terça-feira, 30 de janeiro de 2024

o nome presente da ausência


Foto: Xana Morais, Zambujeira do Mar, distrito de Beja, Portugal, 2021

Saudade, essa bela palavra substantiva, feminina, tão expressiva na língua da última flor do Lácio; essa raiz em nosso coração do latim solitatem, que desfolha no significado solidão; essa delimitação do vazio que Olavo Bilac dizia que “é a presença dos ausentes”, ausência que em Drummond, uma vez assimilada, “ninguém a rouba mais de mim”.
E assim,
"saudade" em Camões
é
“te extraño” em Cervantes,
“mi mancate” em Alighieri‎,
“I miss you” em Shakespeare,
“tu me manques” em Baudelaire,
“sehnsucht” em Goethe,
“tocka” em Dostoiévski,
“koishii” em Mishima,
“wo shiang ni” em Yu Xiang,
“brakujący” em Szymborska...
Esse sentimento de nostalgia, essa ‘sodade’ a caminho de São Tomé na voz de Cesária Évora.

sábado, 27 de janeiro de 2024

o outro em mim


"Eu me chamo Felipe, nasci em 1995, numa família muito pobre em Porto Ferreira, interior de São Paulo. Minha mãe tinha apenas 15 anos quando nasci. Obviamente não fui planejado. Com 5 anos comecei a sofrer abusos sexuais de um irmão de minha mãe. As coisas foram assim durante anos. Além dele, alguns primos começaram a se aproveitar do meu jeito mais delicado. Eu não entendia muito bem o que era. Minhas primeiras paixões eram divididas entre meninos e meninas. Meninos porque eu os achava bonitos e meninas porque era certo. E sempre sonhava em ter uma família e dar orgulho para a minha família. Com 13 anos eu tive a minha primeira relação sexual com menino. E daquela vez eu quis e falei, então, com a minha mãe. Disse: Mãe, eu acho que sou gay. A resposta dela veio em forma de violência. Ela me bateu."

O texto faz parte do espetáculo Eu de você, monólogo idealizado e interpretado por Denise Fraga, com direção de Luiz Villaça.
A construção dramática é feita de várias histórias reais, depoimentos de pessoas que passam por nós e muitas vezes pouco sabemos. Denise colheu e colou no palco esses mosaicos que giram como um caleidoscópio com sua atuação fascinante, encantadora. O humor no espetáculo é um veio narrativo, sem perder a densidade do que é contado e cantado.
Nas revelações do cotidiano daquelas pessoas que não conhecemos de algum jeito nelas nos encontramos, por empatia e por acolhimento, por rima e por espelho.
Na apresentação de ontem à noite no Teatro da Caixa Cultural, em Brasília, Denise Fraga, na dinâmica que rompe a fronteira do tablado com a plateia, desce do palco, vem em minha direção na terceira fila e me pede para ler o texto acima. Eu que sempre quis tê-la como atriz em um filme meu, de repente sou por dois minutos por ela dirigido, com o mais terno dos olhares ouvindo-me enquanto emocionado fui Felipe.
É sempre urgente sermos o outro.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Antonio Brasileiro


Colagem: foto de Otto Stupakoff, 1969 / recorte JB, 1971

Em setembro de 1971 os compositores Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Sérgio Ricardo, Capinam, Edu Lobo, Marco Valle, Paulo Sérgio Valle, Toquinho, Egberto Gismonti e Ruy Guerra redigiram uma carta-manifesto retirando suas inscrições do VI Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, marcado para o final daquele mês. Publicado no Jornal do Brasil, o texto foi um protesto contra a censura. Todas as letras eram submetidas à análise da Divisão de Censura de Diversões Públicas.

Argumentando a intransigência e drasticidade da Divisão na apreciação de suas obras, os signatários se indignavam com “a desqualificação dos que exercem uma função onde a sensibilidade e o respeito à arte popular são prioritários”, referindo-se aos funcionários de plantão do órgão repressor.
Os compositores foram detidos e encaminhados ao Departamento de Ordem Política e Social. Ao subirem as escadas do prédio, no andar abaixo de onde seriam interrogados, Tom Jobim conteve um traço de riso com a ironia a sua frente: a Sala Antônio Carlos Jobim do Museu da Imagem e do Som, inaugurada em 1968. O maestro já tinha reconhecimento internacional, gravara um ano antes o seu quinto disco, Wave.
Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, as autoridades justificaram que a atitude daqueles artistas com o manifesto tinha “caráter comunista”. A detenção durou o dia inteiro, longo e calorento. Cada um foi ameaçado enquanto era questionado. O escrivão que interpelou Tom Jobim “simpatizou” com o compositor, lembrou da sala lá embaixo, e disse: "Olhe, o senhor não queira se meter com polícia”, e que ia datilografar uma declaração para ele assinar, colocando “que o senhor não teve intenção”.
Tom enquanto assinava, disse, com uma dosagem sarcasmo: “Deve haver um engano. Eu não sou comunista. Sou pianista. Eu não posso ficar preso porque gosto de tomar uísque em ar condicionado”.
Liberados, mantiveram o que assumiram no manifesto. O evento aconteceu sem a presença dos “comunistas” na concorrência.
Hoje, 97 anos de nascimento do maestro soberano.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

as pedras pisadas do cais

Foto: Ierê Ferreira, 2011

Pedra do Sal e Cais do Valongo são locais históricos importantes na cidade do Rio do Janeiro. O primeiro é um monumento religioso localizado no bairro da Saúde, onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos. O segundo é um antigo cais onde as pedras pisadas marcam o único vestígio material da chegada dos africanos escravizados, pedaço que o compositor Heitor dos Prazeres chamava de “Pequena África”.
Foi exatamente nesses dois espaços, onde pulsam as partículas arqueológicas da negritude subjugada e as divindades dos orixás que baixaram na alma dos escravos, que o ator e cineasta Zózimo Bulbul e sua esposa, a produtora e figurinista Biza Vianna, conceberam a exposição móvel Herança Africana – Intervenções Urbanas a Caminho do Porto para a programação paralela do 6º Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, no final de novembro de 2012, no Cinema Odeon, evento criado por ele. Nessa edição, foi homenageado pelos 50 anos de sua carreira. Zózimo Bulbul foi o primeiro ator negro a participar de novela, fazendo par romântico com Leila Diniz em Vidas em conflito, 1969, na TV Excelsior.
Artes plásticas, dança, roda de conversa, degustação gastronômica do continente negro, formavam o belo cotejo, do Largo de São Francisco ao Jardim Suspenso do Valongo, reverenciando a cultura africana e sua influência na formação da identidade cultural brasileira. No meio da multidão, com a saúde debilitada – tratava de um câncer no intestino - o ator com o brilho de sua ancestralidade.
Dois meses depois, na manhã do dia 24 de janeiro de 2013, Biza Vianna estava ao seu lado quando sofreu um infarto em seu apartamento, na praia do Flamengo, falecendo aos 75 anos.
Sob o sol do meio-dia de 25 de janeiro, Zózimo Bulbul fez novamente o percurso das Intervenções Urbanas a Caminho do Porto. Foi enterrado no cemitério do Caju, na mesma zona portuária, no mesmo chão onde desembarcaram seus antepassados, “entre cantos e chibatas”, como escreveu Aldir Blanc sobre outro bravo feiticeiro reaparecido há muito tempo nas águas da Guanabara.
Acima, o diretor e uma cena de seu filme Alma no olho, 1973.

domingo, 21 de janeiro de 2024

viagem ao cinema

Georges Méliès, com Viagem à Lua (Le Voyage a la Lune), de 1902, criou as técnicas de stop-motion, a câmera rápida, as dissoluções de imagem, o storyboard, a manipulação com técnica para o movimento quadro a quadro.

Ilusionista de teatro e múltiplo prestigitador, desde 1896 apresentava seus pequenos filmes ao ar livre. Luzes de uma nova realidade artística que chegava aos olhos e corações de uma plateia encantada.
Para realizar sua viagem à Lua, investiu muito do que ganhou para construir um enorme cenário em um galpão, e criou meios para esconder o sistema mecânico que moviam as peças no dispositivo cênico. Um precursor dos grandes estúdios. Hollywood só foi criada em 1911.
Naqueles primitivos tempos, a cinematografia buscava o veio comercial. A produtora Pathé dominava na França. Méliès tentou distribuir seu filme nos Estados Unidos. Se conseguiu ir à Lua, atravessa o Sena e vai à Nova Jersey, onde a indústria de cinema se esboçava. O empresário Thomas Alva Edison patenteava todas as produções, de tudo que inventou e inventavam. Cópias de “Viagem à Lua” foram feitas, multidões lotaram salas. Méliès nunca recebeu um centavo de dólar.
As explosões da Primeira Guerra atingiram os negócios, implodiram as apresentações do cineasta. Cheio de dívidas, Méliès chegou a entregar negativos de filmes aos credores. O material derretido contém prata. De volta da viagem à Lua, retira-se do cinema. Com sua esposa, a atriz Jeanne d’Alcy (entre tantos, fez com ele Jeanne d'Arc), retornam às atrações nos teatros, nos circos, montam uma pequena loja de brinquedos e guloseimas.
No começo dos anos 30, cansados, se recolhem a Résidence Retraite du Cinéma et du Spectaclea, em Orly, uma casa de repouso geriátrico, ainda existente. Méliès tinha 76 anos quando faleceu de câncer na manhã de 21 de janeiro de 1938.
Acima, o cineasta cartografando a Lua.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

entre o céu e o mar


Santa Cruz Cabrália, Bahia. Numa rua comprida, ainda de casas rústicas, no alto diante da imensidão do mar, vi uma senhora num banquinho. Fazia sombra e silêncio. Dei bom dia e me sentei ao seu lado, no chão, numa confortável sensação de que ela me convidara.
- Bom dia. – Respondeu, sem tirar os olhos miúdos do mar.
Um lenço branco cobria-lhe os cabelos. O rosto tostado de existência. As mãos juntas, às vezes tecendo os dedos, desfazendo nós invisíveis. Ao longo dos braços, afluentes de sua vida correndo nas veias em relevo sob a pele. Usava blusa de um clube. O presente vestindo o pretérito.
Continuamos olhando o mar. Bem longe um avião riscava o azul. Sem perceber, rompi o silêncio, como romperia o som aquele pontinho no céu. Perguntei-lhe se já viajou de avião.
Ouvi uma respirada esguia e alongada. A resposta noutra velocidade:
- Não, meu filho. Não é da minha natureza.
Uma pausa. Continuou.
- Avião com pouco já tá aqui no chão, com pouco já sobe, quando a gente 'oia', já tá nesse mundo de Deus. Viajar de avião tá difícil... no chão viajo de qualquer coisa.
Procurei o avião e tinha sumido atrás de uma nuvem.
- E o mar?
Ela firmou mais o infinito a sua frente. Pela primeira vez girava a cabeça, lentamente, medindo a latitude das ondas. Advertiu-me:
- Quando você entrar no mar, você vai andando, andando... maré seca... que quando você 'oiá' pra trás onde você foi daqui pra lá, e ver a água espumando, espumando... pode sair! Pode sair que na mesma hora vai tudo embora!
A conversa fluiu, como a água lá embaixo na areia, indo e vindo.
Chamava-se Don’Ana, tinha 90 anos, viúva. O marido foi pescador. Morava com uma irmã, dez anos mais nova. Os filhos em Salvador, os netos no meio do mundo.
Era quase almoço quando me levantei, me despedi e saí. Poucos passos e voltei. Perguntei se podia fazer uma foto. Assentiu com a cabeça.
Tinha voltado ao silêncio sobre o mar.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

o escritor e o passarinho

Foto: Luiz Pinto, 1972
Eu era adolescente quando li pela primeira vez a crônica O conde e o passarinho, de Rubem Braga. Publicado em 1936 em seu livro de estreia, de título homônimo, a edição mais nova que peguei na biblioteca do ginásio tornou-se leitura por vários dias.
Aquela crônica em especial me encantou. Braga fala de um conde, Francisco Matarazzo, italiano que no final do século 19 migrou para Brasil e se tornou industrial dono de um enorme complexo têxtil em São Paulo. O passarinho era um passarinho, apenas, que estava num parque, voando entre as árvores.
O nobre, certa vez, passeava no parque. Passeava porque não sabia gorjear e voar como um pássaro. O conde gorjeava com os apitos das fábricas, as vozes dos operários, por isso, “entre um conde e um passarinho, prefiro o passarinho”, diz o autor logo nas primeiras linhas. E assim a crônica se desenvolve nessa descrição entre os dois seres, o vertebrado rico e o vertebrado livre, naquela manhã primaveril.
O passarinho se aproxima do conde. E o conde até pensou em conversar como seu patrício de Assis conversava com os que voam. Mas ele era um industrial que não renunciou aos seus bens e não sabia que é dando que se recebe. De repente o passarinho veio em direção ao conde, mirando-lhe o peito. “Ia bicar seu coração?”, pergunta-se o cronista. Não. Bicou uma fitinha e saiu voando com uma medalha que o nobre ostentava. Voou “entre as chaminés do conde, varando as fábricas, sobre as máquinas de carne que trabalham para os homens”.
Rubem Braga leu sobre o fato no jornal Diário de São Paulo. Mas jornal noticia, cronista transforma a banalidade em arte, como dizia Mário Prata.
Quando publiquei meu primeiro livro de poesia, em 1981 (Editora Lourenço Filho), o título que me veio foi Roteiro dos pássaros. Na hora não racionalizei o significado, embora seja verso de um dos poemas. Veio. Veio como um passarinho pousando em meu coração. O poema é uma crônica de nossos sentimentos, das angústias, indagações e perplexidades. Talvez por isso o encanto daquela crônica que se cristalizou em essência em minha vida. Crônica que é pura poesia, como tudo que Rubem Braga escreveu.
Hoje, 111 anos de seu nascimento. Agora, neste momento em que escrevo, ouço e vejo da janela um passarinho, em frente ao parque onde moro. Deve ser o cronista bicando minha lembrança.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

sem fardão

 

Foto: Acervo Arquivo Nacional
Em 1940, o escritor, ensaísta e dramaturgo Oswald de Andrade apresentou sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Quinze anos antes tentou e não conseguiu. E dessa vez a intenção vinha caracterizada por polêmicas, pois o modernista acusava frontalmente a instituição de antidemocrática. Definia sua postulação como um desafio à ordem e necessidade de renovação.
Provocador, intempestivo, anárquico, Oswald enviou junto com a inscrição uma carta ao presidente da Academia, Celso Vieira, onde, entre outras afrontas, pergunta se “Será V.S. um dos membros da quinta-coluna, que camuflados no fardão, sabotam aí dentro, as magras conquistas do espírito brasileiro?”. E para fazer alarde, manda o texto para os jornais, anexando uma fotografia segurando uma máscara contra gazes asfixiantes, que usou na França um ano antes, durante o ataque nazista. Com a insólita imagem, questionava a sensibilidade e empatia de Vieira com a possibilidade dos imortais em Paris terem como destino o campo de concentração. “Ou será V. S. daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura?”, alfineta no final.
Oswald de Andrade perdeu para Manuel Bandeira. Teve apenas um voto, de Cassiano Ricardo, autor do consagrado Martim Cererê. O isolamento foi ferrenho. Menotti del Picchia desistiu da candidatura em favor ao poeta pernambucano.
Como escreveu em um artigo no Correio da Manhã sobre sua candidatura, “Um paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga, cujo destino único é ‘ser estraçalhado’”.
Hoje, 134 anos de seu nascimento. Imortal.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

vida cabralina

Fotos: BBC News Brasil

Em 1952 o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto servia na embaixada em Londres. Nas pausas dos trabalhos burocráticos, lia poemas de Dylan Thomas, assistia a filmes de Alfred Hitchcock, não perdia os jogos do Chelsea, e colaborava com a revista do Partido Trabalhista inglês.

Foi para uma edição desse periódico que Cabral escreveu ao colega Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, lotado em Hamburgo, Alemanha, pedindo-lhe um artigo sobre a economia brasileira. No trânsito entre as mesas, a carta passa pelas mãos de Mário Calábria, diplomata então secretário de Guimarães Rosa na embaixada.
Suspeitando de uma célula comunista no Itamarati e que o poeta pernambucano faria parte com outros diplomatas, entre eles o filólogo Antônio Houaiss, Calábria mandou cópias para Estado-Maior do Exército Brasileiro e para o jornalista Carlos Lacerda, notório opositor de Getúlio Vargas. Resoluto em atacar o governo via embaixadas, Lacerda divulga a carta em seu jornal, Tribuna da Imprensa, com a estrondosa manchete: "Traidores no Itamarati".
João Cabral foi afastado de suas funções, chamado ao Brasil para responder a um inquérito e colocado em disponibilidade sem vencimentos. Até 1954, quando foi reintegrado, por decisão do STF, o poeta, com mulher e três filhos, sobreviveu escrevendo editoriais e obituários para os jornais Última Hora, de Samuel Wainer, e A Vanguarda, de Joel Silveira.
De volta à diplomacia, João Cabral foi para Barcelona. Viveu sua carreira diplomática, de 1945 a 1990, por 14 países, como cônsul e embaixador. Sua paixão era, declaradamente, a Espanha, principalmente em Servilha, onde dizia se sentir em casa.
Gostava de assistir touradas, e comparou a lida na arena com o ofício da escrita: "O poeta é como o toureiro, precisa viver medindo forças com a morte, ou não vive".
Hoje, 104 anos de seu nascimento.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

a alma do tempo


Consta nos alfarrábios pré-Wikipedia que no dia 8 de janeiro de 1840 o abade Louis Compte, capelão de um navio-escola francês, aportou de passagem pelo Rio de Janeiro e apresentou ao jovem Imperador Dom Pedro II a invenção do Daguerreótipo, primeiro aparelho a fixar a imagem fotográfica. A data foi escolhida para celebrar o Dia Nacional do Fotógrafo.

Há controvérsias quanto a esse dia, e na imprecisão de outros cartapácios históricos, registra-se esse encontro em 16 de janeiro. Uma data ou outra, reverberou-se ao longo desses quase dois séculos que o Imperador solicitou ao francês uma demonstração do invento, um “test drive” da curiosa geringonça que ousava registrar a alma do tempo.
A comitiva monárquica acompanhou o abade prestativo com a parafernália por alguns pontos da Capital. No dia seguinte, no salão do lendário Hotel Pharoux, no local onde hoje é a Praça XV, foram apresentadas as imagens da fachada do Paço Imperial, chafariz do Largo, a Praça do Peixe, o Mosteiro de São Bento, e mais algumas fotos de objetos que estavam por ali naquela manhã ensolarada de “happening” histórico.
Acima, a agora digitalizada vista do Paço, considerada a primeira foto oficial brasileira.
Essa é a magia da fotografia: a simetria do tempo. Seja no dia 8, 16, hoje e sempre. 

sábado, 6 de janeiro de 2024

o santo rei


Foto: TV Vanguarda, São José dos Campos, 2014

Márcio Leonardo Sossio compôs a canção A festa de Santo Reis, não exatamente em louvação aos três Magos, e sim ao rito comemorativo de 6 de janeiro, A Folia de Reis, que marcou sua infância, entre a capital paulista, onde nasceu, e o município Tanabi, onde tinha parentes.
Márcio achava que a celebração que une no mesmo cântico folclore e religiosidade, com os grupos de reisado pelas ruas tocando sanfona e violão e os pandeiros de fita nas mãos, andava meio esquecida. Ele tinha apenas 17 anos e guardou a canção como quem guarda uma prece para o futuro. Era um dos adolescentes que amavam os Beatles e os Rolling Stones e acompanhava os festivais de música popular brasileira.
Em 1970 passou a frequentar uma boate na noite paulistana, a Cave, vendo ali uma oportunidade de se apresentar, mostrar suas composições. Por lá cantavam Jorge Ben, Erasmo Carlos, Sérgio Reis, Herondy, Cassiano e, entre outros com um balanço que mesclava samba e soul, um jovem que acabara de chegar de uma temporada nos Estados Unidos, Tim Maia, de quem ficou amigo. O cantor morou um tempo na casa de Leonardo, que lhe mostrou algumas canções entre conversas noites a dentro.
Atraído pela vida no campo, foi morar numa comunidade no interior de Pernambuco, e Tim Maia seguiu para o Rio de Janeiro, assumir a função de síndico no condomínio Brasil. Em 1971 Marcio Leonardo ouviu no rádio sua composição sobre a festa dos Reis. Procurou de imediato o telefone do Tim.
- Onde é que você está, mermão?! Tem grana boa aqui pra você! - Disse o cantor com aquele vozeirão, antes que o amigo pedisse explicações.
A música abre o disco, o segundo de Tim, onde tem outros sucessos como Você e Não quero dinheiro, só quero amar. Márcio Leonardo continuou amando e querendo sua parte nas vendas. O ouro merecido, não somente incenso e mirra do Oriente.
Mesmo com o dinheiro que passou a receber dos direitos autorais, Márcio Leonardo não seguiu carreira artística e preferiu continuar com trabalhos ligados à natureza. Viveu até 10 de junho de 2021 na região verde de Santo Antônio do Pinhal, município próximo a Campos do Jordão, onde faleceu aos 74 anos. Tinha uma pousada e era conhecido como o ambientalista Márcio Branco.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

o escritor e a rosa



O romance de estreia de Umberto Eco, O nome da rosa, 1980, é um livro cheio de referências e reverências. Ambientado na Itália medieval de 1327, a trama se desenrola em um mosteiro beneditino onde durante sete dias acorrem insólitas mortes de sete monges. O frade franciscano William de Baskerville é convocado para investigar os crimes. Leva como auxiliar o noviço Adso de Melk.
- O nome do personagem-detetive é uma citação ao frade William de Ockham, o mais importante pensador no desenvolvimento de ideias constitucionais na Idade Média. Artur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, é também reverenciado nesse batismo, através do título de seu livro Os cães de Baskerville.
- O jovem assistente Adso é uma consideração ao fiel escudeiro de Holmes, Watson.
- O guardião cego da biblioteca, Jorge de Burgos, é um tributo a Jorge Luis Borges, de quem Umberto Eco era devoto. As várias situações em ambientes com espelhos remetem ao conto A Biblioteca de Babel, do livro Ficciones.
- A descrição da biblioteca, numa estrutura arquitetônica labiríntica e ousada, alude ao famoso quadro Relatividade, de M.C. Escher.
- Nas investigações o frade descobre que a sucessão de mortes está relacionada ao segundo livro da Poética de Aristóteles, onde o filósofo defende a teoria do efeito do riso, demonstração natural de alegria do ser humano, o seu elo com os deuses, que firma o conceito de felicidade. Para Igreja medieval era um perigo, abalaria a fé, o temor a Deus, e, sobretudo, um desrespeito à instituição aqui na terra que representava os fundamentos dos céus. Nessa concepção, rir era um ato de escárnio e sacrilégio.
- No desfecho, um grande incêndio destrói o mosteiro, iniciando-se justamente na biblioteca, numa designação direta da proibição dos livros como fonte de conhecimento e liberdade, um potencial revolucionário.
Essa intextualidade provoca o debate sobre o pensamento iluminista e o cetismo, a luta contra a mistificação e o esvaziamento dos valores pela demagogia.
Hoje, 92 anos de nascimento de Umberto Eco, referência e reverência em todas as bibliotecas.
Acima, o escritor fotografado por Eamomm McCabe na Universidade de Bolonha, 2005. 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

a última viagem


Foto: Acervo Collection Catherine et Jean Camus

No dia 4 de janeiro de 1960 o escritor Albert Camus comprou passagem de trem de Villeblevin à Paris. Iria em companhia de seu amigo, o poeta René Char, a quem considerava o maior desde Rimbaud e Apollinaire. Seriam 105 quilômetros de boa conversa sobre literatura enquanto da janela admiravam a paisagem verde riscando de leve.

Mas Camus aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto da cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram.
Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico, uma espécie de testamento literário e político, que estava escrevendo, O primeiro homem. Numa anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994.
No capítulo I, A procura do pai, há um trecho em que a reflexão sobre o sentido da vida, sobre o efêmero que somos e o eterno que pretendemos, se acentua como prólogo de uma dissertação filosófica que se desenvolve ao longo dessa busca proustiana. Jacques Cormery, o personagem quarentão alter ego de Camus, depois de visitar o túmulo do pai que não conheceu, vai à casa do amigo Victor Malan, alfandegário aposentado, a quem devota atenção.
- Quando se tem 65 anos, cada ano é uma prorrogação. Gostaria de morrer tranquilo, e morrer é assustador. Eu nada fiz. – Diz o amigo.
Jacques com o olhar filial, contrapõe com apreço e reconhecimento.
- Há pessoas que justificam o mundo, que ajudam a viver só com sua presença.
Albert Camus teve um final assustador e seu tempo não foi prorrogado, mas os intensos 46 anos vividos e sua obra justificam o mundo.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

o cowboy e o samurai


Fotos: Tonino Delli Colli e Kazuo Miyagawa

Por um punhado de dólares (Per um pugno di dollari), de Sergio Leone, 1964, foi inspirado em Yojimbo (Yojimbo), de Akira Kurosawa, 1961. O enredo do épico japonês, ambientado em 1860, é transportado para uma árida cidade mexicana fronteira com os Estados Unidos, onde duas gangues vivem em constante conflito.
Em Kurosawa, um ronin, guerreiro samurai do Japão feudal que se caracterizava por não seguir nenhum mestre, chega ao local para eliminar os grupos, ora associando-se a um, ora manipulando o outro. Ardiloso, aproveita-se do despreparo estratégico dos rivais.
Em Leone, um pistoleiro sem nome aparece na cidade e se envolve com as gangues contrabandistas, uma de bebidas e outra de armas, e conhecendo os planos de cada um, articula para dizimá-los e apaziguar a cidade.
Astucioso, o cowboy ganha de ambos um punhado de dólares, assim como o guerreiro japonês amealha de todos um punhado de kobans, moeda ovalada em ouro.
No delineamento dos heróis anônimos e solitários, as atuações protagonistas de Toshiro Mifune e Clint Eastwood moldaram o perfil de samurai no cinema e o de forasteiro carismático pós-John Wayne.
Por um punhado de dólares foi seminal para recriar o conceito e estrutura de ação do bang bang, e consagrou o que se denominou western spaghetti, renovando o gênero com um relato despojado, em paralelo ao cinema operístico de John Ford e seus cowboys emoldurados no Monument Vallery.
Três outros filmes do cineasta italiano se destacam pela narrativa sensorial, Três homens em conflito, 1966, Era uma vez no Oeste, 1969, e Era uma vez na América, 1984.
Hoje, 94 anos de seu nascimento. Falecido em 1989, não teve tempo para realizar o que seria mais uma grande obra, Era uma vez na Rússia, sobre a Revolução Bolchevique.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

depois da última cena



Diariamente, antes de publicar nas redes sociais, o jornalista, poeta e artista gráfico Vanderlei dos Santos Catalão, o TT Catalão, enviava in box para os amigos, um poema curto, um texto pertinente ao contexto sócio-político. Os versos estruturados como raios, mas largos e profundos em seu sentido.
No dia 27 de dezembro de 2019 recebi o cartão abaixo, uma colagem de boas-vindas ao Ano Novo, a partir da última cena de Tempos modernos (Modern times), de Charles Chaplin, 1936.
TT Catalão resumiu na icônica imagem e no pequeno texto o significado da vida, da resistência e da esperança que marcaram não somente esse filme, mas toda a obra do cineasta através do personagem que criou.
Em “Tempos modernos”, uma crítica à revolução industrial e sobre a busca da felicidade, na sequência final Carlitos segue com sua amada, interpretada por Paulette Goddard, por uma estrada em linha reta, numa perspectiva onde uma legenda diz “Na aurora”. A garota vira-se para ele e pergunta: “Para que tentar?”, Carlitos com um sorriso responde: “Levante a cabeça, nunca desista! Vamos conseguir virar!” E saem de mãos dadas ao som de Smile, composição do próprio Chaplin. Olha para ela e sorrindo insiste: “Sorria!”
Com esse cartão pós-Natal, pré-Ano Novo, o carioca TT Catalão se despediu na madrugada de 2 de janeiro de 2020, em Brasília, onde morava desde 1972. Falência múltipla dos órgãos, que começou pelos rins, o levou aos 71 anos.
Naquele ano II do desgoverno do verme genocida, TT, resiliente, nos dizia: “Não desista de você. Não desista do Brasil."
Tempos modernos foi o último filme em que Chaplin interpreta Carlitos. Partiu sorrindo.
TT, em sua última cartela, pedia para nunca desistir. E conseguimos virar!
Colo sua foto na sua colagem. O sorriso é sempre revolucionário. 

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Janeiro



Janeiro
Janus, deus romano das mudanças e transições,
dos inícios,
das escolhas.
Inventor das guirlandas,
dos botes,
dos navios,
das moedas de bronze.
Olha para o passado, tem um olho em dezembro.
Olha para o presente, tem a chave do futuro.
2024! A soma do infinito! ∞
Sejamos bem-vindos!