terça-feira, 16 de março de 2021

o mundo desde o fim


Em uma cena do filme Asas do desejo (Der Himmel über Berlin), de Wim Wenders, 1987, o personagem Damiel, interpretado por Bruno Ganz, está na Biblioteca de Berlim. Na sua condição invisível de anjo inclina a cabeça sobre um homem que lê um trecho do Livro de Gênesis, em hebraico: "Ha'Aretz haita tohu-va-vohu"/ “A Terra estava um caos”.

Essa possivelmente seja a cena que resume toda a essência da história e propósito do personagem. Damiel acompanhado de outro anjo, Cassiel, vivido por Otto Sander, sobrevoam a gélida e devastada Berlim, ainda separada pelo Muro. Os dois compõem uma legião de querubins e serafins que vêm a este mundão, que não se toca de tanta estupidez, velar pelas almas perdidas, pelos seres que se desesperam impotentes e em silêncio.
O filme centraliza a narrativa nas andanças, ou mais propriamente, adejos, de Damiel e Cassiel, como Cosme e Damião redivivos, contemporâneos, costumizados fisicamente de humanos, com seus casacos e imensas asas sobre a gabardine. Acompanham as desventuras dos mortais do alto, de baixo e do lado, na mesma latitude e longitude da respiração. Apesar de não sentirem na pele a dimensão das dores e o elevo dos prazeres terrenos, se compadecem e desconhecem em equivalentes proporções.
Damiel, porém, em uma fresta e descuido de sua condição divina, sucumbe, e na horizontalidade das circunstâncias, apaixona-se pela bela trapezista Marion, interpretada pela atriz francesa Solveig Dommartin (1961-2007), então casada com Wenders. Damiel sofre por não poder concretizar o sentimento, o desejo. Para poder tocá-la, precisaria deixar de ser anjo, renegar sua conjunção de imortalidade, e assim, conhecer por dentro o que do alto apreende e presume dos humanos. Um outro anjo o ajuda na escolha entre os dois mundos.
A menção de o Muro de Berlim na história se coloca como uma alegoria, uma representatividade do que separa e do que une, do que se pensa e do que se faz, do que se deseja e do que não se pode. A Terra em permanente ameaça do caos no exterior e no lado de dentro de cada mortal.
Wim Wenders declarou que para a dissertação do roteiro inspirou-se na poética do tcheco Rainer Maria Rilke, no espaço cósmico interior que sua obra reflete, na união e desunião transcendental do homem e o mundo.
Nos créditos finais, o cineasta dedica o filme “a todos os anjos, mas especialmente a Yasujiro, François e Andrej”.
A dedicatória de Wim Wenders, como referência e reverência, expressa o cinema minimalista do japonês Ozu, a paixão na cinematografia do francês Truffaut e o tempo metafísico do russo Tarkovsky: amálgamas de homens e anjos em suas obras.
Em 1998, Hollywood refilmou com o título Cidade dos anjos, dirigido por Brad Silberling, com Nicholas Gage e Meg Ryan, mas sem a presença de um anjo para intermediar a qualidade imortal do original.
Com a Alemanha reunificada com a queda do Muro, Wim Wenders filma em 1993 a continuação, Tão longe, tão perto, com Bruno Ganz e seu Damiel reloaded, agora casado com a trapezista e dono de uma pizzaria.
Como cantou Caetano Veloso em Os outros românticos, gravado em 1989 no disco O estrangeiro, “Anjos sobre Berlim / o mundo desde o fim / e, no entanto, era um sim / e foi e era e é e será sim”, um jogo de palavras e sutil aliteração final que remete a “serafim”.
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Texto do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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