sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

o escritor e o passarinho

Foto: Luiz Pinto, 1972
Eu era adolescente quando li pela primeira vez a crônica O conde e o passarinho, de Rubem Braga. Publicado em 1936 em seu livro de estreia, de título homônimo, a edição mais nova que peguei na biblioteca do ginásio tornou-se leitura por vários dias.
Aquela crônica em especial me encantou. Braga fala de um conde, Francisco Matarazzo, italiano que no final do século 19 migrou para Brasil e se tornou industrial dono de um enorme complexo têxtil em São Paulo. O passarinho era um passarinho, apenas, que estava num parque, voando entre as árvores.
O nobre, certa vez, passeava no parque. Passeava porque não sabia gorjear e voar como um pássaro. O conde gorjeava com os apitos das fábricas, as vozes dos operários, por isso, “entre um conde e um passarinho, prefiro o passarinho”, diz o autor logo nas primeiras linhas. E assim a crônica se desenvolve nessa descrição entre os dois seres, o vertebrado rico e o vertebrado livre, naquela manhã primaveril.
O passarinho se aproxima do conde. E o conde até pensou em conversar como seu patrício de Assis conversava com os que voam. Mas ele era um industrial que não renunciou aos seus bens e não sabia que é dando que se recebe. De repente o passarinho veio em direção ao conde, mirando-lhe o peito. “Ia bicar seu coração?”, pergunta-se o cronista. Não. Bicou uma fitinha e saiu voando com uma medalha que o nobre ostentava. Voou “entre as chaminés do conde, varando as fábricas, sobre as máquinas de carne que trabalham para os homens”.
Rubem Braga leu sobre o fato no jornal Diário de São Paulo. Mas jornal noticia, cronista transforma a banalidade em arte, como dizia Mário Prata.
Quando publiquei meu primeiro livro de poesia, em 1981 (Editora Lourenço Filho), o título que me veio foi Roteiro dos pássaros. Na hora não racionalizei o significado, embora seja verso de um dos poemas. Veio. Veio como um passarinho pousando em meu coração. O poema é uma crônica de nossos sentimentos, das angústias, indagações e perplexidades. Talvez por isso o encanto daquela crônica que se cristalizou em essência em minha vida. Crônica que é pura poesia, como tudo que Rubem Braga escreveu.
Hoje, 111 anos de seu nascimento. Agora, neste momento em que escrevo, ouço e vejo da janela um passarinho, em frente ao parque onde moro. Deve ser o cronista bicando minha lembrança.

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