terça-feira, 30 de março de 2021

fotografia alucinada


Em 1975
Januario Garcia era cinegrafista e começou a estagiar como assistente no estúdio de Georges Racz, renomado fotógrafo de origem húngara, naturalizado brasileiro nos anos 50, quando a família veio para cá fugida da Segunda Guerra.

Atuando como freelancer no fotojornalismo, Januário desde os anos 70 participa do movimento negro, e mantém o Documenta Brasileira de Matrizes Africanas, importante arquivo sobre a presença da população negra no país.
Além dessa significativa dedicação, Januário é autor de várias fotos de discos clássicos da nossa música, Chico Buarque, Caetano, Raul Seixas, Lecy Brandão, Edu Lobo, os irmãos
Clodo
,
Climério
e Clésio, Fagner...
É dele a belíssima foto da capa de Urubu, que Tom Jobim lançou em 1976. E com a repercussão desse trabalho Januário foi convidado, naquele mesmo ano, para fotografar um rapaz latino americano, Belchior, que estava gravando o seu segundo LP, Alucinação.
No encontro dos dois na Polygram, saíram para conversar sobre a ideia da capa, que tipo foto o cantor imaginava etc. E foi logo ali pelos corredores e numa sala, ao ver e ouvir Belchior cantar a música-título do disco, que Januário entrou no clima da letra e começou a fotografar.
A foto escolhida na folha de contato foi depois trabalhada na saturação colorida por Aldo Luiz e Nilo de Paula, da direção de arte e layout.
É um álbum antológico em tudo.
Hoje três anos e onze meses que Belchior ficou interessado em outra alucinação.

domingo, 28 de março de 2021

nas ondas do rio Ouse


Em toda obra da inglesa Virginia Woolf, Orlando: uma biografia, de 1928, se destaca por ser considerado um dos livros mais acessíveis em estilo, narrativa e temática semi-biográfica, baseado em parte na vida da amante da escritora, a romancista e paisagista Vita Sackville-West.

Sobre a relação, a jovem cineasta britânica Chanya Button dirigiu em 2018 o drama Vita & Virginia (no Brasil, Um romance nas entrelinhas), onde mostra mais diretamente as conflagrações do relacionamento entre as duas escritoras e como gerou um dos mais emblemáticos livros na literatura modernista.
Em Orlando, Virginia Woolf, com uma impressionante beleza de escrita, discute as ambiguidades da similitude feminina e masculina e seus conflitos com a condição humana. Com um humor elegante, a história discorre o significado da imortalidade da personagem, uma espécie de “Hightlander vitoriana”, que atravessa 350 anos no tempo da história britânica. Em 1992 a cineasta inglesa Sally Porter fez uma adaptação à altura, Orlando, com a ótima atriz Tilda Swinton, papel que lhe deu projeção mundial no cinema.
Em 1989, Bia Lessa dirigiu uma extraordinária adaptação de Orlando para o teatro, com Fernanda Torres no papel. Remontou a peça em 2004, com Betty Goffman substituindo.
A literatura de Virginia Woolf é um desafio para a linguagem cinematográfica, mesmo assim as adaptações feitas demonstram propriedade e uma leitura implícita das imagens que a autora coloca em suas páginas. Mrs. Dalloway, romance histórico de 1925, foi filmado em 1997 por Marleen Gorris, com Vanessa Redgrave no papel da fictícia socialite pós-Primeira Guerra. O livro em si é um dos pontos principais, quase como um personagem, na cinebiografia que o cineasta Stephen Daldry dirigiu em 2002, As horas, baseado no original de Michael Cunningham, onde mostra a existência de três mulheres de gerações diferentes, a editora Clarissa Vaughan (Melry Streep), a dona de casa Laura Brown (Julianne Moore) e ela, Virginia Woolf (Nicole Kidman), cujas vidas são entrelaçadas pelo romance que esta tenta escrever, Mrs. Dalloway.
Ao farol, drama introspectivo em paisagem insular, que Woolf descrevia como “facilmente o melhor dos meus livros”, de 1927, teve uma adaptação pouco conhecida, feita por Colin Gregg para a televisão britânica, em 1983.
Entre romances, ensaios e contos que Virginia Woolf escreveu, considero As ondas, de 1931, que não foi filmado, um dos mais inventivos enredos enquanto narrativa. É sua obra mais experimental. Uma maravilha! Os solilóquios de seis personagens (ou seriam vozes?), se alternam em conceitos individuais e de comunidade, do ser e de todos, do eu e do outro. Um caleidoscópio de índoles, traços psicológicos que vão de encontro à consciência de quem narra, de quem é narrado e de quem lê.
No começo dos anos 20 Virginia Woolf frequentava a Garsington Manor House, um extenso edifício em Oxfordshire, sudeste da Inglaterra, que a aristocrata e proprietária Lady Ottoline Morrell transformou em ponto de encontro de intelectuais famosos, como Aldous Huxley, T. S. Eliot, D. H. Lawrence, principalmente durante a Primeira Guerra, servindo o lugar como refúgio, além de outros imóveis da anfitriã das artes. Amante de alguns, como o filósofo Betrand Russell, Lady Morrell foi patrona influente de muitos escritores. Imagino as formidáveis e surpreendentes conversas nesses encontros!
Seus diários, cadernos, cartas e fotografias desse período de convivência com seus protegidos, estão hoje guardados na Biblioteca Britânica. Relatos e fotos de Virginia Woolf fazem parte desse precioso acervo. A foto abaixo, em frente ao prédio, feita por Lady Morrel, é de 1923. Virginia Woolf tinha 41 anos e acabara de lançar o romance O quarto de Jacob.
O começo da Segunda Guerra Mundial, a destruição da sua casa em Londres durante uma busca, a fria recepção da crítica a sua biografia escrita pelo amigo Roger Fry, tudo veio em ondas para Virginia Woolf depois desse tempo em Garsington.
Na manhã de 28 de março de 1941, dois meses depois de completar 59 anos, a escritora encheu de pedras os bolsos de seu casaco e foi ao encontro das águas profundas do Rio Ouse, perto de sua casa, em North Yorkshire. Foi encontrada três semanas depois, por um grupo de crianças.
"O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Fostes inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom."
Trecho da breve e comovente carta que deixou para ao marido, Leonard Woolf.
Como Orlando, Virginia Woolf atravessa o tempo na história da literatura e em ondas na nossa memória.
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Texto retirado do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela Editora Radiadora.

sábado, 27 de março de 2021


foto ©Renato Mangolim

No final de 2018 estreou no Rio de Janeiro, a peça A peste, baseada no romance homônimo de Albert Camus, dirigida por Vera Holtz e Guilherme Leme, seguindo depois para outras capitais.

Escrito durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1947, a magnum opus do escritor franco-argelino, uma espécie de “versão romanceada da filosofia existencialista”, como bem definiu recentemente o professor Arnaldo Godoy, livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, descreve a história que se passa em Oran, cidade no litoral mediterrâneo da Argélia, assolada por uma epidemia, devastando os habitantes progressivamente.
A excelente montagem teatral centraliza a narrativa no personagem principal, o médico Bernard Rieux, que, em um dia qualquer, ao sair de casa depara-se com um rato morto, e pede ao porteiro do prédio para retirá-lo. Outros aparecem, e ninguém se importa, até o mal chegar às pessoas.
Estruturado em um monólogo, com atuação perfeita de Pedro Osório, a peça desenvolve contornos contemporâneos para apontar e refletir o desmoronamento moral da sociedade e os avanços dos governos de ultradireita, pontuações que estão no original de Camus, na analogia que faz à ocupação nazista na Europa.
Assim como no livro, a montagem de Holtz e Leme espelha também a reavaliação de pequenos gestos que nos mantém juntos no cotidiano, a urgente solidariedade que precisamos ter como resistência diante os flagelos e o autoritarismo. Reflexão que cabe neste momento no mundo inteiro, e especialmente no Brasil, quando temos a infelicidade “no tocante a isso daí” dessa figura abjeta, cara de cão, alma sebosa na presidência da República, desdenhando a gravidade de uma pandemia, encarnando a brutalidade da peste ao tomar atitudes genocidas contra a população. Nos dados de hoje, 27 de março, 21.489 novos casos de Covid-19, muitos desesperados em macas, afogando-se no seco, nos corredores à espera de leitos. São mais de 3.650 mortos no intervalo das últimas 24 horas, já ultrapassando mais 300.000 famílias enlutadas, chorando seus parentes, amigos e vizinhos que não voltam mais.
A lembrança da peça baseada no livro de Camus é oportuna para a data de hoje, Dia Mundial do Teatro, em referência a inauguração do Teatro das Nações, em Paris, 1961. Também se comemora no Brasil o Dia do Circo, reverência ao dia de nascimento, em 1897, do paulista Abelardo Pinto, conhecido como palhaço Piolin.
Ao Teatro e ao Circo, àqueles que nos palcos entregam-se de corpo e alma aos seus trabalhos, e que de forma remota continuam nos colocando no peito insumos de beleza para viver, a todos a nossa mais terna gratidão.
Cuidem de si e dos outros. A vacina ainda é uma esperança em conta-gotas.

domingo, 21 de março de 2021

aparelho de resistência


Durante a 30ª Conferência Geral da UNESCO, em Paris, novembro de 1999, foram criadas as datas 21 de março como Dia Mundial da Poesia e 20 de outubro como Dia do Poeta. No Brasil, é celebrado o Dia Nacional da Poesia, desde 2015, em 31 de outubro, em homenagem ao nascimento do nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade.

Para o dia hoje, a leitura abaixo de um poema necessário para a reflexão para este tempo de pandemia e, principalmente, de pandemônio no Brasil, com esse verme genocida na presidência da República, que não vale um pequi roído.
Escrito em 2015, é de autoria do dramaturgo argentino Alejandro Pablo Robino (foto), erroneamente atribuído nas redes sociais ao escritor e guerrilheiro compatriota Paco Urondo (1930-1976).

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Instruções Para Enganar o Mau Tempo
Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal fudida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Ao seu lado diga bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Atire com o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos. E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos das crianças que eles quererão amoldar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores. E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.

sábado, 20 de março de 2021

conselho de amigo

 


"Aproveita esse bando de saudades que se agitam em teu espírito".

- Esse foi o conselho que Graciliano Ramos deu a um amigo que desabafa suas dores e quer escrever poemas.
O trecho está no livro póstumo Cartas, publicado em 1980, pela Editora Record. Nele estão cartas enviadas pelo escritor alagoano a amigos e familiares, no período de 1910 a 1952.
A leitura proporciona uma relação íntima entre o autor e o leitor, numa curiosa simetria entre o missivista e seus destinatários.
A respeito do amigo poeta que tem um "bando de saudades" no peito, Graciliano reforça dizendo: "espero que me mandes em breve uma chusma de sonetos"...Deve ter mandado. Saudade dá muita poesia.
Hoje, 68 anos de saudade do velho Graça.

sexta-feira, 19 de março de 2021

dia de José


“Olhe o que foi, meu bom José / se apaixonar pela donzela / dentre todas a mais bela / de toda a sua Galileia...”

Trecho de José, versão de Nara Leão da música do egípcio-francês Georges Moustaki, disco Le Métèque, 1969.
A letra faz uma espécie de clamor pela sina do bom carpinteiro ter a responsa de ser pai do Salvador, o rebento sagrado que “andou com estranhas ideias / que fizeram chorar Maria...” A letra ainda questiona o vacilo de José, pois ele poderia “casar com Débora ou com Sara / nada disso acontecia / mas você foi amar Maria...”. Há uma leitura no subtexto que o filho não era dele, e sim do Espírito Santo. José teria sido o primeiro “pai de aluguel”.
No Brasil a música ficou conhecida no pouco conhecido primeiro álbum solo de Rita Lee, quando ainda estava nos Mutantes, Build up, 1970, produzido por Arnaldo Baptista e Rogério Duprat.
A interpretação da futura ovelha negra da música popular brasileira é singela, de uma candura que remete hoje à voz minimalista da amapaense-mineira Fernanda Takai. A música entrou no disco por insistência de Rita Lee, contrariando os produtores que consideravam que “pegava mal roqueristicamente falando.”
Build up, disputado como raridade no mercado cult dos vinis, é aquele em que a cantora está com franja e fazendo um leve biquinho de menina aborrecida.
Hoje é feriado local em minha querida Fortaleza, que já vive feriados há tantos e tantos dias, agravada pelo caos sanitário. Dia de São José, dos Carpinteiros, dos Marceneiros, padroeiro de todo o terral Ceará, dos sertões, vales e serras.
Rogai por nós, meu santo, derramai uma chuva de bênçãos sobre esse povo que de joelhos reza um bocado. Conclame uma legião com São Francisco de Canindé e padre Cícero de Juazeiro do Norte, convoque Sua Nossa Senhora de Assunção, padroeira da cidade, chame padre Mororó, revolucionário que liderou o repúdio de Quixeramobim ao autoritarismo do D. Pedro I, e Bárbara de Alencar, nossa heroína da Confederação do Equador, façam uma frente de querubins e serafins e intercedam junto ao Seu rebento sagrado por nossa saúde, façam o mal inclemente se arretirar, e benzam a sabedoria da ciência na cabeça dos homens.
Desculpe, São José, pedir a toda hora pra chegar logo a vacina para todos, nesse sofrimento que queima o meu Ceará, e o nosso Brasil, com essa excrescência genocida na presidência que não vale um pequi roído.
Acima, pintura São José, o Carpinteiro, de Georges de La Tour, 1640, atualmente no Museu do Louvre.

quarta-feira, 17 de março de 2021

oceano íntimo


- Nós, escritores, estamos sempre dançando na beira do abismo – diz Yukihiko Oumi.

- E o abismo é muito maior se não mergulhamos nele – completa Hannah Visser.
Ele é um escritor e tradutor japonês, que prepara um livro de linguagem híbrida, sobre a transformação das pessoas na sociedade conservadora de seu país, com poemas baseados em fotografias. Ela é uma escritora brasileira e tradutora de si, enfrentando o casual bloqueio criativo, que quer escrever um livro sobre exatamente não sabe o quê ainda, mas marcada pela imagem que vira na praia do Rio de Janeiro de nadadores treinando horas e horas exaustivamente.
O diálogo acima, assim como outros de estrutura de um haicai em essência, é do filme Mulher Oceano, longa-metragem de estreia como cineasta da atriz
Djin Sganzerla
, que escreveu o roteiro com
Vana Medeiros
, e protagoniza o papel da escritora. Com locações no Rio de Janeiro e Tóquio, estreou no Festival de Cinema de Providence, Rhode Island, EUA, integrou a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo em 2020, e foi premiado como Melhor Filme no Porto Femme International Film Festival – Portugal.
Aliás, dois papeis cabem a Djin, que incorpora também a personagem Ana Bittencourt, nadadora e praticante de travessia oceânica. Aparentemente as duas mulheres não compartilham nenhuma conexão, até que suas vidas começam a interferir uma na outra, estranhamente ligadas pelo mar.
Hannah, que antes de viajar presenciou Ana, entre aqueles nadadores, rasgando o horizonte em mar aberto com vigorosas braçadas, metaforicamente mergulha num oceano de auto descoberta, instigada por suas experiências no Japão. O fôlego com que a nadadora Ana dança nas águas abissais do Atlântico carioca é simetricamente o abismo das águas do oceano interior que a escritora desafia longe de casa.
Mais um advérbio na composição do filme: como diretora Djin Sganzerla assume tripla responsabilidade. E resulta muito bem nesse olhar triangular de criadora e criaturas. Com ótimo domínio no trabalho de narrativa minimalista, as cenas têm longas pausas entre as falas, afinal, o silêncio é também um verso em um poema. Num filme, ouve-se o interior quando se olha a imagem lapidada na ação.
O ficcional e o documental em Mulher Oceano se mesclam espontaneamente ao inserir no enredo cenas reais das Amas japonesas, mulheres que mantém viva a tradição de pescar com as mãos, colhendo conchas de algas nos abismos do Pacífico, subindo para respirar por alguns segundos. Hannah colhe suas algas de memória, perplexidade e indefinição, para escrever e não sucumbir, entregando-se a estar sozinha nas profundezas de si, nesse pélago existencial, longe de apenas respirar na superfície de uma relação afetiva que afogava seu espaço, “cotidiano, fútil e tributável”, como disse Fernando Pessoa na voz de seu outro oceano, Álvaro de Campos. Hannah, que tem Ana no meio de sua grafia e impulso, precisa mergulhar em seu íntimo para o abismo não ficar maior.
Em uma cena andando pelas ruas movimentadas de Tóquio, Hannah diz para Yukihiko que começou a escrever muito nova, como uma necessidade compulsiva, mas demorou a publicar. “Publicar é como morrer”, define o amigo escritor, ao que arremata diante o olhar de espanto dela: “Escrever é mais como viver, constantemente se movendo, mudando...”
Por isso escrever é sempre mergulhar no abismo, para tornar o oceano íntimo navegável. Fazer um filme também. Djin Sganzerla que o diga, nas duas margens de seu oceano mulher, atrás e na frente das câmeras.
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Texto extraído do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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terça-feira, 16 de março de 2021

o mundo desde o fim


Em uma cena do filme Asas do desejo (Der Himmel über Berlin), de Wim Wenders, 1987, o personagem Damiel, interpretado por Bruno Ganz, está na Biblioteca de Berlim. Na sua condição invisível de anjo inclina a cabeça sobre um homem que lê um trecho do Livro de Gênesis, em hebraico: "Ha'Aretz haita tohu-va-vohu"/ “A Terra estava um caos”.

Essa possivelmente seja a cena que resume toda a essência da história e propósito do personagem. Damiel acompanhado de outro anjo, Cassiel, vivido por Otto Sander, sobrevoam a gélida e devastada Berlim, ainda separada pelo Muro. Os dois compõem uma legião de querubins e serafins que vêm a este mundão, que não se toca de tanta estupidez, velar pelas almas perdidas, pelos seres que se desesperam impotentes e em silêncio.
O filme centraliza a narrativa nas andanças, ou mais propriamente, adejos, de Damiel e Cassiel, como Cosme e Damião redivivos, contemporâneos, costumizados fisicamente de humanos, com seus casacos e imensas asas sobre a gabardine. Acompanham as desventuras dos mortais do alto, de baixo e do lado, na mesma latitude e longitude da respiração. Apesar de não sentirem na pele a dimensão das dores e o elevo dos prazeres terrenos, se compadecem e desconhecem em equivalentes proporções.
Damiel, porém, em uma fresta e descuido de sua condição divina, sucumbe, e na horizontalidade das circunstâncias, apaixona-se pela bela trapezista Marion, interpretada pela atriz francesa Solveig Dommartin (1961-2007), então casada com Wenders. Damiel sofre por não poder concretizar o sentimento, o desejo. Para poder tocá-la, precisaria deixar de ser anjo, renegar sua conjunção de imortalidade, e assim, conhecer por dentro o que do alto apreende e presume dos humanos. Um outro anjo o ajuda na escolha entre os dois mundos.
A menção de o Muro de Berlim na história se coloca como uma alegoria, uma representatividade do que separa e do que une, do que se pensa e do que se faz, do que se deseja e do que não se pode. A Terra em permanente ameaça do caos no exterior e no lado de dentro de cada mortal.
Wim Wenders declarou que para a dissertação do roteiro inspirou-se na poética do tcheco Rainer Maria Rilke, no espaço cósmico interior que sua obra reflete, na união e desunião transcendental do homem e o mundo.
Nos créditos finais, o cineasta dedica o filme “a todos os anjos, mas especialmente a Yasujiro, François e Andrej”.
A dedicatória de Wim Wenders, como referência e reverência, expressa o cinema minimalista do japonês Ozu, a paixão na cinematografia do francês Truffaut e o tempo metafísico do russo Tarkovsky: amálgamas de homens e anjos em suas obras.
Em 1998, Hollywood refilmou com o título Cidade dos anjos, dirigido por Brad Silberling, com Nicholas Gage e Meg Ryan, mas sem a presença de um anjo para intermediar a qualidade imortal do original.
Com a Alemanha reunificada com a queda do Muro, Wim Wenders filma em 1993 a continuação, Tão longe, tão perto, com Bruno Ganz e seu Damiel reloaded, agora casado com a trapezista e dono de uma pizzaria.
Como cantou Caetano Veloso em Os outros românticos, gravado em 1989 no disco O estrangeiro, “Anjos sobre Berlim / o mundo desde o fim / e, no entanto, era um sim / e foi e era e é e será sim”, um jogo de palavras e sutil aliteração final que remete a “serafim”.
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Texto do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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segunda-feira, 15 de março de 2021

cidades obscuras


Les cités obscures é uma série de desenhos criada pelo escritor francês Benoît Peeters e o desenhista belga François Schuiten, publicada em forma de novela gráfica, lançada pela primeira vez nos anos 80.
Os desenhos contam histórias ambientadas em um continente imaginário, em situações que remetem ao surrealismo do cinema de Buñuel com o universo metafísico de Jorge Luis Borges e traços de ficção futurista do século 19 de Julio Verne. Mas todas referências bifurcam nas avenidas das metrópoles em que vivemos.
E atento, François Schuiten ilustra e atualiza estes terríveis tempos pandêmicos sobre o planeta que padece desde março de 2020.
No Brasil, nos dados de hoje, 15 de março, 11.483.370 casos de Covid-19, muitos em macas, afogando-se no seco, nos corredores à espera de leitos, mais de 2.000 mortos no intervalo das últimas 24 horas, 278.229 famílias enlutadas, chorando seus parentes, amigos e vizinhos que não voltam mais.
Isolamento que dói é uma cama de UTI, ficar em casa, quando podemos, é uma benção diante a impotência de ver os que não têm onde ficar, entre a revolta do país estar entregue a essa alma sebosa demente na presidência, essa cara de cão com seu desgoverno genocida, com seus assessores delirantes na mesma ala da estupidez e poderes legislativo e judiciário fracalhões e vendidos, seu rebanho de seguidores desmascarados fazendo barulho contra isolamento nas portas dos hospitais, sem empatia com a dor alheia que sai nos jornais, agredindo os desesperados com as cores verde e amarela usurpadas, debochando os que no recolhimento se apegam a algum insumo de esperança que arrancam não sabe de onde.
Cuidem de si e dos outros. A vacina ainda é uma esperança em conta-gotas.

quinta-feira, 11 de março de 2021

em defesa da educação

foto acervo Fundação Anísio Teixeira

"Por mais que busquemos aceitar a morte, ela nos chega sempre como algo de imprevisto e terrível, talvez devido seu caráter definitivo: a vida é permanente transição, interrompida por estes sobressaltos bruscos de morte"

- Trecho de uma carta do educador Anísio Teixeira enviada em janeiro de 1971 ao amigo Fernando de Azevedo, professor, crítico, ensaísta, sociólogo, em Belo Horizonte.
Anísio Teixeira, um dos mais importantes nomes da educação no Brasil, foi um dos idealizadores, junto com Darcy Ribeiro, da Universidade de Brasília, em 1961, e reitor a partir de 1963.

A sua trajetória começa por volta das décadas de 20 e 30, quando elaborou a renovação de ensino através do projeto Escola Nova no Brasil, que defendia a universalização da escola pública gratuita em todos os níveis e sem nenhum vínculo com religiões. Desde quando foi secretário de Educação na Bahia, seu estado natal, defendia a municipalização do ensino e promoção de cidadania e saúde.
Sua passagem na direção da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em 1951 e 1952, respectivamente, ampliou a importância da pesquisa e consolidou a educação integral na pedagogia do país.
Em abril de 1964, logo após o golpe, os militares invadiram o campus da UnB, agrediram e constrangeram professores, funcionários e estudantes, destruíram os centros regionais de pesquisas, uma das obras mais importantes na gestão de Anísio Teixeira, que foi sumariamente demitido da reitoria.
À época da carta endereçada a Fernando de Azevedo, o educador trabalhava como consultor da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. No dia 11 de março saiu para almoçar com Aurélio Buarque de Holanda. Foi a pé, o apartamento do lexicógrafo ficava ali perto, no mesmo bairro, Praia de Botafogo.
Anísio Teixeira não chegou ao destino. Foi encontrado três dias depois no fosso do elevador do edifício. A morte, inicialmente informada como acidental, estava cheia de circunstâncias obscuras, contraditórias. Soube-se depois que o educador fora detido a caminho, levado a um quartel da Aeronáutica, e interrogado numa operação que tinha como propósito eliminar intelectuais contrários ao regime militar naqueles terríveis anos de chumbo do governo Médici. O deputado Rubens Paiva desapareça dois meses antes. O corpo de Anísio Teixeira estava de cócoras, com a cabeça sobre os joelhos, as mãos agarradas às pernas, sobre uma poça de sangue. Ao lado, os óculos intactos. A mais tosca e cínica encenação de acidente.
Anísio Teixeira vaticinou inconscientemente sua trágica morte na carta ao amigo, sua vida interrompida em sobressaltos no poço de um elevador.
Clarice Nunes, professora e pesquisadora associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, publicou em 2010 o livro Anísio Teixeira, dentro da série Coleção Educadores, iniciativa do Ministério da Educação quando Fernando Haddad comandava a pasta, no segundo mandato do governo Lula.
Em um trecho, no capítulo A obra de Anísio Teixeira como provocação, a autora diz que “O Anísio se torna uma referência entre nós no resgate da memória e da história da nossa sociedade e da nossa educação; no diálogo da ciência com a arte; em projetos de educação que integrem a cultura e o trabalho; na força que nos move na defesa que a educação não é privilégio!”
50 anos hoje de seu assassinato. A vida é permanente transição, por mais que busquemos aceitar a morte, como ele bem disse na carta.

terça-feira, 9 de março de 2021

a morte joga xadrez


Em O sétimo selo (Det sjunde inseglet), Ingmar Bergman questiona e reflete o temor de que o mundo possa acabar de repente ou de que seja dizimado gradualmente por uma peste. Rodado em 1957, ainda sob os escombros e traumas da Segunda Guerra, o cineasta baseou-se na peça teatral de sua autoria.

Ambientado em uma época remota da Idade Média, o filme mostra o intrépido cavaleiro Antonius Block, que, voltando da Cruzada da Fé, convida a Morte para uma partida de xadrez com o intuito de distraí-la para que os flagelados escapem e, com o tempo, vencê-la.
Bergman usa o recurso narrativo como alegoria da racionalidade para entender a vida. Não se apega propriamente a uma determinada religião, e coloca a Igreja como uma instituição decadente, incapaz de impedir o mal e solidificar a fé.
O quixotesco cavaleiro é vivido pelo grande ator Max Von Sydow. A Morte, na interpretação marcante e assustadora de Bengt Ekerot. A emblemática cena dos dois personagens separados e unidos pelo tabuleiro de xadrez concretiza os aspectos da religiosidade questionada.
Max Von Sydow, em 70 anos de carreira, fez mais de 180 trabalhos, entre filmes e séries para televisão, além de atuar em teatro. Concorreu ao Oscar de melhor ator em 1989 por sua interpretação em Pelle, o conquistador, do dinamarquês Bille August, mas o prêmio foi para Dustin Hoffman, por “Rain man”, de Barry Levinson.
Muitos personagens marcaram o talento de Max Von Sydow, do Cristo em A maior história de todos os tempos, de George Stevens, ao padre Lankester Merrin em O exorcista, de William Friedkin, passando por vários outros de Bergman e produções de Hollywood, como a ficção científica neo-noir Minority Report, de Steven Spielberg, onde fez o chefe do detetive interpretado por Tom Cruise. Mas será sempre lembrado, de imediato, por sua icônica atuação em O sétimo selo.
No final da noite do dia 8 de março do ano passado a morte deu xeque-mate ao ator, aos 90 anos.
Breve é a vida, longa é a arte, como disse Hipócrates em Aforismos e depois Sêneca em seu tratado Sobre a brevidade da Vida.
Ganhou a arte de Max Von Sydow.

segunda-feira, 8 de março de 2021

a soberana do sertão


"A baiana Maria Gomes de Oliveira era chamada desde a infância de Maria de Déa, em referência a sua mãe. Nem a família nem o bando de Lampião a tratavam por Maria Bonita, apelido que só se difundiu após sua morte. Há algumas versões sobre a origem desse nome. Uma delas diz que se tratou de invenção dos repórteres dos jornais do Rio de Janeiro, possivelmente inspirados no filme 'Maria Bonita', lançado em 1937 e baseado na obra de mesmo nome de Afrânio Peixoto, de 1921. Outra, que teria sido dado por soldados que se impressionaram com a beleza da cangaceira, quando da chacina em que ela foi morta, em 28 de julho de 1938, aos 28 anos."

- Trecho do ótimo e imprescindível livro Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana de Negreiros, lançado pela Editora Objetiva em 2018.
O filme que a autora cita foi dirigido por Julien Mandel. É uma história urbana, ambientada no Rio de Janeiro, sobre uma moça que por sua beleza chama a atenção de muitos pretendentes. A personagem do livro de Afranio Peixoto, escritor e médico baiano, foi inspirada na esposa de um rico fazendeiro de gado e cacau no interior da Bahia. A relação entre as Marias é somente a beleza.
Ainda hoje há imprecisões quanto a data de nascimento de Maria Bonita, em Paulo Afonso, 10 de fevereiro de 1910 ou 8 de março de 1911, esta coincidentemente no Dia Internacional da Mulher, em referência à histórica passeata das mulheres na Rússia Imperial, contra o desemprego e as péssimas condições de vida da população. Foram elas que saíram às ruas para protestar, o que culminou com a Revolução de 1917. Em 1975 a ONU instituiu oficialmente a data. A semente dessa comemoração foi em 20 de fevereiro de 1909, em Nova York, quando as mulheres se manifestaram pela igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino.
Acima, foto retificada e colorizada por Rubens Antonio sobre original de Benjamin Abrahão, de 1936.

dona Elizabeth


A história da paraibana Elizabeth Altino Teixeira no combate à violência agrária e à impunidade começou em 1962, após o assassinato do marido, João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa.

“O João sempre me pedia para dar continuidade à luta, eu não respondia. Na hora da morte, ele segurou na minha mão e eu disse sim. Nem pensei que eu estava sozinha para criar onze filhos”, conta com serenidade e saudade. Para não ter o mesmo fim do marido, com o golpe militar de 1964, Elizabeth foi viver na clandestinidade, no interior do Rio Grande do Norte, com o falso nome de Marta Maria Costa.
Quando era militante, ela chegou a ser convidada por Fidel Castro para morar com a família em Cuba. Determinada, agradeceu respondendo que tinha uma missão no Brasil: “lutar pelo direito à terra.”
A trajetória de ambos foi resgatada pelo cineasta Eduardo Coutinho no filme Cabra marcado para morrer, rodado inicialmente em 1964 e finalizado em 1984. Elizabeth é protagonista da história de perseguição no campo e de repressão política sofrida pelo marido.
“Perdi a conta de quantas vezes fui presa e vi a morte de perto, mas o que mais doeu nessa vida toda foi ter passado mais de 16 anos longe dos meus filhos”, conta. Nove deles foram criados pelo seu pai.
No dia 8 de março de 2006, durante o segundo mandato do governo Lula, dona Elizabeth foi homenageada no Congresso Nacional, recebendo o diploma Mulher-Cidadã Betha Lutz por ocasião do Dia Internacional da Mulher.
Lúcida aos 96 anos, mora em João Pessoa numa casa doada por Eduardo Coutinho logo após as filmagens.

domingo, 7 de março de 2021

o poeta que vai, o poeta que fica


foto Regina Cunha, 2016

“O Brasil é um país muito grande. Tem que ser respeitado. Fizeram uma sacanagem com o Brasil. Uma fascistização, uma geração de ódio generalizado. Vivi a ditadura. Fui preso. Fiquei oito anos em Nova York. Quando voltei, pensei em sair de novo, mas aí encontrei a Nélida Piñon na rua e ela disse: ‘Fique, Jorge, nós precisamos de você’. Acreditei e estou aqui.”
- poeta, compositor e diretor de teatro Jorge Salomão, baiano-carioca, em entrevista ao repórter Arnaldo Bloch, no caderno Cultura de O Globo, em 9 de outubro de 2016.
Salomão é autor de cinco bons livros de poesia, parceiro em canções com Frejat, Adriana Calcanhoto, Marina Lima, Cássia Eller, criador ao lado do irmão Waly Salomão e Torquato Neto, da revista Navilouca, em 1974, expoente em poesia e arte de vanguarda, com apenas um número.
O poeta partiu no dia 7 de março do ano passado aos 73 anos, por complicações de uma úlcera perfurada no duodeno. Esteve por um mês hospitalizado, depois de sofrer um infarto, submetido a três pontes de safena, e uma luta contra pneumonia. Nesse período de convalescência, sempre que melhorava um pouco, ele pedia um livro para ler, como uma forma de se agarrar à vida, de resistência. Disse uma vez ao seu sobrinho Khalid Salomão, filho de Waly, que sempre o acompanhava, que queria escrever, compor, pois ideias não lhe saiam da cabeça.
A fascistização que ele apontou há quatro anos disseminou como uma praga, uma grande sacanagem, nesta era tosca que se instalou no país, concretizada com a eleição, em 2018, desse ser abjeto, essa alma sebosa, esse desprezível, essa cara de cão com seu desgoverno genocida e seu gabinete do ódio generalizado.
O último poema de Jorge Salomão, escrito entre a dor, a esperança e a saudade:
Tem horas que pareço eu
Tem horas que pareço Man Ray
Eu sou do tamanho da minha cor
Da cor da fita do Bonfim
Tem horas que me camuflo
Tem horas que sou molusco
Tem horas que nada sei
Tem horas que sou Man Ray
Tem horas Itapagipe
Tem horas Cubana
Tem horas curtindo cena
Tem horas olhando o mar
Tem horas que nada pareço, sem chão nem teto
Tem horas vários retratos
Tem horas que sou possível
Tem horas escuridão.
Tornamo-nos eternos no coração de quem nos quer bem. Fique, Jorge, nós precisamos de você.
foto Regina Cunha, 2016