos por Covid-19 neste país à deriva, sob um desgoverno genocida com uma alma sebosa na presidência, que debocha dos acometidos pelo vírus, imitando a falta de ar, o afogamento no seco. Parece uma reedição excruciante daqueles anos de chumbo da década de 70.
Aos 77 anos, entubado num leito de um hospital público no bairro de Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro, Cassiano morreu também de Brasil.
A lua e eu, a mais conhecida do disco Cuban Soul, é a última faixa do lado B. Os versos iniciais preconizaram o final de carreira do grande artista Cassiano, a condenação sumária ao esquecimento: “Mais um ano se passou / e nem sequer ouvi falar seu nome...”

sexta-feira, 7 de maio de 2021

na casa de Aurélia


"No Lugar ArteVistas no Youtube. Hoje. 19h. Live da Casa D'Aurélia.

Nosso encontro hoje é com Nirton Venâncio. Antes de tudo poeta, aí sim o cineasta se manifesta com todo o espírito memorialista e o zelo afetivo que lhe acompanha desde sempre, desde muito menino quando observava as mulheres da sua família, suas ancestrais, do canto da casa em Crateús, sua cidade natal, e que foi dar em 'Cotidiano Perdido no Tempo', com a participação da nossa saudosa Antonieta Noronha e voz de Henriqueta Brieba, também saudosa. Vendo seus filmes, lendo seus escritos, em poemas ou não, a delicadeza do olhar se faz presente, seja na direção dos seus ou quando se detém sobre a obra alheia. Não será diferente, certamente, quando nos encontrarmos com o documentário Pessoal do Ceará, ao qual se dedica há anos, sobre o movimento artístico que tanto marcou nossa história, e que aguarda brechas na pandemia e no pandemônio que nos ataca para poder finalizar.

Tive passagem breve num set dirigido por Nirton Venancio sobre o lixo no aterro sanitário no Jangurussu. Uma das minhas primeiras experiências em cinema. Foi inesquecível. Me marcou seu modo de articular e dirigir situação tão complexa com gentileza e maestria. Pena que não temos registro desse trabalho, que foi uma encomenda para uma entidade inglesa.

No mais, a ressonância da voz de seu filho mais recente, Poesia Provisória, se torna mais audível ainda através de outras, como a voz de Rubi e a de Mona Gadelha, entre outros artistas. Um prazer esse encontro com Nirton!"
- Marta Aurélia, atriz, cantora, jornalista

a cantora do amor demais


"Rua Nascimento Silva, cento e sete / você ensinando pra Elizete / as canções de canção do amor demais..."

- Começa Vinicius de Moraes na linda Carta ao Tom, composta em 1974, em parceria com Toquinho, "endereçada" ao seu amigo Jobim.
Relembrando uma Ipanema que "era só felicidade", que "era como se o amor doesse em paz", com "esse Rio de amor que se perdeu", como continua a letra, a musa citada é a grande diva Elizete Cardoso, a voz enluarada do nosso samba-canção, que nos deixou em 1990, ao final da manhã de 7 de maio, aos 69 anos. Elizete passou três anos se tratando de um câncer no estômago, diagnosticado em uma turnê no Japão, quando se sentiu mal no hotel.
Mesmo doente, ela comparecia aos seus shows, muitas vezes não conseguindo ir até o final, de tão debilitada. O público se emocionava e aplaudia a beleza daquela mulher e seu canto de amor demais.