- Nós, escritores, estamos sempre dançando na beira do abismo – diz Yukihiko Oumi.
- E o abismo é muito maior se não mergulhamos nele – completa Hannah Visser.
Ele é um escritor e tradutor japonês, que prepara um livro de linguagem híbrida, sobre a transformação das pessoas na sociedade conservadora de seu país, com poemas baseados em fotografias. Ela é uma escritora brasileira e tradutora de si, enfrentando o casual bloqueio criativo, que quer escrever um livro sobre exatamente não sabe o quê ainda, mas marcada pela imagem que vira na praia do Rio de Janeiro de nadadores treinando horas e horas exaustivamente.
O diálogo acima, assim como outros de estrutura de um haicai em essência, é do filme Mulher Oceano, longa-metragem de estreia como cineasta da atriz
Djin Sganzerla
, que escreveu o roteiro com Vana Medeiros
, e protagoniza o papel da escritora. Com locações no Rio de Janeiro e Tóquio, estreou no Festival de Cinema de Providence, Rhode Island, EUA, integrou a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo em 2020, e foi premiado como Melhor Filme no Porto Femme International Film Festival – Portugal.Aliás, dois papeis cabem a Djin, que incorpora também a personagem Ana Bittencourt, nadadora e praticante de travessia oceânica. Aparentemente as duas mulheres não compartilham nenhuma conexão, até que suas vidas começam a interferir uma na outra, estranhamente ligadas pelo mar.
Hannah, que antes de viajar presenciou Ana, entre aqueles nadadores, rasgando o horizonte em mar aberto com vigorosas braçadas, metaforicamente mergulha num oceano de auto descoberta, instigada por suas experiências no Japão. O fôlego com que a nadadora Ana dança nas águas abissais do Atlântico carioca é simetricamente o abismo das águas do oceano interior que a escritora desafia longe de casa.
Mais um advérbio na composição do filme: como diretora Djin Sganzerla assume tripla responsabilidade. E resulta muito bem nesse olhar triangular de criadora e criaturas. Com ótimo domínio no trabalho de narrativa minimalista, as cenas têm longas pausas entre as falas, afinal, o silêncio é também um verso em um poema. Num filme, ouve-se o interior quando se olha a imagem lapidada na ação.
O ficcional e o documental em Mulher Oceano se mesclam espontaneamente ao inserir no enredo cenas reais das Amas japonesas, mulheres que mantém viva a tradição de pescar com as mãos, colhendo conchas de algas nos abismos do Pacífico, subindo para respirar por alguns segundos. Hannah colhe suas algas de memória, perplexidade e indefinição, para escrever e não sucumbir, entregando-se a estar sozinha nas profundezas de si, nesse pélago existencial, longe de apenas respirar na superfície de uma relação afetiva que afogava seu espaço, “cotidiano, fútil e tributável”, como disse Fernando Pessoa na voz de seu outro oceano, Álvaro de Campos. Hannah, que tem Ana no meio de sua grafia e impulso, precisa mergulhar em seu íntimo para o abismo não ficar maior.
Em uma cena andando pelas ruas movimentadas de Tóquio, Hannah diz para Yukihiko que começou a escrever muito nova, como uma necessidade compulsiva, mas demorou a publicar. “Publicar é como morrer”, define o amigo escritor, ao que arremata diante o olhar de espanto dela: “Escrever é mais como viver, constantemente se movendo, mudando...”
Por isso escrever é sempre mergulhar no abismo, para tornar o oceano íntimo navegável. Fazer um filme também. Djin Sganzerla que o diga, nas duas margens de seu oceano mulher, atrás e na frente das câmeras.
.............................................................................................................
Texto extraído do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário