domingo, 31 de março de 2019

casa de cinema

“O que é o cinema?
É a luz que chega de algum lado e que é retirada pelas imagens mais ou menos escuras ou coloridas.
Quando estou aqui sinto que vivo no cinema, que é minha casa. Sinto que sempre nele habitei.”

- Agnès Varda, na cena final de seu penúltimo filme As praias de Agnès (Las plages d'Agnès), 2008, um autorretrato onde a cineasta se insere de forma orgânica na narrativa. O tempo todo ela fala com o espectador, com quem lhe vê e com quem viu seus filmes.
Para compor a imagem, Agnès Varda, falecida sexta-feira passada, recorre a uma de suas atividades no princípio da carreira, como expositora de instalações fotográficas: decora uma cabana com tiras de celuloide de “As criaturas” (Les créatures), que dirigiu em 1966, com Michel Piccoli e Catherine Deneuve. O enredo desenvolve a relação entre um escritor e sua esposa, que após se recuperarem de um acidente de carro, e com o casamento em crise, se isolam no vilarejo em uma ilha. O marido escreve um romance com personagens baseados em seus vizinhos. A mulher, ainda traumatizada, não fala. A inevitável linha tênue entre a realidade e a ficção torna tudo difuso.
Ao terminar seu filme com as tiras de películas penduradas como cortinas onde as luzes atravessam, e sentada sobre as latas com cópias 35mm, Agnès cria uma poética metáfora entre o cinema e a realidade, entre o universo em que se vive e o que deixou de ser, entre o que foi, é, e o que se aguarda, na simetria do tempo que o cinema reverbera e perpetua.
Lá no começo, na sequência de abertura do filme, como explicando o título, a cineasta diz que "Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Mas se me abrissem a mim, encontrariam praias." No final se vê que são praias que chegam até a porta da casa onde ela sempre habitou: o cinema.

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